Capítulo 65
CEMITÉRIO
Liza
Eu não soube bem o porquê, mas acabei concordando que o Delegado Machado viesse comigo. Talvez fosse pela pressa, talvez eu estivesse morrendo de medo. Eu só sabia que nenhum dos dois iria me impedir.
Ele dirigia em silêncio, havia desistido de arrancar algo de mim, já que o pouco que eu sabia não poderia dizer e não conseguia encontrar uma razão para alguém desejar ferir Raquel.
— Liza, eu sei que não quer conversar agora, mas é meu dever lhe orientar. — Usei todas as forças que me restavam para prestar atenção nele. — Qualquer ser humano, com um pouco de bom senso, sabe que não se entra em um cemitério à noite, sendo uma mulher indefesa e muito menos quando orientado por um bilhete ameaçador.
— Tem razão, Delegado Machado. Mas o que faria no meu lugar?
— Procuraria ajuda.
— Fico feliz de ter encontrado você — menti tentando acabar com a conversa. Ele pareceu um pouco mais satisfeito e amaciou a voz:
— Eu não acredito que iria realmente se enfiar sozinha no Jardim dos Anjos no meio da noite. Nunca ouviu dizer que é assombrado? Não que eu me preocupe com isso, mas imaginei que você... — Ele hesitou em concluir a frase, provavelmente imaginava que eu teria medo.
— Eu não acredito em assombrações, aliás, não tive tempo para raciocinar. Eu não sei o que estou fazendo e não entendo o que está acontecendo! — Tirei a máscara do rosto e encostei a testa no vidro gelado da janela.
— Confie em mim e faça exatamente o que eu disser — disse pausadamente, enquanto manobrava o carro na entrada do cemitério e seu rosto se agravava.
Somente balancei a cabeça. Tinha muitas dúvidas e sabia que não teria tempo de respondê-las. Precisava agir rápido contra o que quer que nos aguardasse.
Meu sangue ardeu ao imaginar o que teria acontecido a Nate. Eu precisava não pensar nele e me manter sã. Seria tão difícil quanto parar de respirar por conta própria.
Esperei no carro conforme a orientação do Delegado Machado. Ele circulou a área segurando um revólver apontado para baixo. Provavelmente pensava em alguma maneira de se livrar de mim. Era o mesmo que eu pensava, pelo menos.
Desci do carro e me senti com vendas brancas cobrindo minha vista. No tempo de um piscar de olhos, as nuvens tinham descido do céu. Estiquei minha mão à frente e não consegui enxergá-la.
— Delegado Machado? — sussurrei. — Você está me ouvindo?
— Liza, o que faz aqui? Esse lugar é perigoso! — me respondeu a voz de Ethan. Ouvi passos se aproximando.
— Ethan? É você? — Tateei pelo ar. Nuvens brancas passaram entre meus dedos. O silêncio foi minha única resposta.
Continuei ouvindo passos no asfalto, mas não havia ninguém ali. Andei de forma desajeitada no que eu esperava que fosse em direção à entrada do cemitério. Um vento forte e repentino fez com que a neblina se atenuasse um pouco e pude enxergar onde me encontrava: Debaixo dos portões de ferro do Jardim dos Anjos. Acima das grades havia duas estátuas brancas, em tamanho real, de crianças com as cabeças abaixadas, penduradas no portão, como se tentassem sair dali. A imagem me causou um arrepio na nuca. Abaixo delas, os dizeres em letras de ferro:
"A morte habita, onde há vida. Aqui jaz o nada, para que não seja bem-vinda. Se aqui entrar sem convite, só sairá ao pagar."
Tentei ignorar o fato de que acabei de ler uma inscrição em latim e compreendi. Parecia um péssimo presságio.
Como assim só sairá ao pagar?
Continuei pisando passo a passo lentamente. Não sabia para onde deveria ir. Pensei em me guiar pelo som, mas até o ar estava parado. Úmido. As brumas cobriam todo o caminho. Só me era possível enxergar o topo das estátuas mais altas. Anjos das mais variadas formas estavam espalhados entre os túmulos. Alguns pareciam vivos, outros tinham olhos vermelhos que se destacavam na escuridão. Precisava achar Raquel e sair logo dali.
Senti-me andando em círculos. As estátuas me confundiam. Comecei a indagar quanto tempo já havia perdido. Talvez o Delegado Machado estivesse certo e o lugar fosse mesmo assombrado, afinal, se eu consegui achar o portão e entrar, não deveria ele ter conseguido também? Onde estaria?
Resisti ao impulso de correr para longe. De repente, um vento forte cortou minha pele. Tudo que eu ouvia era o barulho de meus pés sob as folhas secas no chão. Sentia frio, muito frio. Se é que isso seria possível, meus passos ficaram ainda mais lentos. Esfreguei meus braços tentando me aquecer.
Bati em algo com o joelho.
A neblina se dispersou um pouco. Vi que cobria o banco de mármore branco à minha frente. Um senhor repousava a cabeça sobre as duas mãos e chorava copiosamente. Sequer notou minha presença. Contornei o banco silenciosamente e me dirigi para o outro lado, quando o senhor pareceu fungar:
— Liza?
Congelei onde estava e me virei. Seria a pessoa que escreveu o bilhete?
Aproximei-me lentamente, a neblina não me permitia enxergar o rosto dele.
Parei o mais próximo que minha coragem permitiu e esperei.
— Não me reconhece? — perguntou o senhor.
Dei mais um passo e me inclinei para vê-lo. Assim que o reconheci, recuei. Esbarrei na lápide atrás de mim. A fúria me dominou, todo meu corpo tremeu. Era ele. O único homem associado ao desaparecimento de meus pais. Emmanuel, o bêbado na delegacia.
— Deveria ter imaginado a sua reação, Liza, mas preciso lhe dizer uma coisa.
Eu tinha milhões de coisas para perguntar, mas não conseguia. Nunca senti tanta raiva de alguém, me assustei com meu próprio desejo de matá-lo.
— Por quê, Emmanuel? Já não foi o suficiente acabar com meus pais? Agora você quer minha irmã? O que você fez com ela?
— Você precisa me escutar, Liza! — Emmanuel voltou a chorar. — Eu nunca fiz nada a seus pais, não sei o que aconteceu a eles. Eu jamais faria algo tão ruim, sou um covarde. Eu não consigo acabar nem com minha própria vida, Liza! — ele soluçou e pegou a arma ao lado dele no banco.
Dei um passo para trás. Deixei a lápide cobrir metade do meu corpo.
— Por que eu deveria acreditar em você? — indaguei quando minha voz voltou. Precisava distraí-lo, era a única coisa a fazer.
— Por que eu, Emmanuel, sou ex-marido da sua avó. Nós retornamos para a Europa assim que você nasceu. Eu e ela criamos um filho. Quer dizer, ela criou. Quando abandonei os dois, ele ainda era uma criança. E eu fugi. Adiei por anos esse momento. Mas chegou a hora de contar a verdade.
— Você está mentindo. Minha mãe teria me falado.
"Teria?", perguntou a voz insistente na minha cabeça.
Pensei no diário, deveria estar tudo ali.
— Eu não me orgulho de nada que fiz nessa vida, Liza. O que eu e Sarah fizemos é a pior parte dela. Acredite em mim, eu queria estar mentindo. Sua mãe não lhe contou porque nunca soube.
— Eu não sei do que você está falando.
— Eu vou lhe dizer, Liza. Se irá acreditar em mim ou não, não depende de mim. Mas pelo menos, morrerei em paz por saber que não levei isso para o túmulo.
Fiquei confusa. Seria esse o segredo que uma vez ouvi meus pais sussurrando no quarto? Como poderia acreditar em um completo estranho? Familiar somente por ter sido apontado na delegacia, como o homem que indicou o caminho que levou meus pais a desaparecerem?
Senti algo cutucar meu tornozelo. Ethan estava agachado ao meu lado, com as costas na lápide. Ele levou os dedos até o lábio me pedindo silêncio. Eu suspirei aliviada. Acenei discretamente a cabeça para que Emmanuel não notasse. E, estranhamente, Ethan desapareceu na neblina.
Emmanuel arregalou os olhos. Esses se fixaram em algum ponto atrás de mim. Aterrorizados. Espiei por meus ombros, mas não havia nada às minhas costas.
— Não! Ela precisa saber antes que eu morra! — ele gritou para o vazio.
Emmanuel se levantou segurando a arma. Ele parecia lutar com uma mão invisível, enquanto se esforçava para caminhar em minha direção. O braço com que segurava a arma se moveu lentamente, como se algo empurrasse o revólver na direção do rosto dele. Ele tremia pelo esforço. Emmanuel apontou a arma para a própria cabeça e parou a um passo de mim. Parecia exaurido de lutar contra o que quer que fosse que o segurava. Por um instante, me pareceu estar numa batalha contra si mesmo.
— Sinto muito, Liza — foi o que ele disse antes de atirar na própria cabeça.
O ruído abafado do tiro rompeu o silêncio. Em seguida, ouvi o baque do corpo dele atingindo a superfície.
Deixei-me sentar nas folhas caídas no chão. Não havia força nas minhas pernas. Pela primeira vez naquela noite, agradeci pela neblina. Graças a ela, eu mal conseguia enxergar o corpo a centímetros de mim. Fiquei ali sentada, camuflada entre as brumas. Tentando assimilar o que acabava de acontecer.
Naquele momento, desejei que minha vida voltasse ao que era antes. Com meus pais vivos, sem preocupações de vida e morte. Mas Nate seria inesquecível, mesmo que um milagre me deixasse mudar o passado, sem ele, eu nunca estaria completa.
— Você pode, Liza. Mudar o passado — murmurou uma voz feminina vindo de lugar nenhum.
Levantei-me procurando de onde veio. Afável e arrepiante, a voz me penetrou como se dedos invisíveis perpassassem pelos fios de meus cabelos. Olhei ao meu redor, até onde meus olhos alcançavam, e por entre as brumas, vi a mulher mais bela que deveria ter existido. Ela era fascinante. Seus cabelos negros caiam lisos até o chão, pareciam macios como veludo. Sua boca vermelha, falou tão suavemente quanto o vento. A neblina se dispersou a sua volta enquanto se movia em minha direção. Pairando no ar. Apesar do arrepio que sentia no estômago, a visão da seda azul esvoaçante a sua volta em contraste com sua pele perolada era algo além do explicável. Tive uma sensação estranha de déjà vu.
Onde eu a vi antes?
Ela parou a centímetros de mim. Quando fitei seus olhos, caí de joelhos. Eram violeta com pontos púrpura, iguais aos de minha mãe.
— Não chore, querida. Vim lhe mostrar seus pais — sussurrou sedutoramente.
— Por favor, eu sei que isso é impossível. Não faça promessas — deixei que minha emoção me dominasse.
— Não é uma promessa. É uma oferta. Eu lhe dou o que você quer e você me dá algo em troca. Aceita? — Ela sorriu quando me ofereceu a mão.
— Mas o que eu posso ter que lhe interessaria?
— Confie em mim, Liza, não vai lhe fazer falta.
— É a segunda vez que me pedem isso hoje. — Meus pensamentos estavam sem resistência. Se ela insistisse, daria a ela o que quisesse. Um cheiro forte de orquídeas queimou minhas narinas. — Quem é você?
Ela riu, jogando os cabelos para trás. Acariciou meu queixo e seu toque me deixou nauseada:
— Você não entenderia. Vamos começar por meu nome. Eu me chamo Ivanka — concluiu me oferecendo a mão novamente.
Apertei sua mão e o cheiro forte de orquídea queimou a minha pele. Eu não sentia mais frio, as neblinas tinham ido embora.
Eu estava na sala da casa onde morei com meus pais, falava no celular com Amanda e ouvi um barulho na cozinha. E não pude acreditar no que acontecia.
Era o dia do meu aniversário. Observei enquanto nos arrumávamos para sair, meu pai colocava as malas no carro. Raquel sorriu ao chegar à sala.
— Vamos, Liza! Desliga esse telefone! — Raquel gritou animada.
Acompanhei a versão de mim no passado descendo as escadas, minha mãe a abraçou:
— Não consigo acreditar que já está fazendo 21 anos! — falou ligeiramente chorosa.
— Prometo que continuarei a mesma — meu eu respondeu sorrindo.
Observei a cena estupefata, até que as imagens começaram a se distorcer. Eles estavam desaparecendo. Tentei chamá-los, mas as formas se modelaram à minha frente e deram lugar para outra lembrança. Eu estava no banco de trás do carro. Meu pai estacionou em frente a uma oficina. Eu via mais um dia do passado, o dia em que chegamos à Los Angeles.
Eles desceram do carro e trocaram algumas palavras com o homem na porta. Naquele minuto, eu teria gritado se sentisse que poderia. O homem era Nate. Eles conversavam quando o vi levantar uma chave de fenda e bater com toda a força em meu pai. Sua expressão era a de um louco. Sem parar para olhar pra trás, ele foi até minha mãe e a acertou com a mesma violência.
— Nãooooooooooooo! — berrei. Uma garra em minha garganta me rasgou por dentro até atingir o meu peito, tirando todo o meu ar.
— Liza, você precisa ser forte — Ivanka tentou suavizar meu desespero. — Se pensar apenas em seu sentimento por ele, jamais enxergará a verdade.
A visão se dissipou e estávamos de volta ao cemitério, me senti prestes a desmaiar. O aroma que Ivanka exalava parecia vir de dentro de mim. A garra, antes em minha garganta, havia se espalhado por todo o meu corpo, me dilacerava. Eu sabia que aquela visão não era real. Meu Nate seria incapaz dessa monstruosidade. E eu não confiava naquela mulher. Ela estava me manipulando para conseguir alguma coisa. Eu tinha que sair dali.
— Ivanka, eu preciso ir. Minha irmã está aqui e corre perigo.
— Você está se esquecendo de uma coisa, Liza. — Ela sibilou as palavras e flutuou até mim, me queimando com seu cheiro de orquídeas. Seus dedos frios passaram pelo colar que eu usava. O presente de Nate. Fiquei imóvel e não porque era o meu desejo. — Eu lhe mostrei seus pais, você me deve algo em troca.
— Você não me mostrou nada, porque o que eu vi era mentira.
— Não há nada que eu possa fazer quanto as suas crenças. Agora, o seu colar, por favor. Não me faça pedir de novo. — Quando Ivanka falou, meus olhos arderam intensamente, como mergulhados em lavas de um vulcão. No mesmo momento fiquei incapaz de abri-los, a queimação foi agonizante. A ardência latejava por minha cabeça.
Implorei para que a dor parasse, que ficasse cega, mas que jamais sentisse aquilo novamente. Coloquei minhas mãos sobre as pálpebras e meu grito foi interno. Garras cortavam meus olhos de dentro para fora.
Ouvi um rosnado, ou talvez a dor me fizesse alucinar. Era demais para uma noite, e eu ainda estava longe de encontrar Raquel, se é que eu conseguiria sair dali para salvá-la.
A queimação em meus olhos se atenuou, e minha lógica voltou a agir enquanto as garras me cortando, se aliviavam lentamente. Quando senti que conseguiria abri-los, o fiz em câmera lenta, temia o que encontraria à minha espera.
Para minha surpresa, Ivanka havia sumido. E o rosnado não foi alucinação. Um Husky Siberiano, muito grande para sua raça, me fitava com olhos cor de âmbar, apoiado sob as duas patas dianteiras. Ele me olhava de uma maneira, seria certo dizer, protetora? Movi-me lentamente. Parecia um lobo, poderia ser feroz. Mas seu olhar me transmitia segurança. Que coisa estranha.
Antes que eu enlouquecesse, me afastei de qualquer pensamento relacionado às últimas horas e me coloquei a andar. A neblina havia se dispersado. Quanto antes chegasse até Raquel, mais cedo iria embora dali.
Onde diabos estavam Ethan e o Delegado Machado?
Ouvi passos leves atrás de mim. Suspirei aliviada quando o Husky Siberiano lambeu minha mão. Não faria mal nenhum ter um guarda costas naquele momento.
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Chegando na reta final do livro ='( O que estão achando? Alguém aí vai fica com ressaca literária?Comentem e deixem estrelinha! =D
Gente, mil desculpas pela demora em postar essa semana. Tive um problema feio no meu pc, vcs me perdoam? Pra compensar postei 3 capítulos de uma vez!
SOBRE O SORTEIO QUE EU HAVIA COMENTADO COM VOCÊS. VOU DIVULGAR AS REGRAS AQUI NO DOMINGO, E SERÁ DE UM KIT SUPER ESPECIAL! JÁ POSSO ADIANTAR QUE AS REGRAS ENVOLVEM VOTAR E COMENTAR, ENTÃO APROVEITEM!
Beijossss e até domingo!
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