Capítulos 35 e 36

VISITANDO O PASSADO

 

Nathaniel


Muitos anos se passaram desde a última vez que olhei para esses portões. Li as letras de ferro acima do arco e suspirei: "Orfanato Alis Angeli."

Eu não sabia se tinha agido da maneira correta, indo até ali. Porém, após o que encontrei no Penhasco, somente Irmã Daiana poderia me ajudar. A carta de meu pai pesava uma tonelada em meu bolso. E a mensagem dele, não trazia boas notícias. Alertava-me sobre um futuro, que inevitavelmente se aproximava a cada amanhecer.

Essa foi a única evidência concreta que já possuí sobre a existência de meu pai. Suspeitei que Irmã Daiana guardasse certos segredos, assim como deveria saber que eu a procuraria algum dia para buscar esclarecimentos.

E, como falaríamos sobre meu pai, poderíamos falar também de minha mãe.

Já passou da hora de desvendar o meu passado.

Quem seria melhor para isso do que aquela que eu mesmo escolhi para chamar de mãe?

Impulsionado por este pensamento, empurrei os portões e cruzei o pátio. As árvores, as plantas e os arbustos, balançaram em minha direção com o mais sutil dos ventos, eu sorri. Essas foram minhas grandes companheiras nos anos em que ali vivi.

Contornei o chafariz e deixei que as lembranças viessem até mim. Apesar de órfão, a minha infância não fora inteiramente ruim. Mais uma vez, graças à irmã Daiana.

Eu suspeitava de que ela não andava bem de saúde. Há meses não respondia às minhas cartas. Desde que posso me lembrar, eu a via como uma fortaleza dentro daquele corpo pequeno, levemente rechonchudo. Sua personalidade era nítida, em suas feições serenas e sábias. De alguém que reflete mais do que fala e dificilmente se abala ao se deparar com dificuldades.

Fui tomado por um assombro de medo por sua segurança, me dirigi rapidamente ao seu dormitório. Além disso, Liza não poderia ficar sozinha durante muito tempo. Do jeito que era teimosa e fazia de tudo pela irmã, acabaria indo para a ceia de Natal sozinha.

Parei diante da porta de madeira e me surpreendi ao ouvi-la:

— Entre, meu filho.

Cruzei o quarto para chegar à cadeira de balanço onde ela se recostava. Meus temores foram confirmados. Irmã Daiana estava cega.

— Mãe. — Me ajoelhei à sua frente. Surpreendi-me com as lágrimas que escorreram quando deitei a cabeça em seu colo.

— Não se aflija, meu menino. Tudo vai ficar bem. — Ela acariciou meu cabelo e sacudiu levemente a cadeira de balanço.

— Me desculpe por te importunar. Sei que não é o melhor momento, mas temo que o tempo não esteja ao meu favor.

— Ah, meu filho. Verá que com um pouco de calma e clareza, o tempo se prolonga à nossa frente. Tentarei lhe servir de algum esclarecimento.

— Me perdoe, mãe. Me sinto tão anuviado que faço de minhas preocupações as suas. Como tem passado? Senti falta de suas cartas.

— Como deve ter deduzido, já faz um tempo que perdi a visão e não me foi mais possível lhe escrever. Claro que eu poderia pedir a alguém que o fizesse, mas existem certas histórias que o mundo não deve saber. Muito menos quando quem as escreveria seria uma freira nova e impaciente por cuidar de um fardo senil como eu.

— Jamais será um fardo, mãe. E não acredito que sequer pense isso. Pode ter perdido a visão, mas ouso dizer que agora enxerga ainda mais adiante.

— Meu filho, você continua sendo a brisa fresca em um verão muito quente. Sua mãe teria muito orgulho ao vê-lo neste momento.

— Está falando de Isabel? Aquela que me deu à luz?

— Sim, querido. Acho que chegou a hora de lhe contar.

— Conheceu a minha mãe?

— Conheci os dois. Seu pai e sua mãe. Difícil esquecer um amor como o deles. E ambos compartilhavam uma paixão ainda maior: Você.

Senti pedras se revirarem em meu estômago. A culpa por nunca tentar descobrir nada, por nunca ter procurado saber de suas vidas, me atingiu como uma flecha envenenada.

— Foi por minha causa que morreram, não foi?

— Não da forma que está pensando. Eles fizeram uma escolha. Escolheram ficar juntos e você, fruto desta união, foi salvo pelo sacrifício deles. Mas não foi simples assim. A história definitivamente é bem mais complicada. Não é algo que se escute por aí.

A irmã Daiana me fitou e pude sentir que me via. O branco leitoso da cegueira não tirara o brilho de compreensão dos seus olhos. Sabia que ela veria tudo, com ou sem visão. Ela guardava um sentido muito superior àqueles ligados ao corpo. Ali eu sempre seria o garotinho assustado, que sentava aos seus pés em busca de esclarecimento. Mesmo depois desse tempo todo, eu me encontrava no mesmo lugar. Em busca de respostas. E ela, a luz a me guiar. Como permaneci em silêncio, ela prosseguiu:

— Apesar da diferença entre sua mãe e seu pai, ela o completava. Mudou o propósito de sua existência. Se não me engano, você mesmo conhece esse sentimento, desde a primeira vez que viu um bebezinho no dia de seu nascimento, não estou certa? Você me contou essa história quando era pequeno.

Apenas a olhei nos olhos e balancei a cabeça afirmativamente. Esqueci-me de que estava cega, mas ela continuou. Como se tivesse enxergado o meu aceno.

— Seu pai zelou por sua mãe durante muitos anos. Com o passar do tempo, o zelo transformou-se em amor. Mas ele mantinha a distância, pois além de ocupar o cargo de Vice-líder no Conselho dos Anjos, unir-se a uma humana condenaria ambos. Certa noite, quando sua mãe chegou a um Penhasco, seu pai não conseguiu mais resistir ao que sentia e se aproximou. No início, tudo lhes parecia um sonho. Até que seus encontros passaram à Terra, sua mãe engravidou e tudo desabou. Essa união era proibida. Seu pai foi traído pelos líderes do Conselho, que após assinarem o tratado com Morte, planejaram entregar o fruto dessa união à ela, como uma oferta de paz. Você. Seu nascimento marcou a quebra do tratado, e Morte prometeu cumprir o que havia sentenciado.

Eu apertava a sua mão entre as minhas.

— Meu filho, você está bem? — ela perguntou.

Afrouxei o aperto e tentei me mostrar mais calmo.

— Sim. Por favor, continue.

— O Conselho dos Anjos existia com o propósito de encontrar a Alma Negra que vagava pela Terra e aprisioná-la. Quando descobriram que sua força era insuficiente, assinaram um tratado com Morte, para que a Alma Negra fosse confinada como seu Guardião. Morte aceitou, com a condição de que todos os anjos que se envolvessem com as filhas dos homens, fossem condenados. Alguns chamavam a Alma Negra de A Serpente, pois ela vagava entre os corpos pela Terra, hospedando-se nos humanos de corpo em corpo. Em busca de uma alma específica. A única forte o bastante para lhe garantir uma morada definitiva, e espalhar sua maldição entre os humanos.

— Mas para seu pai, não havia volta. Abandonar sua mãe seria como deixar a própria vida. No momento em que a conheceu, tudo perdeu importância. Ela tornou-se a única, a sua razão, o seu sopro, as batidas em seu peito.

— Assim, ele enganou o Conselho e fugiram. Eles se mudaram para uma pequena cidade, onde sua mãe deu a luz a você. A benção de um filho, que fazia um chamado à Morte.

— Olaf, um amigo íntimo de seu pai, correu para alertá-los que o Conselho havia descoberto o esconderijo. Estavam indo até você. Planejavam entregar você à Morte, com a esperança de que isso a impedisse de libertar novamente a Alma Negra na Terra, seu Guardião.

— Seus pais e Olaf trouxeram-no aqui para escondê-lo. Uma carta me alertou de sua chegada, lembro-me como se fosse ontem. Eu tinha apenas 18 anos. Os dois eram os homens mais bonitos que eu havia visto. Pareciam brilhar sob o sol. Já você, era uma pintura arquitetada pelo mais próximo que a imaginação chegaria da pureza e plenitude. Dormia calmamente nos braços de seu pai.

— Assim, eu passei a cuidar de você. E tornei-me guardiã desse precioso segredo. Jurei que o protegeria até o meu último sopro, pois valia mais do que a minha própria vida.

Afundei o rosto nas mãos, senti os dedos de Irmã Daiana acariciarem o topo de minha cabeça. Eu entendia perfeitamente o sentimento de meu pai. Claro que tudo se encaixava. Ele sabia que eu encontraria o Penhasco. Por isso deixou a carta ali.

— O que aconteceu depois disso? — Minha voz saiu rouca.

— Seu pai e Olaf, disseram ao Conselho que você não existia mais. Sua mãe veio lhe observar dos portões algumas vezes, eles passaram meses sem se encontrar, até que combinaram de se rever. Olaf prometeu que vigiaria e estaria pronto caso algo acontecesse. Mas o Conselho os localizou e levou sua mãe para o Penhasco, onde ela foi sacrificada pela traição de seu pai.

O último ato dele, antes de tentar salvar sua mãe, foi me entregar a carta que relatava todos os detalhes que acabo de lhe contar.

— Obrigado. Posso apenas imaginar o quanto isso tudo também deve ser difícil para você.

Respirei fundo e reli a carta de meu pai:


"Nathaniel,


O Conselho nos pegou, agora não há perdão. Estes servos fazem justiça com as próprias mãos, e blasfemam dizendo ser a vontade de Cima. Estão cegos, perderam a razão. Seu contato com os humanos, faz com que se sintam superiores. Não percebem a monstruosidade que cometem ao acusar alguém como Isabel, e condená-la ao julgamento no Penhasco.

 

Pesarosas, As Irinis me observam, enquanto suas cachoeiras com águas velozes atingem o mar ferozmente. Tal como eu temo que façam com Isabel, jogando-a do topo do Penhasco. Tudo por minha culpa. Minha fraqueza em deixá-la, meu egoísmo de tê-la, meu pecado, minha ruína.

 

Nenhuma dor será maior que essa e nenhum castigo será pior do que aquele que minha própria mente me causa. Eu sei o que farão e não posso evitar. Não há mais nada em mim, nem luz, nem escuridão. Perdoe-me pelas tristes palavras, mas serão as últimas. E nossa história, apesar do triste fim, se perpetuará em você, meu filho.

 

Saiba que sua mãe, foi a mais doce das criaturas que já passou pela Terra, e saiba que seu pai, foi alguém que amou mais do que os céus possam compreender, com uma imensidão que ecoará através dos tempos.

 

Nós nos amamos acima do explicável, e faríamos as mesmas escolhas se estas nos levassem a ficar juntos novamente. É por isso, que agora renuncio à minha dádiva e pulo para encontrá-la na outra vida.

 

Seja forte, meu filho. Perdoe-me por não ficar ao seu lado, mas uma vida sem Isabel faria de mim uma tela branca, prefiro que saibas de mim assim.

 

Saiba que o Penhasco é um lugar que pode ser encontrado apenas pelos que possuem boas intenções e são puros de coração. O Conselho pode tê-lo achado com seus fortes poderes, mas é graças a ele que nos libertaremos do outro lado, pois aquele que pula do Penhasco terá, à sua frente, o limbo ou a redenção. Se as Irinis ainda jorram das cachoeiras, talvez haja esperança, pois os espíritos dessas águas só existem, onde há pureza.

 

Procure ver sempre a bondade em todos à sua volta, mas não se deixe enganar por sorrisos inimigos, algo que aprendi da pior maneira em minha inocência.

 

E digo em meu nome, e no de sua mãe: O amaremos infinitamente.

 

Seu pai,

Mikael."


Massageei a têmpora e suspirei. Deixei meu corpo cair sentado no chão e fitei os pés de Irmã Daiana. A culpa de tudo aquilo era minha. Meus pais, Liza. Em vez de fazer valer a pena o sacrifício deles, repeti os mesmos erros. Fiz as mesmas escolhas erradas. Como um círculo vicioso. Zelei por Liza por toda sua vida e a condenei ao me aproximar. Por ser um fraco, tolo, egoísta.

Mas não tive escolha. Na noite em que os pais dela desapareceram, se eu não a tivesse atraído, não sei o que teria acontecido a ela. Havia uma lacuna vazia nessa história.

Se o interesse de Morte estava apenas em mim, se eu era a quebra do tratado, o que seria essa presença que persegue Liza?

Sinto que há algo mais que a Irmã Daiana não me disse. Ou talvez, ela mesma não saiba.

E quanto ao amigo de meu pai? Seria Olaf o mesmo homem que me visitou no orfanato? Aquele que tentou manipular meus pensamentos?

— Vamos, querido. Vamos dar uma volta. Acho que um pouco de ar puro lhe fará bem. O pátio está vazio, as crianças estão em aula. — Ela se levantou com dificuldade da cadeira e me puxou pela mão.

— Sempre adorei a forma com que se refere às crianças, mesmo quando muitos já são quase adultos.

— Se pudermos sempre enxergar um pouco da pureza, ou da inocência, mesmo que lá no fundo, então nada estará perdido.

— Será que foi dessa maneira que meus pais encontraram a paz? Acreditando que o amor deles seria suficiente para que se reunissem do outro lado?

— Você tem dúvida de que eles tenham se encontrado? Acredito que duas pessoas unidas de tal forma, jamais possam ser realmente separadas. — Ela se sentou em um banco de pedra, apoiou a muleta ao lado e bateu com a mão, insinuando que eu me sentasse no espaço vazio.

Eu esquecia frequentemente que ela estava cega. Sentei-me, e fiz a pergunta que me maltratava:

— Mas não acha que a lembrança traria saudade, e logo, sofrimento? — Eu estaria condenado de qualquer maneira. Jamais conseguiria esquecer Liza.

                  — Existem certos momentos em nossa vida que são os melhores, mas por o serem duram apenas um segundo, ou assim que nos parece. Mas são esses momentos que fazem tudo valer a pena. Momentos que o alegrariam no mais profundo abismo. Bastaria deixar-se recordar e os estaria revivendo.

                  — Obrigado. Você sempre parece saber exatamente o que me dizer. Mesmo assim, ainda me sinto culpado. Pelo sofrimento dos meus pais. Por ter condenado Liza, da mesma maneira.

                  — Você não tem culpa de nada, meu filho. O erro foi do Conselho. Por pensar que poderia fazer um tratado com Morte. Por pensar que poderia aprisionar a Serpente, a Alma Negra.

                  — E o que aconteceu? A Alma Negra está solta na Terra? Morte está atrás de mim? O Conselho dos Anjos ainda existe?

                  — Infelizmente, não posso afirmar, meu filho. Tudo o que lhe contei, descobri através de seus pais.

Irmã Daiana se levantou e se afastou. O pesar em sua voz me fez desconfiar de que havia mais a me contar, mas ela não dizia, para me poupar.

— Preciso repousar, filho. A idade pesa em meu corpo.

Acompanhei-a de volta ao dormitório. Lhe daria algum tempo até que criasse coragem para me revelar toda a verdade.

Eu não tinha medo da Morte, não temia ser julgado pelo Conselho. Temia apenas o que poderia acontecer à Liza. Eu temia o desconhecido. O algo sinistro que nos rondava. Algo mascarado. Que buscava alguma coisa, mas eu não sabia o que era.

Repassei mentalmente as palavras da Irmã Daiana, o desespero me afligiu.

"Alguns chamavam a Alma Negra de A Serpente, pois ela vagava entre os corpos pela Terra, hospedando-se nos humanos, de corpo em corpo. Em busca de uma alma específica. A única forte o bastante para lhe garantir uma morada definitiva, e espalhar sua maldição entre os humanos."

E se fosse... Liza?



Capítulo 36

PROPOSTA

 

Liza

 

O susto me paralisou quando cheguei ao quintal nos fundos. Além da réplica perfeita do último Natal com os meus pais, da árvore com bolas douradas, laços vermelhos, as velas nos castiçais e o tapete debaixo da mesa, Ethan terminava de pendurar um fio de lâmpadas pisca-pisca no alto. O quintal estava mágico. Iluminado por dezenas de luzes que se moviam ritmadamente. Notei que ele tinha um corte na boca, que não estava ali no nosso encontro da manhã anterior.

— Ethan... Não acredito que fez tudo isso sozinho. Eu poderia ter te ajudado.

                  — Não se preocupe, Liza. É um presente meu para agradecer à hospitalidade em sua casa, e por apoiar o meu envolvimento com Raquel.

— O que houve com seu lábio?

                  — Não foi nada demais, bobeira minha, tropecei descendo a escada e mordi o próprio boca.

— Você não quer ver isso com um médico? Parece que precisaria de pontos.

— Bobagem, Liz, estou bem. Vamos, sente-se! Pare com isso antes que eu fique envergonhado. Vou chamar Raquel para descer e poderemos atacar.

— Desculpe, Ethan, mas eu gostaria de esperar o Ben e a Amanda. Sei que eles estão atrasados, mas pela hora, o voo deles deve ter aterrissado. Já devem estar chegando.

— Que cabeça a minha, Liza. O Ben acabou de ligar. Ele se desculpou porque ele e Amanda não poderão retornar hoje. Devido ao tempo impróprio, o voo deles foi cancelado.

Murchei. Além da demora de Nathaniel para voltar, eu sentiria a ausência dos meus amigos no primeiro Natal sem meus pais.

Ethan saiu para buscar minha irmã. Sentei-me sozinha na mesa, e depois de alguns minutos, comecei a me perguntar o motivo da demora deles em descer. Estava prestes a levantar quando Ethan voltou ligeiramente abalado.

— Raquel ainda não está pronta?

— Ela está um pouco indisposta, me disse que tomou um remédio para enjoo e precisa dormir um pouco. O sono é um efeito colateral.

— Enjoo, por quê? Acha que ela precisa de um médico?

— Não, acho que ela teria sinalizado. Também não me pareceu nada sério. Nós exageramos no chocolate nessa viagem, mas sempre tive um estômago forte. Ela realmente gosta de chocolate, sabia? Acho que chegou a comer mais do que eu, se é que isso é possível.

Vi-me rindo e de súbito me senti mais relaxada. Era fácil quando estava com ele. Bebemos vinho e conversamos por um bom tempo. Não vi as horas passarem.

— Ethan, preciso dizer que você deveria abrir um restaurante. Estava tudo delicioso!

— Fico feliz que tenha gostado.

Trocamos um olhar por um momento em silêncio. Ethan acariciou o meu braço. Não gostei do arrepio que seu toque provocou. Percebendo o meu desconforto, ele iniciou um novo assunto.

— Liza, acho que nunca contei a você o que me trouxe a Winterhill, não é mesmo?

— É verdade. Até já quis te perguntar isso. A única coisa que sei é que se mudou há pouco tempo.

— Meu pai é dono de uma grande construtora, a empresa dele foi contratada para transformar o Pallais, atualmente um restaurante de cinco estrelas, em um SPA luxuoso. Eu estou aqui para supervisionar o início das obras.

— Interessante. Mas um SPA de luxo para uma cidade pequena?

— Eu me fiz a mesma pergunta. Mas as pesquisas indicam que o turismo está crescendo devido às belezas naturais daqui: As cachoeiras, as colinas, as praias...

— E após o início das obras, não pretende continuar aqui?

— Você é rápida. Na verdade, não. Preciso retornar a Nova Iorque em breve, meu pai está para se aposentar e eu devo assumir os negócios da família.

— É uma pena. Já conversou sobre isso com a Raquel? Ela vai ficar triste.

Já podia imaginar Raquel de volta à sua antiga vida. Àquela que me enlouquecia.

— Talvez, ela não precise. — Ele sorriu. Parecia satisfeito com a própria ideia.

— Mas... como?

— E você também não precisará sentir falta dela. Acho que podemos chegar a um acordo que agrade a todos. Minha proposta, aliás, muito me agrada.

Arregalei os olhos. Imaginei o que estava prestes a dizer e não pude acreditar naquilo. Era cedo demais. Raquel era muito nova, irresponsável e imatura. Mas não duvidei por nem um segundo que ela fosse aceitar. Apertei a taça de vinho com as duas mãos, colocando uma força desnecessária no gesto.

— Antes de continuar, Liza, quero dizer que não farei nada sem a sua aprovação. Se não nos der sua benção, terei paciência suficiente para esperar que se acostume com a ideia. Não desejo causar problemas entre vocês duas. Basta dizer não e estará decidido.

Talvez, para ele. Raquel criaria uma guerra se soubesse que atrapalhei seus planos com Ethan. Ela pensaria na pior das possibilidades e nunca me perdoaria. Eu me vi num beco sem saída, e não conseguia dizer nada a Ethan.

Ele encarou o copo por alguns segundos antes de prosseguir. Eu esperei que concluísse sua proposta.

— Eu amo Raquel. Sei que é um pouco repentino e que tudo foi muito rápido. Mas quando estamos tão certos de algo assim em nossa vida... Por que esperar? Tenho sondado Raquel discretamente sobre isso. Acredito que ela compartilha do meu desejo. Pretendo me casar com ela. Claro, ficaríamos noivos primeiro, por um tempo, até você se acostumar à ideia e para cuidarmos dos preparativos. O que acha?

O sangue se esvaiu do meu rosto. Arfei e encarei o nada, com os olhos arregalados. Não consegui piscar. Por essa eu não esperava. Minha irmã caçula casada? Aos 17 anos? Morando em Nova Iorque com alguém que conhece, até onde sei, há pouco mais de um mês? De certa forma já estava decidido. Se eu lhe dissesse não, Raquel me culparia para sempre.

— Liza, respire. Por favor, não se esqueça de que ainda não ouviu toda a proposta.

— Tem mais?

— Sim, mas fique calma. Não há motivo para se preocupar.

— Desculpe Ethan. Você me pegou de surpresa. — Pousei a taça que eu ainda apertava na mesa. Meus dedos ficaram dormentes.

— Tem razão, não era o que pretendia.

— Tudo bem, continue.

— Eu espero de verdade que você possa ir conosco. Garanto que Raquel irá gostar de tê-la por perto. Eu também gostaria muito. Arcarei com todas as despesas, é claro. Você poderá arrumar um emprego melhor e quem sabe, até voltar para a faculdade? Raquel me contou que você cursava Psicologia, mas que devido aos problemas que enfrentaram, você abandonou o curso, não é verdade?

Somente acenei com a cabeça. Perdi momentaneamente a habilidade de falar.

— Pense bem, Liza. Será bom para vocês duas. Um novo começo. Você fará companhia a Raquel, poderá ajudá-la a planejar o casamento, voltará para a faculdade, conseguirá um emprego melhor. E digo mais uma vez, eu arcarei com todas as despesas. E é melhor que tudo seja feito agora. Vocês estão há pouco tempo na cidade, imagino que não tenham criado muitos vínculos. Nada impede vocês duas.

Ele não sabia que o vínculo, era um humano metade anjo chamado Nathaniel, que justificava a razão de minha existência. Somado aos dois melhores amigos que me acolheram no momento em que mais precisei. E jamais o deixaria arcar com todas as despesas. Sempre gostei de trabalhar. Não gostava da ideia de ver Raquel tendo uma vida de princesa. Ela se acostumaria rápido demais. E se algo desse errado? Estaríamos perdidas. A proposta, por mais generosa que parecesse, era incabível nos meus conceitos.

Ele esperou pacientemente enquanto bebi o restante do vinho em minha taça. Fitei-a vazia em minhas mãos. Permaneci muda. Senti meu rosto mudar de cor na medida em que organizava a minha resposta.

— Ethan... É realmente muito generoso da sua parte. Vejo que suas intenções são as melhores, mas não posso aceitar. Vai contra todos os meus princípios. Se eu aprendi algo com tudo o que enfrentamos, é que nunca devemos desconsiderar o improvável, o inesperado. Se algo entre vocês der errado, não sei o que será de nós duas. Eu não aguentarei outra mudança, acredito que Raquel também não. Além do mais, acabamos de começar, já temos o novo início.

— Achei que tivesse mais confiança em mim, Liza. E você já se perguntou se Raquel teve de fato um novo começo? Sinto ser eu a lhe dizer: Ela não está feliz aqui.

Ethan soou rude. Sua voz saiu seca, áspera. E o brilho assustador em seus olhos, de repente me deixou em alerta.

— Me desculpe. Como eu disse, eu sempre conto com o inesperado. E sim, eu me pergunto com frequência se Raquel está feliz. Acho que isso não se deve apenas ao fato de estar aqui. Ela precisa de mais tempo para superar a perda dos nossos pais. Se ela desejar casar com você, terão a minha benção. Mas espere mais um pouco, deixe eu me acostumar com a ideia. Ainda assim, a minha resposta permanece a mesma: Eu não irei à Nova Iorque com vocês. Até porque, acho que recém-casados não devem querer morar com a cunhada. — Pisquei tentando parecer descontraída, no intuito de aliviar a tensão que ele emanava.

Ethan tremeu. Segurou a mesa com ambas as mãos. Seu rosto ardeu em chamas. O vinho escorreu pela toalha quando ele se levantou bruscamente e deu a volta na mesa. Ele me encarou de perto. Encolhi diante de sua fúria, me senti frágil ali sentada, sozinha.

— Você não passa de uma egoístazinha! Cansei de ser gentil com você. Chega. Está decidido e você vem junto, querendo ou não. Você sempre foi assim. Uma mimada cheia de vontades!

— Ethan, eu não... o que está fazendo? Sempre fui... assim?

— Cala a boca!

Ethan colocou suas mãos em meu pescoço e apertou com muita força. Não consegui me libertar de seus dedos. Enfraqueci ainda mais ao fitar seus olhos escuros. Perdi o ar. Pisquei uma, duas vezes. Em poucos instantes não vi mais nada à minha frente. O horizonte girou e caí na escuridão. 


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Olááá, o que estão achando? E o Ethan hein? Teorias? ^^


Quero fazer uma enquete sobre as postagens com vocês.

Preferem os capítulos postados em dias alternados e mais vezes, ou assim de uma vez, um atrás do outro como tenho feito?


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Beijosss



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