O Pinheiro

As luzes multicoloridas que irrompiam a escuridão noturna em alegria contagiante anunciam a proximidade de uma das festividades mais marcantes do ano. Árvores de Natal iluminadas com grinaldas, bolas vermelhas e douradas, renas, pais natais e azevinho, muito azevinho... Arbusto aparentemente inocente, bagas brilhantes encarnadas, folhas recortadas e o veneno escondido atrás da beleza angélica como os sinos e os guizos da celebração da bondade. Mas a perversidade encoberta pelo sorriso generoso não terminava ali... Estrelícias. Estrelícias, a maioria vermelhas e umas quantas brancas, por toda a parte. Nas ruas, nas varandas, nos jardins e nas lojas. Até ficava bonito, isso tinha de admitir. Mas as vibrações mortíferas, o perfume mascarado de morte... E ainda diziam que o Natal era uma época de compaixão e clemência.

As irritantes e cínicas músicas natalícias perfuravam os tímpanos de Mortis. Que hipocrisia que era o Natal em toda a sua totalidade! Aquelas caras felizes que escondiam a ira em receber os chatos daqueles primos que falavam sem parar e cujo nome  permanecia esquecido nas profundezas da mente, a euforia efémera em acartar uma carrada de caixas de presentes, embrulhos e sacos de compras. Assim se fazia o tão aclamado espírito de Natal!

Em cada esquina um peditório qualquer para isto ou para aquilo. E durante o resto do ano? A caridade necessitava de sininhos, pinheiros enfeitados e decorações luminosas para despertar nos corações cruéis?

Perfurando a multidão extasiada com a imensa lenha que atirava ao consumismo, de braços bem recheados a dirigir-se para os carros cobertos de geada no parque de estacionamento, Mortis adentrou a superfície comercial. Foi recebido por uma lufada de ar quente do sistema de aquecimento do edifício e um urso-polar  gigante que acenava aos clientes enquanto pronunciava na sua voz artificial de peluche falante Merry Christmas. Em Mortis, nascia uma vontade insaciável de estrangular aquele boneco branco insolente que quase o fez dar um pulo, mas conteve-se. Quanto menos chamasse a atenção, melhor.

Embrenhando-se no estabelecimento, os seus globos oculares vazios foram visitados por uma explosão de luzinhas intermitentes e decorações brilhantes. Prateleiras com bolas ofuscantes de todas as cores e mais algumas, sinos, estrelas e meias preenchiam os interstícios da loja que não estavam ocupados com árvores de Natal de todos os tamanhos possíveis e imaginários. Nos pinheiros, pendiam fitas e grinaldas que pareciam de suprema utilidade para enrolar à volta do pescoço de alguém e saborear aquele momento delicioso em que o moribundo suplica por vida.

Havia na loja de decoração umas quantas mesas onde assentavam toalhas de motivos verdes, vermelhos e dourados. A louça natalícia reluzia à luz das velas por acender. Os guardanapos de pano, com rendas brilhantes, repousavam sobre os pratos vazios que aguardavam o bacalhau e o perú. Nos pequenos espaços ainda vazios, encontravam-se decorações aleatórias, como pinhas com efeito de neve, gorros de Pai Natal, pássaros artificiais e esquilos de peluche com casinhas de madeira.

Numa secção mais tradicional, contemplava-se o principal motor, muitas vezes esquecido, que levara ao aparecimento daquela festividade: o nascimento do Menino Jesus. Aqui e ali, havia uns quantos presépios que mimetizavam a história bíblica. Estatuetas dos Reis Magos, pastores e ovelhas em incursão dirigiam-se ao estábulo onde Deus Menino vira a luz pela primeira vez.

Mais adiante, um grupo de crianças entusiasmadas vislumbrava de olhos arregalados a Vila Natal. Casinhas e figuras animadas contorciam-se ao som da música. Uns patinavam no gelo, outros faziam vénias e acenavam. Porém, o aparente padrão de movimentos monótonos dos bonecos foi interrompido pelo apitar agudo de um comboizinho, cuja chegada inesperada e silvo penetrante fez Mortis urrar.

- Que raio de invenções!

Um menino ali mais próximo girou a cabeça na direção da voz cavernosa. Ui! Pernas para que te quero! Deu corda aos sapatos e desapareceu dali o mais depressa que conseguiu, em gritos aflitos a chamar pela avó.

Não tardou a que o pânico se estendesse às outras criancinhas, disseminado como um vírus mortal. Perante o imenso alarde que estava a gerar, Mortis afastou-se delicadamente e refugiou-se num amontoado de árvores de Natal em exposição, que mais parecia uma floresta de ramadas de plástico verde, branco e ocasionalmente azul, rosa e encarnado.

- Que cheiro intenso a morte... - Murmurou a criatura.

- Que máscara fixe! Posso tirar uma foto consigo?

Se Mortis tivesse pele a revestir o rosto, certamente teria franzido o sobrolho. Aquele pré-adolescente chato tinha tido a ousadia de lhe interromper os pensamentos caóticos.

- Não.

- Não? - Ripostou o miúdo.

Mortis ajeitou o capuz negro da capa que lhe cobria o desajeitado corpo esquelético.

- Tenho mais o que fazer.

- Por exemplo...?

- Não sentes o cheiro? Isto é mil vezes pior do que um cemitério.

- Cheiro? Que cheiro? - Surpreendeu-se o rapaz. - A mim não me cheira a nada.

- Cheira a morte, cheira a cadáveres. Cada bola, cada enfeite, cada estrela, cada luzinha é uma amostra do perfume sedutor da morte.

O rapazeco inclinou a cabeça. Não percebia patavina do que aquele estranho lhe dizia, mas a verdade é que o realismo dos ossos descarnados levemente cobertos pelo véu da capa escura atraíam-no pelo seu misticismo.

- Hum?

- Os mortais andam todos sorridentes contaminados pelo cinismo natalício. Por acaso sabes qual é uma das épocas do ano em que há mais defuntos que tiraram a própria vida? Precisamente no Natal, essa época feliz de luzinhas e presentes e reencontros e abraços!

- Ai sim? Porquê?

- Todo este frenesim é uma melodia melancólica. Encanta alguns enquanto entristece outros. Cada enfeite, cada embrulho é um prenúncio da morte. O entusiasmo exalta-se quando vocês se sentam à mesa com aqueles familiares, amigos e vizinhos que não veem há muito. Mas, só por acaso, já alguma vez pensaram em como fica por dentro quem está sozinho neste mundo? E aqueles que, aos poucos, foram perdendo os rostos com quem partilhavam o bolo-rei? E os que, pelas circunstâncias da vida, são esquecidos? Não são só os meninos mal comportados que recebem carvão em vez de presentes.

- O senhor não gosta lá muito do Natal, pois não? Sabe, eu até gosto mais ou menos, mas prefiro o Halloween. O meu pai vive longe com a namorada e sempre que nos visita no Natal, mais cedo ou mais tarde, a mãe... Bem... Fica aborrecida e grita um bocadinho com ele. E depois a minha tia começa a contar aquela história que o Natal é uma época de amor e de harmonia, e que é proibido discutir. Pelo menos no Halloween ninguém discute com ninguém.

- Por falar nisso, onde é que está a tua mãe? - Perguntou Mortis, vendo ali uma boa oportunidade de se desfazer daquele percalço pré-adolescente.

- Está ali com a minha mana a comprar umas luzes para pôr no arbusto que temos no quintal.

- Talvez seja melhor ajudá-la com as luzes.

- Tem razão. Daqui a nada está a chamar-me. Adeus, senhor! Gostei da sua máscara, mesmo sem tirar foto! - Despediu-se o miúdo, afastando-se com um sorriso.

- Devia achar que sou aquele velho bonacheirão de barbas brancas de gorro vermelho enfiado na cabeça...

- Vendo bem, até tens jeito para as crianças. Essa figura é que, credo, até mete medo ao susto! - Disse repentinamente uma voz delicada, cujo género era impossível de deduzir.

- Aqui, Ceifeiro, aqui!

Mortis arregalou os globos oculares vazios e rodou o tronco sem carne.

- Quem falou?

- Eu, Ceifeiro.

Deambulava no meio das árvores de Natal um pinheiro antropomórfico de altura considerável. Tronco castanho-chocolate, ramagens frondosas de um verde vivo. Exalava um odor a terra, a pinhões, a agulhas frescas de pinheiro. Os seus movimentos eram sublimes e os gestos calmos. Nos ramos, transportava umas quantas grinaldas e alguns enfeites que exibia com estilo e glamour como se de brincos e colares se tratassem.

- O meu nome é Pinus.

- Mortis. - Retorquiu a criatura esquelética. - O que és tu?

- Digamos que sou um espírito, tal como tu. Não somos tão diferentes quanto pensas. Tu pertences à Morte, eu à Vida. Somos dois pontos que se unem na jornada dos mortais.

- O que queres?

- Parece-me que odeias tanto o Natal que quase o amaldiçoas. O que pretendes fazer? Um ceifeiro não costuma deambular por aí sem destino na dimensão dos mortais...

- Venho apagar a data de vez do calendário. A próxima vítima é o Dia dos Namorados.

- Que drástico! Qual o objetivo de tanta radicalidade?

- Ó pinheiro falante, desculpa a arrogância, mas por acaso és cego? Já olhaste para as taxas de suicídio assombrosas durante a quadra natalícia?

- E a tua solução é exterminar o Natal? Tu, que tão bem controlas a Morte...

- Alto e pára o baile! Eu não controlo a Morte. Eu estou mais para um funcionar da Morte. Só ajudo as almas de quem já está morto a alcançar o outro plano da existência.

- Ceifeiro ingénuo! Qualquer um controla a Morte, até o mais insignificante dos mortais. Até os animais não-pensantes!

- Deixa-te de filosofias, Pinheiro.

- A Morte não é o Destino. Cada palavra e cada gesto são simultaneamente madeira para o fogo se alastrar e água para determinar o último suspiro de uma chama. Com sabedoria, qualquer um controla a Morte.

- Explica-te lá.

- Os sorrisos levantam moribundos. As palavras erguem almas desalentadas. Até um simples cãozinho ou gatinho em busca de conforto, que abaixa a cabeça sob a mão de um imergido num rio de pensamentos demoníacos, é capaz de mudar a corrente do mar auto-destrutivo. Mas cuidado! Todos os poderes têm um lado negro. Da mesma forma que as ações podem dar um propósito esperançoso a quem se sente perdido, é possível que acelerem esse remoinho de negatividade, ou até que o criem em quem não convive com um no âmago. O alento é poderoso, mas a angústia também.

- Qual é a tua ideia, Pinus?

- Diz-me tu. Ainda podes extinguir o Natal. És livre de o fazer. Mas será que a mais sombria das tristezas e a sua aliada solidão não encontrarão outros métodos de fazer as suas vítimas?

- Queres que vá por aí alegrar o Natal aos mortais? Pela Morte e pela Vida, Pinus! Sou a criatura menos apropriada no mundo para essa tarefa! Porque é que não vais tu?

- Sou só um guia, Mortis. Nunca leste O Cavaleiro de Dinamarca? Não sabes porque é que se iluminam os pinheiros? Para alumiar o caminho daqueles que tentam regressar aos seus na noite gelada de Dezembro.

Era curioso, aquele pinheiro falante. Embora, à primeira vista, aparentasse ser uma criatura que se contentava com a mera correnteza da vida, o seu espírito contagiante emanava um vigor capaz de mudar perspetivas e mover o mundo.

- Eu sou como a estrela que pousou na cabana onde Maria deu à luz o Menino. Vai, Ceifeiro, e sê a chama vibrante que se acende no caminho daqueles que estão mergulhados em trevas.

***

Naquela noite fria de véspera de Natal, Mortis cobriu o melhor que pôde os ossos vazios com vestimentas. No crânio, enfiou um gorro e escondeu a face medonha com uns óculos escuros e um cachecol quente. Sentou-se ao lado de um sem-abrigo perdido no mar de gente desconhecida num jantar de caridade e ouviu as suas súplicas. Na mesma medida do desespero que o homem lhe entregou, devolveu-lhe força.

Mais tarde, ceou com uma idosa viúva e sem filhos e deu um pouco de sossego a um casal cujo filho padecia de uma doença neurodegenerativa. No caminho, demoveu os intuitos fatais que faziam um homem solitário deambular perigosamente numa linha férrea demoníaca ali perto.

Além disso, ainda naquela noite, na sua figura esquelética de capuz negro, fez um ultimato com uma mãe distante cuja filha adolescente se abatia com a sua partida ao ponto de perder por completo o alento. E, na sua face enigmática e silenciosa, pôs debaixo da árvore de Natal de cinco irmãos os presentes que um pai solteiro se martirizava por não poder adquirir.

Naquele Natal, um número saltou à vista na estatística do outro lado da existência: uma drástica diminuição no número de defuntos que ali chegavam pelas próprias mãos.

Os Ceifeiros reuniram-se e discutiram demoradamente o fenómeno, ao que Mortis disse:

- Apenas palavras e pequenos gestos, meus caros.

(1998 palavras)

Monte, 2024

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