Capítulo 59
Liza
O Penhasco lamentou a ausência de Nate comigo. Olhei para o alto das Colinas, onde dias antes tive a melhor noite da minha vida. Foi tudo tão calmo que cheguei a acreditar que ficaríamos juntos de verdade, sem nada no caminho, até aquelas chamas aparecerem. Meu braço, apesar de ter ficado sem marcas, ainda ardia com a lembrança viva do fogo.
Espreguicei-me sob a árvore, deveria ter adormecido com o barulho calmante das cachoeiras, mas me levantei assustada ao ver o sol se pondo no horizonte. Nate deveria ter retornado há horas e se eu esperasse mais, perderia a cerimônia de Raquel.
A cada segundo que ficávamos distantes, o ar sentia mais dificuldade para encontrar o caminho de meus pulmões. Levantei. Ao descer o olhar para um arbusto florido, suspirei aliviada ao ler o título do livro: Cem Anos de Solidão. Eu o abri para constatar se as páginas do diário continuavam ali e decidi ler o restante em casa.
Criando coragem para deixar o Penhasco e me deparar com as cruéis palavras naquelas páginas, acariciei as asas de meu pingente. Não tirei o colar desde que o ganhei. Fiz o trajeto de volta para casa acompanhada de uma oração silenciosa para que Nate estivesse chegando. Incapaz de reprimir minha curiosidade, sentei logo na varanda de casa. Tomei fôlego e li a página seguinte do diário:
"11/06/1978 — 8:53
Saint Agnes Hospital — Baltimore — Maryland
Escrevo com os braços cansados. Minha visão está turva, mas acho que agora acabou. Vi flashes de pessoas a minha volta, vestindo aventais azuis e luvas nas mãos.
Uma agulha espetava meu braço.
'É uma menina.', ouvi um sussurro.
Menina, então.
'O diário? Onde está o diário?', foi minha primeira pergunta. O silêncio em resposta provavelmente era crítico a minha reação.
Que tipo de mãe acorda da sedação após o parto perguntando sobre um diário?
Em seguida, uma mão segurou a minha e me entregou o pequeno caderno espiralado. Expirei aliviada.
Essas páginas são cruciais, pois somente aqui eu me permito desabafar, ou essas dúvidas se espalhariam em meu sangue como um veneno, até se transformar em doença.
Porque ninguém, além de mim, sabe. E ninguém acreditará se eu disser. Para minha mãe, relatei apenas metade dos fatos. Não sei a razão, mas ela me apoiou durante a gravidez. Deve ter acreditado que isso faria Paul se afastar, ou me faria desistir dele.
A verdade é que ela o detesta, nunca foi também de grandes amores por mim. Seus olhos me perfuram com a culpa que me jogam. Ela me culpa pela morte de meu irmão gêmeo. Minha mãe, Sarah, queria um menino. Mas os médicos precisaram escolher o bebê com mais chances de sobreviver na hora do parto. Eu.
Tenho esse conhecimento, pois ela mesma fez questão de esbravejar para mim em inúmeras oportunidades. Acredite.
Mas hoje é o dia mais feliz da minha vida. Eu devo dizer isso, não devo?
Pelo menos seria, no caso de qualquer mãe, o momento do nascimento de um filho.
Seria.
Se fossem outras as circunstâncias.
Nas outras páginas aqui, mencionei o bastante. Falei sobre as tormentas da minha vida, das sombras, responsáveis por me tirar dos trilhos e amaldiçoar o destino dela, que poderia apesar de tudo, ter nascido na inocência.
Infelizmente a recordação daquela noite macabra deixará para sempre essa marca em mim, o medo, a dúvida do que virá agora. O fruto da noite em que aquilo me pegou de surpresa e não consegui escapar.
Assim como a lembrança da noite em que quase abortei me atormenta.
Mesmo com a decisão de seguir em frente, muitas vezes desejei voltar atrás. E se eu tiver gerado um monstro?
O que faria aquilo ao nascer? Aquilo não, uma menina.
Deus! Agora penso no verdadeiro monstro. Eu. Por ser capaz de pensar assim da minha própria filha, minha menina.
Mas foram nove meses de pesadelos. E eu vivi tudo sozinha!
Paul, como eu sinto a sua falta. Acreditará em mim se eu disser a verdade?
Poderia criar essa menina comigo?
Preciso tanto vê-lo. É o homem mais decente que já conheci na vida, o mais companheiro, o mais amoroso. Perdoe-me Paul. Perdoe-me por ter fugido para Londres sem deixar nenhuma explicação. Você não merecia nada disso.
Sou diferente, agora. Eu me tornei mãe. Mãe.
Insisti com Sarah e consegui. Voltamos para Baltimore um mês antes do nascimento, e aqui estou eu. Não que isso fosse adiantar de alguma coisa, mas eu queria estar perto de Paul. Mesmo ele não sabendo ainda que eu estava aqui.
Sobre a menina, meu medo se confirmou com a visita que recebi depois de dois dias do nascimento dela.
Senhor, por que fomos amaldiçoados?
Chorei rios de lágrimas pela declaração daquela mulher enigmática:
'Ao completar vinte e um anos, ela será evocada.'"
***
O barulho da chave na porta me trouxe de volta. Em seguida, escutei o som de salto batendo no assoalho. Amanda andou impaciente até o banco onde eu estava sentada.
Continuei paralisada, submersa nas palavras do diário. Afogando-me em desespero. Tive tempo somente de fechar o livro com o susto. E para piorar a situação, Nate ainda não havia retornado do funeral da irmã Daiana.
— Até que enfim, Liza! Você sabia que falta uma hora para a cerimônia? Até o Ben já está se vestindo! — Vendo que eu não respondia, Amanda suavizou: — Está tudo bem?
Assenti.
— Nate está atrasado. Só isso — balbuciei fitando um ponto fixo no horizonte. Eu devia parecer a namorada patética que se deprimia toda vez que o namorado fazia alguma coisa, mas nesse caso havia muito mais em jogo. A vida dele. A minha vida. E agora isso. A verdade que eu descobri sobre mim. As palavras monstro e evocada reverberavam batendo nos cantos vazios e escuros do meu cérebro. Mas Amanda não parecia me achar uma bocó. Fiquei silenciosamente grata a ela.
— Venha, vamos arrumá-la. — Ela me puxou gentilmente e andou comigo para dentro de casa.
Amanda cumpriu a promessa e alugou o vestido para mim. Sem alças, caindo até meus pés, cor prata, brilhante como seda. O busto era rendado e coberto de pedras. Amanda prendeu meu cabelo em uma trança de lado, deixou duas mechas finas caírem sobre o meu rosto e me maquiou.
Eu me contorcia na cadeira colocada de frente para o espelho do armário. A cada som que escutava na casa, imaginava se seria Nate. Ela anunciou que havia terminado e me chamaria quando chegasse a hora. Eu não precisei me estender em explicações, Amanda me conhecia o suficiente para entender minha necessidade de ficar sozinha.
Assim que ela saiu, abracei os joelhos. Eu desejei ser engolida por um buraco no chão, onde poderia me encolher e talvez me esconder para sempre do vazio que me assolava.
Imaginei Nate sozinho no funeral, chorando pela mãe que o criou, aquela que o manteve a salvo.
Por que o deixei ir sozinho? Por que não insisti mais?
Agarrei-me a ideia de que talvez ele só estivesse querendo um tempo sozinho para refletir e colocar a cabeça no lugar. Esse pensamento me acalmou um pouco. Mas eu ainda teria de contar sobre o diário. Não poderia mais esconder.
Três batidas leves na porta me chamaram. Não daria mais para esperar. Hora de ir para a cerimônia. Cada célula do meu corpo se contorceu relutante.
Lutei para forrar o vazio em dentro de mim e desci as escadas atrás de Amanda. Ben estava de pé à beira da escada como se esperasse seu par para o baile. Usava um terno azul marinho que lhe caía muito bem. Seus olhos faiscaram por Amanda. Enviei-lhe um sorriso preguiçoso quando ele ofereceu a mão para ajudar Amanda a descer o último degrau.
— Madame — ele falou e repetiu o gesto quando eu me aproximei. Então ele deixou as mesuras de lado, bateu as mãos e as esfregou uma na outra. — Vambora porque eu to doido pra tomar umas.
Amanda sacudiu a cabeça em descrença.
— O quê? Você acha que eu vou aturar essa cerimônia antes do baile por quê? — disse de forma divertida, piscando o olho para mim.
Eu sabia que os dois faziam aquilo para me dar apoio. Acho que todos nós acreditávamos que, depois da formatura, Raquel se casaria e estaria fora da minha vida. Era o baile da despedida, ainda bem que eu tinha eles dois ao meu lado.
Ben se adiantou para a porta, mas Amanda o interrompeu:
— Calma. Esqueci a melhor parte. — Ela correu escada acima e voltou um minuto depois. — As máscaras! — Ela esticou a mão à frente para nos mostrar.
A de Ben, preta. Simples, mas misteriosa, era presa com um elástico atrás da cabeça. A de Amanda era daquelas de segurar na frente do rosto, chique e da mesma cor de seu vestido verde brilhante. A minha tinha a cor prateada, além de bordada como o busto do meu vestido, suas laterais se estreitavam formando aquele olhar felino.
— Eu vou ter que usar isso? — Ben olhou a sua máscara com desdém.
Amanda se precipitou e colocou a máscara no rosto dele. Deu um passo para trás para observá-lo e mordeu os lábios.
— Sexy.
— Eu vou ter que usar isso — Ben a devorou em resposta.
Encaminhamo-nos para a porta e um táxi estava à nossa espera. Enquanto Ben trancava a casa, Amanda se aproximou:
— Também tenho uma para Nathaniel. — Ela esticou a mão para me entregar a máscara, um pouco sem jeito.
Era dourada. Da mesma cor que Nathaniel emanava quando me envolvia no morno. Meu estômago se contorceu de dor pela lembrança, a história da Alma Dourada me veio imediatamente à cabeça, os poros do meu braço se eriçaram em resposta.
"Onde será que você está, Nate?", perguntei em silêncio quando olhei para o céu. Desci os degraus da frente e entrei no táxi.
Lutei com todas as forças para não pensar em Madame Nadja durante o trajeto até a escola, mas fui derrotada:
"... De um jeito, ou de outro, algo se perderá na virada do milênio. Os namorados foram julgados."
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Oláá, e aí? O que acharam da surpresa da Liza? Comentem! =D
Estou adorando saber o que sentem ao ler a história!
Beijossss
Amanhã tem mais um!
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