Capítulo 53 e 54
SERVOS DO SILÊNCIO
Nathaniel
Eu não assimilava as ideias, não conseguia pensar com clareza. Não enquanto Liza não estivesse sob minha proteção. Passei a duvidar do próprio Penhasco.
Eu era o único capaz de impedir. O único capaz de salvá-la. Meu pensamento podia ser egoísta, mas eu não contaria essa mentira a mim mesmo. Se a profecia se cumprisse, cada alma de anjo e cada alma humana se tornaria escrava e somente a de Liza me preocupava, A Dourada. Eu sabia que, em meu íntimo, buscar por outra seria inútil, era ela que ele buscava.
Errei ao imaginar que nosso destino seria o mesmo de meus pais. Seria ainda pior. Muito pior.
Não deixarei que nada aconteça a ela. Se o contato não foi feito, ainda há uma saída. Algo que ambos desejamos. Apenas sinto que tenha que ser dessa forma, apressada. Espero que eu consiga tirar o que a mantém intocada, pois se um único lampejo de dúvida ou temor passar por seus olhos, eu não o farei. .
Mas algo me afligia ainda mais: Ter de lhe esconder a verdade. Liza não merecia esse sofrimento. Se ela soubesse, se sacrificaria para o bem de todos, hesitaria apenas pelo meu pesar.
A Alma Dourada é aquela que suporta a escolha que ninguém mais pode fazer. Quanto a mim, se tratando dela, não havia mais nada, só seria feliz se ela o fosse. A escolha estava feita.
Cheguei ao Penhasco e a vi de longe. Esperando-me.
O ar preencheu meus pulmões por saber que ela estava bem. Fora de perigo.
Segurei o colar de minha mãe e o observei pela primeira vez.
Sorri quando notei o formato. É claro que fazia todo sentido.
Um formigamento me percorreu de súbito. Senti-me tonto, minha visão embaçou. O Penhasco girou aos meus olhos. Talvez seja isso o que um humano sente ao desmaiar.
***
Liza
Aguardava por Nate no Penhasco. Depois do episódio do anel, em que, segundo ele, Ethan tentou me hipnotizar, tudo se tornou ainda mais pesado.
Recostei na árvore e um vento gelado pareceu soprar em meu ouvido. Como o toque de dedos frios. Infelizmente eu já havia sentido isso antes. Desde muito nova, eu sentia essas presenças. Eram opostas. Uma me amedrontava, serpenteava por meu corpo e me largava com um desconforto nas costas. Aquela certeza de que há alguma coisa atrás de você, mesmo que não se possa ver. Era fria, como o toque da morte. A outra presença me envolvia de paz. Acolhia-me quente, como o abraço de um anjo. Eu sabia, agora. Uma delas era Nate.
E quanto à outra?
Seria esse o mal à minha espreita? Estaria isso relacionado aos meus pais?
Pensar nisso me fez tremer.
Abri o livro Cem Anos de Solidão e lutei para me distrair. Ao chegar na metade do livro, percebi que não absorvia nada do que lia. Os nomes dos personagens se embolavam na minha cabeça. Coronel Aureliano Buendia, Aureliano José, Aureliano Segundo. Surpreendi-me ao virar a página para conferir o nome do próximo capítulo. Quando ergui o livro porque meus braços doíam, um pedaço de papel rasgado caiu em meu colo. As letras pareciam escritas às pressas, mas as reconheci mesmo no garrancho. Eram de minha mãe.
Meu coração acelerou, abrupta e dolorosamente.
"Liza, perdoe-me por nunca ter tido a coragem para lhe contar isso antes. Perdoe-me mais uma vez por lhe contar dessa maneira. Apenas leia as páginas. Espero que encontre a verdade."
Lágrimas arderam em meus olhos. Embaçaram minha visão, antes que minha mente pudesse voltar a raciocinar.
Com as mãos trêmulas, folheei as páginas do livro em busca do que minha mãe mencionou. Ao encontrá-las, vi que se tratava de um livro cofre. A partir da metade dele até o fim, havia um fundo retangular onde minha mãe deixou pequenas páginas arrancadas de maneira disforme, todas escritas a mão com a sua letra pequena.
Eu não sabia que minha mãe guardava um diário, nunca a vi escrevendo. A ansiedade de ler sobre o que ela teria confidenciado ali me assolou. Pela primeira vez em mais de seis meses, teria algo de minha mãe, seria uma maneira de matar a saudade.
Foi o que pensei inocentemente, até me dar conta de que ninguém guarda segredo de coisas boas.
Suspirei e aproximei a primeira folha de meu rosto:
"11/09/1977
Baltimore — Maryland
Pergunto-me se o que aconteceu é verdade. Isso existe? Ou estou louca?
Deus! Ainda o sinto em mim.
Sua escuridão fria e venenosa me apossou. Acho que vou vomitar. Sinto vontade de dormir o sono de quem não volta. Quero ser lambida pela escuridão, somente assim não poderei lembrar.
Necessitei exprimir aqui essas palavras antes de ser totalmente consumida pelo veneno, não aguento mais refletir noite após noite. Não há conclusão nenhuma disso. Sinto algo de dentro para fora. Algo podre em meu ventre. E só faz uma semana. Não era para eu sentir nada. Isso não é natural, essa coisa não pode ser humana.
Sete dias do pior dia da minha vida.
Eu estava em um beco sem saída.
Perdi-me no caminho de volta ao laboratório e finalmente encontrei o metrô.
A porta do vagão se abriu e meus instintos gritaram comigo ao ver uma senhora vestindo roupas pretas rasgadas. Ela se levantou ao me ver. Fiquei ali, parada na porta, e ela me apontou seu dedo comprido com sua unha suja. Notei que seu rosto era cheio de cicatrizes, seus dentes estavam podres. E com uma voz rouca, no meio da tosse carregada, ela me alertou:
Ele está vindo, Marie. Sua hora chegou. Tarde demais para fugir.
Eu me virei e corri para voltar às ruas, ouvi a gargalhada dela ecoar atrás de mim.
Assim que subi as escadas, algo horrível me puxou para um beco. Cobriu minha boca e me deixou no escuro, não vi nada além de seus olhos negros, sem vida.
Quando acabou, ele não falou, não emitiu nenhum som. Ele me encarou alguns segundos e eu fiquei como uma estátua até vê-lo desaparecer a minha frente. Depois deitei no chão daquele beco com a esperança de dormir para acordar e ver que foi apenas um pesadelo.
Pensei em Paul, meu noivo. Como poderia olhá-lo nos olhos novamente?
O que eram aquelas sombras? O que aquele ser fez comigo?
Meus pensamentos ficaram negros, sedentos por sangue, o ódio me consumiu nos dias seguintes.
Eu vi algo naquela noite, algo mais do que assustador, algo que não descreverei aqui, pois preciso esquecer.
Senti mãos me tocando sem haver nada perto de mim. Senti o hálito quente em meu pescoço e não havia nada ali. Cheguei a cogitar que estava possuída.
Talvez, se ninguém nunca souber, possa ser como se sequer tivesse acontecido.
Mas o algo terrível não acabou, tornou-se muito pior do que eu imaginava. Sinto uma parte sua em mim. Sinto uma doença se apoderando de meus pensamentos, crescendo em meu ventre. Preciso me livrar disso, rogo a Deus para que não seja o que estou pensando, pois estou sozinha. E acho que algo em mim morreu aquela noite, para trazer outra coisa em seu lugar.
Paul jamais saberá! Eu me sinto suja. Vazia. Indigna do matrimônio."
Minha cabeça rodopiou. Precisei parar e respirar. As palavras ressoaram em minha mente. Bateram e voltaram criando um eco doloroso.
Não!
Tentei me dizer que era mentira. Aquilo não poderia ser verdade.
Massageei o rosto me forçando a expulsar aqueles pensamentos. Mas só poderia ser isso. Afinal, por que minha mãe me contaria essa história horrível? Por que me permitiria ler o seu sofrimento?
Eu nasci exatamente nove meses depois dessa data.
O que isso significa? Meu pai não é Paul?
Sem perceber, havia cerrado minhas mãos e amassado todas as folhas que segurava. Apressei-me em esticá-las para ler o resto. Mas o mundo abaixo de mim se desfez quando Nate apareceu bruscamente à minha frente e desabou no chão, mole como gelatina.
***
Nathaniel
Eu ainda estava ali quando abri os olhos. Mas o Penhasco era outro. As cachoeiras estavam sem suas quedas abundantes, as Narinis haviam partido. Eram somente colinas, sem as belas águas caindo. A árvore, as flores e as plantas estavam mortas. O Penhasco não tinha vida.
Olhei à minha volta e compreendi o que acontecia.
Não. Não é possível.
Senti-me como um expectador do passado, o ar era enevoado. Minha mão atravessou a árvore quando tentei tocá-la. Eu estava ali como uma espécie de fantasma.
Apertei os olhos para enxergar melhor. Vi que uma pessoa flutuava à beira do Penhasco. Tentei me mover, mas não pude. Era uma mulher. Sozinha, ela pairava no ar a metros do chão. Eu queria ajudá-la, mas minhas pernas não me obedeceram.
Eu me vi preso debaixo da árvore.
O Penhasco até então silencioso, tremeu à minha frente. Com um estrondo, cinco vultos apareceram.
Os três primeiros pairaram um sob cada colina. Os outros dois pairaram à frente da mulher e formaram um círculo à sua volta. Notei que havia um espaço vazio.
Seriam anjos?
Os cinco vestiam mantos de cor mostarda e brilhavam, como o sol quando refletido sob a superfície. Flutuavam a poucos centímetros do chão.
— Conselho se apresentando para dar início ao julgamento. — As palavras vieram daquele que ocupava a colina mais alta. Seus lábios não se moveram, Pelo visto, se comunicavam através do pensamento.
— Superior direito.
— Superior esquerdo.
— Inferior direito.
— Inferior esquerdo.
Disseram em ordem. Havia uma nítida hierarquia entre eles. A mulher continuava ali, flutuando, ignorada.
Um sexto ser apareceu e ocupou o espaço vazio do círculo. Seu olhar para os que estavam ali, foi de decepção.
Subitamente, eu o reconheci. Minhas pernas tremeram.
Apesar de nunca tê-lo visto, tive a certeza. Aquele era meu pai. Tinha os cabelos negros e lisos até o ombro, os olhos verdes iguais aos meus. Suas feições estavam carregadas de dor.
— Vejo que agiram por minhas costas. Será que somente enxergam a verdade que escolhem? — ele falou.
Pareceu-me que iria continuar a falar, mas suas feições assumiram o desespero quando fitou a mulher flutuando à beira do Penhasco. Meu pai caiu de joelhos.
— Isabel? Não! Por quê? Por que Anadriel? Anliel? Não façam isso! Não podem fazer isso!
A mulher era minha mãe. Então entendi. Eu assistia a seu julgamento pela memória de meu pai. Tentei me mover mais uma vez. Eu não queria ver aquilo, já conhecia o triste final.
Mas por que fui trazido aqui? Como?
— Mãe! — gritei inutilmente. Lágrimas desceram por meu rosto enquanto imitei o gesto de meu pai.
Ele se levantou e correu até ela. Foi empurrado bruscamente para trás ao esticar o braço para tocá-la, como se uma parede invisível o tivesse derrubado de costas no chão.
Eu pude vê-la naquele momento. Minha mãe tinha os olhos doces, seu rosto tinha traços suaves. Os cabelos loiros desciam em caracóis até a cintura. Ela parecia frágil com seu corpo pequeno pairando no ar.
Eu me esquecia que aquilo era apenas uma lembrança, e eu só poderia assistir como um fantasma. Um fantasma do presente, o fantasma da impotência. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Pesarosa, ela olhou meu pai. Nitidamente sofria por vê-lo daquela maneira. Seus lábios se moveram, mas suas palavras estavam inaudíveis. Deduzi que sua voz estivesse silenciada.
— Deixem-na falar! — gritou meu pai ainda do chão. — Deus, veja o que fizeram a ela.
— Cale-se! — disse o anjo a esquerda de meu pai erguendo a mão à sua frente. — Está caído em pecado e ainda ousa blasfemar?
— Vocês estão cegos! Acusá-la e ainda calar sua voz já é um pecado maior do que todos os que posso ter cometido! Sob que acusação a trouxeram aqui?
— A filha dos homens seduziu um filho dos Céus.
— O único culpado dessa acusação sou eu. Eu a induzi! Usei de meus poderes para convencê-la. Usei para meu próprio benefício. É a mim que querem. Deixem-na ir embora!
— Se esquece da pena por traição? Um filho dos céus jamais poderia se envolver com uma filha dos homens. Deixou que sua vontade se tornasse mais importante que as Dele e traiu a todos nós.
— Eu a amo. E digo para aqueles que ainda não encontraram a sua metade: Não há nada maior que isto. Nada que valha mais a pena. E Ele não punirá aqueles que o fizerem, porque Ele é justo. Não haveria de punir o amor.
— Se recorda do Tratado, Mikael? — perguntou o anjo da colina mais alta levantando o braço e silenciando a todos. — Se um fruto proibido ganhar vida, Ela o coletará, e através dele voltará, e dela serão todas as almas da Terra. Haveria a própria Morte de perdoar sua quebra do acordo? Ou acha que não sabemos que sua união gerou um fruto? O seu amor pode levar a todos nós e a humanidade inteira à desgraça. Está a gritar pelo amor. Onde está o seu? Não tem mais amor ao próximo? Esqueceu por que está aqui? Passou tanto tempo com humanos que adquiriu a grande característica que os define: Egoísmo.
— Sabe qual é a grande característica que define os humanos? A capacidade de amar. Algo que jamais entenderá. Mesmo que a Alma Dourada exista, apesar de eu mesmo nunca ter encontrado nenhuma. Isto é apenas um conto para nos assustar e nos aprisionar como senhores do vento, escravos de nossa condição, eternamente servos em silêncio. Eu amei como nunca pensei que pudesse um dia. Em meio a isso, protegi a todos que estive designado e a todos que cruzaram meu caminho. E não o fiz porque deveria, fiz porque amo ao próximo. Amar Isabel me fez amar ainda mais aos homens.
— Basta, Mikael. — O anjo levantou a mão para silenciá-lo mais uma vez e se dirigiu aos outros. — Qual é o veredicto do Conselho para a acusada?
— Culpada! — proclamaram em uníssono.
Meu pai tentou gritar, mas não pôde. Tentou se mover, mas estava preso. Foi obrigado a observá-la cair do Penhasco. Eu pude ver os lábios dele se moverem no tempo em que minha mãe lhe dizia antes de cair:
— Te amarei para sempre.
Meu pai, solto das amarras do Conselho que o prendiam após vê-la cair, correu e pulou atrás dela. Mas o Penhasco o empurrou de volta. O corpo dele caiu na grama, catapultado para trás.
— Ela servirá de exemplo para aqueles que pensarem em imitá-lo, Mikael. Não diga nada sobre isso. Não repita o que aconteceu hoje aqui. Vamos orar para que a desgraça se encerre com isto, ou você sofrerá as consequências.
— Gabriel, não vê que acabo de morrer? — disse meu pai, abaixado na beira no Penhasco. — Não há mais nada em mim. Nada com o quê possa me ameaçar.
— Esqueceu-se de seu filho, Mikael?
Meu pai o encarou com fúria, mas não disse nada.
— Nós vamos encontrá-lo. De qualquer maneira, foi você quem o condenou. Se nós não o acharmos, Morte o fará.
Dizendo isso, os anjos deixaram um a um o Penhasco. Meu pai ajoelhou e chorou em desespero.
Acordei de sobressalto ao sentir uma mão em minha testa.
— Nate! Pelo amor de Deus, você está bem? — ouvi a voz de Liza e abri os olhos. Minha cabeça repousava no colo dela. Seu toque suave em meu rosto foi como um remédio para minhas feridas. Pareceu amenizar os cortes que me dilaceravam por dentro.
— Agora eu estou bem, Liz, fique calma. Vou lhe contar o que aconteceu.
Ergui o tronco e a abracei. Imaginei se deveria dizer toda a verdade ou poupá-la daquele sofrimento.
Eu a ouvi fungar e senti seu corpo tremer em meus braços.
— Calma, Ágape. O que importa é que estamos juntos e você não corre perigo aqui.
Percebi que precisaria agir o quanto antes. Começaria por fazer o que Irmã Daiana me disse. Mesmo indo contra meus princípios, e detestando fazer aquilo de forma planejada, talvez fosse a única coisa capaz de salvá-la. Se Liza aceitasse, nos uniríamos em corpo, como já éramos em espírito.
Capítulo 54
TOLICE
Emmanuel
Emmanuel deixou a garrafa de vodka rolar no chão e se virou no sofá puído. Vagava entre a consciência e a dormência provocada pelo álcool. Lembrava-se do dia em que sua vida finalmente pareceu começar. O dia em que saiu de casa.
Ciente do quanto sua ex-mulher o detestava, Emmanuel sacou a última economia que ela guardava em sua conta antes de deixar Londres e sua esposa para trás. Ele não se despediu. Emmanuel aguardou que ela adormecesse, depois saiu porta afora. Há tempos ela o mandava embora, porque ele nunca teve a força para assumir sua própria culpa no que fizeram juntos. Mas ele não podia continuar com aquela encenação e se ficasse, acabaria contando a verdade a alguém. Sua esposa era um monstro, mas ele não ficava longe disso. Sentiu-se mal apenas por abandonar o menino. Mesmo assim, partiu decidido. Em busca de um recomeço.
Hospedou-se em um hotel de beira de estrada, ao chegar aos Estados Unidos. Fazia uma semana que estava ali quando viu aquela mulher. A sensação foi semelhante a abrir os olhos pela primeira vez. Ele lia o jornal, no hall de entrada, quando ela se dirigiu à recepção. Ela era a perfeição. Seus cabelos castanhos e cacheados desciam até a cintura de seu corpo alongado. Usava um decote que exibia seios fartos. Seus olhos de tigresa e sua boca carnuda se ressaltavam sob a pele de porcelana. Aparentava ter uns dez anos a menos do que ele. Menos de quarenta, com certeza. Ela sorria para o recepcionista quando, de repente, foi puxada violentamente pelo braço por um homem da mesma idade de Emmanuel, mas diferente dele, com certeza. Musculoso e arrogante. Tinha fúria nos olhos. Ciumento, era provável.
O homem bruto a arrastou para dentro do hotel sem se importar com o olhar vigilante de Emmanuel e do recepcionista. Mas antes que eles saíssem do hall, a linda mulher olhou para trás. Para Emmanuel. Seus olhos de tigresa transbordavam lágrimas. E ele soube. Estava perdido. Precisava protegê-la. Não sabia o por quê, mas ela tinha que estar a salvo, ou nunca mais Emmanuel ficaria em paz consigo.
Sem refletir sobre o que fazia, resolveu segui-los. Iria descobrir em que quarto se hospedavam. Pois se fizessem o checkout no meio da noite, ele poderia nunca mais vê-la. Impressionou-se com quão fácil se convenceu de que ela fugiria com ele, mas algo dentro de Emmanuel gritava: "Foi por ela que ele ansiou por toda a sua vida."
Para sua sorte, o quarto vizinho ao dela estava vago. Ele apurou os ouvidos a noite toda, mas não ouviu nada.
Cinco dias se passaram sem que os visse novamente. Todos os dias, ao amanhecer, ele corria para o hall. Ela não iria embora com aquele homem grotesco. Jamais permitiria.
Até que em uma manhã, Emmanuel ficou rígido na poltrona ao ver o homem descer as escadas carregando duas malas. Ela estava atrás dele. Usava óculos escuros. Ele notou um hematoma que descia do ombro direito dela, até o belo colo marcado por seus seios. O casaco não conseguia esconder, apesar de ela tentar. Ela falou por trás do brutamontes, enquanto ele apoiava as malas no chão para acertar a conta na recepção.
— Não podemos esperar mais um dia? Prometi a minha irmã que a veria hoje. Já faz tanto tempo.
— Cale essa boca antes que eu perca a paciência com você de novo!
Suas mãos, de repente, não mais lhe pertenciam. Emmanuel segurou o vaso de plantas ao seu lado e se aproximou como um gato. Antes que o brutamontes se virasse, Emmanuel quebrou o vaso na cabeça dele. O homem caiu molenga no chão. A recepcionista o encarou apavorada. Mas ela, com seus olhos de tigresa arregalados, sorriu para Emmanuel. Um sorriso que tirou seus sentidos. Ele parou e admirou a linda mulher. Não conseguiu se mover.
— O que está fazendo? Vamos antes que ele acorde! — Ela lhe cutucou para que acordasse do transe e, juntos, fugiram no carro do grandalhão.
— Qual é o seu nome? — Emmanuel resolveu lhe perguntar quando percebeu que tinha voz para falar novamente.
Ele dirigia pela estrada, mal acreditava no quanto aquilo não fazia sentido.
— Isadora.
Essa memória sempre lhe afligia quando o efeito da bebida se atenuava. O que vinha em seguida, era a lembrança do amargo. Afinal, o doce não existiria sem ele.
Emmanuel levantou trôpego e cambaleou até sua pequena geladeira. Virou o copo de uísque que guardava para emergências e deitou a cabeça em cima da mesa de madeira. O uísque tinha suas vantagens. O efeito costumava ser rápido.
Sua memória, infelizmente ainda intacta, foi direto do melhor dia de sua vida para o pior.
Fazia três anos desde o episódio do hotel. Emmanuel não desejava mais nada em sua vida. Ele e Isadora viviam juntos. Emmanuel trabalhava como pedreiro, ela cozinhava para o maternal.
Nos últimos meses, tudo lhe parecia estar bem. Pelo menos era disso que ele tentava se convencer, mesmo com a certeza de que algo havia mudado.
Acabavam de retornar de uma lua de mel atrasada. Isadora trabalhava mais do que lhe era habitual. Fazia turnos extras na escola e alegava ser pelo dinheiro. Frequentemente ele lhe perguntava se havia algo de errado, mas ela só sorria e tomava seu rosto com suas mãos para beijá-lo. Diversas vezes funcionou como um calmante para Emmanuel.
Porém, começou a perder o efeito. Emmanuel notava que ela se distanciava cada vez mais. Consequentemente, ele começou a beber, afirmando que era somente uma taça de vinho no jantar. Mas quanto mais Isadora se ausentava, mais ele bebia. Duas taças. Três. Uma garrafa.
Com frequência, flagrava Isadora observando-o com lágrimas nos olhos. Talvez ela estivesse decepcionada. Talvez tivesse se cansado dele. Ele sabia que para ela seria muito fácil arrumar outro parceiro. Pois era linda. Emmanuel via os olhares voltados para ela quando saíam juntos, mas nunca foi ciumento, e Isadora dizia o tempo todo que ele foi o melhor amante que já teve e o melhor amigo que já sonhou. Dizia que ao lado dele se sentia à vontade, para ser ela mesma. Os outros homens só se interessavam por sua aparência.
Uma noite qualquer, quando terminaram de arrumar toda a mudança para Epifania, ele a convidou para jantar fora, pensou que talvez o problema fosse a rotina. Precisavam de romance. A noite foi muito agradável, ele já se sentia mais calmo. Não havia problema nenhum afinal, era paranoia.
Foi quando notou que Isadora olhava o relógio a toda momento, durante o caminho de volta para casa.
— Está esperando alguém, querida?
— Não, estava apenas me perguntando se Lília estaria no mercado agora. Ela ficou de me ver hoje à tarde, mas não apareceu. Incomoda-se se eu for lá um instante?
— Não quer que eu te leve? Não gosto de deixá-la sozinha à noite.
— Não se preocupe, Emmanuel. Estamos perto de casa. Vejo você em um minuto.
E dizendo isso, Isadora se afastou em direção ao mercado, enquanto ele caminhava de volta para casa. Contudo, por puro instinto, ele parou de andar na metade do caminho e resolveu dar a volta. No quinto passo, ouviu a voz de Isadora, vindo de um beco.
— Eu já lhe disse. Nós dois combinamos que nosso erro não se repetiria. Essa criança não deve nascer. Nunca deveria ter lhe contado. Não me procure mais!
Isadora se esgoelava de chorar quando desligou o celular. Emmanuel nunca a havia visto berrar com alguém.
Mas nele, aquele grito falou muito mais alto.
Emmanuel acabava de ser golpeado no estômago, no rosto, nos pulmões e no peito.
Isadora não poderia engravidar.
Uma vez que ele era estéril, e tolo de realmente ter acreditado que seria feliz para sempre.
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