Capítulo 43

O TELEFONEMA

Nathaniel


Passei a noite acordado. Sentei-me na cama, enquanto esperava Liza sair do banho. Fiquei contemplando o vazio. Eu via as sombras escuras se apertando ao nosso redor e não sabia como agir, como as faria desaparecer.

Não posso arrastar Liza para o Penhasco sempre que pressentir o perigo.

Eu sentia que a qualquer momento isso não seria o suficiente, e isso andava me enlouquecendo.

A voz da secretária eletrônica me resgatou dos meus pensamentos:

"Senhorita Liza, me desculpe incomodá-la, aqui é o Delegado Machado. Bem, acho melhor ir direto ao assunto. Tenho notícias sobre o caso de seus pais. Sinto muito, por favor, não alimente esperanças. O carro foi encontrado, peço que me ligue assim que ouvir esse recado. Preciso lhe fazer algumas perguntas. Obrigado e sinto muito."

Eu não precisei verificar a porta para saber se Liza ouviu. Sua pulsação acelerada era a minha. Ela estava parada, segurando a toalha que usou para secar o cabelo. E eu senti toda a dor em seu peito. Ela mal respirava. Eu precisei usar toda a minha força para me manter sereno e tentar acalmá-la.

Sua dor me cortava. Não somente pelos meus dons, mas porque eu só seria feliz se ela o fosse, e sua ruína era o meu abismo. Ser meio anjo, não me valeria de nada se não pudesse curá-la. Ela tinha feridas profundas, e eu as sentia dilacerando minha pele.

- Nate, eu preciso ir. - Ela revirou o quarto, pegou uma mala debaixo da cama, e começou a jogar seus pertences dentro dela.

Não parecia saber o que estava fazendo. Liza evitava o meu olhar. Ambos sabíamos que se nos encarássemos naquele momento, desabaríamos. Lágrimas escorreram de seus olhos. Liza respirou fundo, e sentou-se ao meu lado, cabisbaixa. Eu segurei sua mão e a acariciei com o meu dedo.

- Eu sei o que vai dizer - ela começou antes que eu falasse. - Vai dizer que eu devo ligar primeiro, antes de pegar tudo e sair correndo, e que preciso pensar um pouco, clarear os pensamentos.

- Não, Liz. Eu apoiarei qualquer que seja a sua escolha, mas irei com você. Não a deixarei ir sozinha. Farei qualquer coisa para você se sentir melhor.

- Me desculpe, Nate. Esqueci por um instante que você pode sentir todo o meu sofrimento. Vou tentar me controlar.

- Ah, Liza, você me faz questionar se eu sou mesmo meio anjo, ou é você...

Como ela pode se preocupar comigo em um momento como esse?

Eu a abracei e senti que ela se acalmava conforme eu acariciava sua cabeça. Desta vez, porém, não soube dizer se era eu quem a acalmava, ou se ela o fazia em mim.

O morno familiar nos envolvia. Liza ergueu o rosto para me olhar nos olhos.

- Podemos ir?

A agonia que vi em seus olhos, me perfurou como mil facas em meu corpo. Precisei de alguns segundos para controlar a minha voz e responder, sem que ela percebesse a dor que eu sentia:

- Podemos. Vou tentar fazer uma coisa diferente. Nunca viajei a um lugar que não tenha visto em minha mente, mas acho que não deve ser difícil, pois já posso ver na sua. Feche os olhos e se concentre no destino. Não precisa me falar. Se você vislumbrá-lo, eu verei.

Ela me olhou por um instante, parecendo confusa, e então balançou a cabeça. Fechou os olhos e enterrou o rosto em meu pescoço.

- Eu te amo, Nate.

- Eu te amo, Liz. - Eu queria dizer... Eu te amo mais do que a mim mesmo, mais do que a todos os seres que vivem na Terra, mas me contive.


***


Chegamos a Los Angeles.

Estávamos em pleno inverno, e o sol ardia na Califórnia. Não que eu sentisse a temperatura, poderia viver em montanhas de neve e ainda assim estaria confortável, mas percebi os olhares curiosos à nossa volta. Liza soltou a minha mão e tirou o casaco grosso que vestia. Imitei o gesto.

Por mais humano que eu me sentisse, vivia esquecendo de certos detalhes. Entramos na delegacia. Senti Liza tremer ao meu lado, assolada por lembranças de quando investigou o desaparecimento dos seus pais, e com medo do que descobriria a seguir. Passei o braço em seu ombro e fomos até o balcão nos identificar.

O Delegado Machado se assustou ao nos ver parados na porta. Na emergência de satisfazer a Liza, não pensei no fator tempo. Chegamos minutos após a ligação. Apressei-me em mentir:

- Prazer em conhecê-lo, eu me chamo Nathaniel - lhe estendi a mão e ele retribuiu. - Desculpe-me se o pegamos desprevenido com nossa rapidez, mas por acaso nos encontrávamos por perto, quando Liza escutou o recado pelo celular.

Liza arregalou os olhos para mim quando compreendeu o meu raciocínio, e respirou fundo ao notar que resolvi o "mal-entendido" contando a mentira.

- Compreendo. Não se preocupem. Sentem-se, por favor.

O Delegado Machado indicou as duas cadeiras na frente de sua mesa, enquanto levou seu olhar por alguns segundos para os dois casacos grossos que eu segurava no braço. Liza não notou, eu fingi não perceber.

- Como você e sua irmã tem passado, Liza? - Ele lhe perguntou com um sorriso, tentando dispersar o clima tenso a sua volta.

Era o primeiro delegado que eu conhecia, mas não me pareceu uma atitude muito profissional. Ele pelo visto gostava dela, logo, eu gostei dele.

Suas vibrações eram transparentes, não era o tipo de homem que mantinha segredos. Apenas um pouco fatigado, como uma rocha gasta pelas ondas do mar.

Notei que o delegado se sentia incomodado com a minha presença. Ele queria ficar a sós com Liza, para lhe contar do ocorrido. Perguntei onde ficava a cafeteria mais próxima e me retirei da sala, não antes de me certificar de que Liza estaria bem.

- Eu volto logo - acariciei o rosto dela, sentindo-a estremecer com o meu toque.

Liza balançou a cabeça e forçou um sorriso.

Saí da sala antes que perdesse o controle. Eu precisava tomá-la em meus braços e lhe dizer que tudo ficaria bem. Que eu não deixaria que nada de mal lhe acontecesse, que eu estaria para sempre ao seu lado. Mas não queria fazer promessas que talvez, não pudesse cumprir.

Se minha intuição estivesse correta, eu precisaria deixá-la em breve. Para sua própria segurança.

O suspeito ainda estava ali, pude ver nos pensamentos do Delegado Machado. E pelo que vi, ele não contaria isso a Liza, julgava desnecessário. Mas eu daria uma olhada no suspeito. Ninguém me veria. Ele próprio não me enxergaria. Eu só precisava saber, até onde o próprio Delegado Machado sabia.


***


Liza


Nathaniel me deixou sozinha com o Delegado Machado. Fiquei um tempo em silêncio, não sabia mais se desejava de fato saber. Quando a notícia é boa, não existe suspense para contá-la. Não estava certa quanto ao que ele me diria, mas algo bom, provavelmente não seria.

Apesar de me parecer uma boa pessoa, o delegado era a recordação viva daquele dia. Daquela manhã, de quando me contou sobre meus pais estarem desaparecidos. E de todos os dias que busquei por eles, sozinha e desesperada em Los Angeles, logo, sua presença me atormentava.

Conversamos um pouco sobre assuntos aleatórios, antes que ele fosse direto ao ponto.

- Liza, se soubesse que estavam tão próximos daqui, teria dito no recado que a visita não era necessária. Fiz esse contato somente para informar que o carro foi localizado, abandonado em uma pequena cidade chamada Epifania. Após a análise da perícia, o carro voltará a pertencer a vocês.

- Sem problemas, delegado. Nós estávamos perto, foi fácil vir até aqui. Então isso é somente pelo carro? - Tentei disfarçar a pequena esperança que alimentei com aquela ligação. Por outro lado, não tive a confirmação de suas mortes, então ainda me restaria dúvida. A permanente questão do que aconteceu a eles. A esperança em forma de interrogação.

- Infelizmente, por enquanto sim, Liza. Quando a perícia terminar a análise, eu entrarei em contato, tudo bem?

- Tudo bem delegado. Obrigada pela sua dedicação com o caso.

- Não há de que Liza. Pode contar comigo para o que precisar.


***


Nathaniel


Eu fiz o teste, para não haver falhas. Parei em frente a uma mulher falando ao telefone. Seu olhar passou direto por mim.

Passei por dois corredores. Ambos vazios, com exceção do guarda na porta que dava entrada às celas. Pelo que descobri, não era uma prisão, mas a delegacia possuía seis celas para manter os detentos antes do julgamento, ou da transferência à Prisão Estadual. A maioria dos detentos acabava solta após um dia de confinamento, fosse por falta de testemunhas, ou de evidências.

A única cela ocupada era a última do corredor. Andei devagar em sua direção. Senti-me temeroso pelas respostas que poderia encontrar. Mas não adiantaria. Qualquer que fossem elas, Liza sairia magoada.

O detento estava deitado com as duas mãos por baixo da cabeça. Ele assobiava olhando para a parede à sua frente, de costas para mim.

- Quem está aí? - Ele se levantou e virou de frente para o corredor.

Fui pego de surpresa e baixei as defesas. O homem conseguiu me enxergar. E eu, não acreditei no que vi. Em quem vi, para ser mais exato.

- Olaf? - perguntei sem pensar no que fazia. Ele não demonstrou ter a menor noção de quem eu era.

- Você nem sabe o meu nome, o que veio fazer aqui? Meu nome é Emmanuel, nunca conheci nenhum Olaf. Deve estar me confundindo, assim como esses pilantras que trabalham nesta espelunca. Já é a segunda vez que me prendem aqui! Segunda vez! Agora um velho aposentado, não tem mais o direito de ficar bêbado. A vida é minha! E eu farei o que quiser com ela! Pode dizer a esses imbecis que não adianta mandar você aqui para me interrogar. Não tenho medo de homens grandes. Espero que esse maldito casal desaparecido seja encontrado de uma vez, e me deixem em paz!

Ele falou mais com ele mesmo do que comigo. Eu esperei que a compreensão me atingisse. Ele definitivamente não era o Olaf que me visitou no orfanato, mas não havia dúvidas de que era o corpo dele.

- Ei, rapaz. Vamos. Por que está tão calado? Não veio me interrogar? Vamos, me distraia! Estou começando a gostar da coisa, não tem nada para fazer neste lugar. E então? Não vai dizer nada mesmo? - Emmanuel brincou com os dedos e me lançou um olhar de deboche e falso interesse. - Já que resolveu ficar mudo, você me trouxe ao menos uma bebidinha?

Ele nitidamente se divertia com a confusão estampada em meu rosto.

- Que algazarra é essa? - O guarda da frente gritou. - Trate de ficar quieto, seu velho bêbado! Não me faça ir até aí!

Emmanuel me fitou e levou o dedo indicador a boca pedindo silêncio, antes de cair na gargalhada. Notei um círculo roxo em volta de seu olho esquerdo, parecia uma pancada bem recente.

- Vai ficar parado ai? - Me perguntou em um cochicho. - Ou você fala alguma coisa ou chispa. Anda!

Eu hesitei em silêncio, queria ganhar tempo. Nunca tentei sentir as vibrações e captar a verdade de um bêbado. As imagens que eu recebia eram confusas: Um misto de cores, uma nuvem negra se dissipava em sua cabeça e desaparecia. Vi uma casa caindo aos pedaços, com teias de aranha pelos cantos, um posto de gasolina, um velho bêbado batendo continência para um policial antes de sair, e pensamentos tomados por uma voz masculina que não era a dele.

Aquela mente não era controlada apenas por ele. Foi a melhor conclusão a que consegui chegar.

- Hummmmm, eu já sei! - Emmanuel colocou a mão no queixo e fingiu estar pensativo. - Você é o namorado de uma das filhas. E está achando que está no zoológico, nesse caso eu sou o predador. Sou o leão da floresta!

Um ímpeto de fúria me dominou. Quando me dei conta, havia enfiado o braço entre as grades e o segurava pelo pescoço. Seus pés não tocavam mais o chão, seu rosto começava a perder a cor e sua respiração saia engasgada. Soltei-o. Emmanuel caiu tossindo no chão. O guarda se levantou resmungando. Ouvi o som de seus passos se aproximando.

Deixei-me sentar no chão do corredor. Era a segunda vez que eu experimentava a raiva, mas nunca havia perdido o controle desta maneira. A primeira vez aconteceu na noite de Natal, quando vi Ethan ao lado de Liza, desacordada. Eu ainda mantive certa calma, porque Liza estava próxima. E porque em meu íntimo, eu sabia que Ethan poderia ser inocente, apesar do meu desejo de estrangulá-lo.

Mas naquele momento foi diferente. Meu corpo tomou o controle de meus pensamentos. Ver o detento mencionando-a despertou minha fúria. Aquele que fizesse algum mal a Liza, não escaparia vivo.

Será que existe justificativa para matar alguém? Mesmo pelo motivo mais forte?

Se eu matasse, perderia toda a minha essência. Como Liza poderia me amar então?

Eu me restabeleci. Passei pelo guarda que obviamente não me viu, e retornei à porta do escritório do Delegado Machado. Pude ver pela janela de vidro, que eles se despediam.

Liza se mostrava tão forte, mesmo estando um caco por dentro. Não consegui mais me conter. Assim que ela abriu a porta, eu a peguei no colo. Ela passou o braço no meu pescoço e deixamos a delegacia, ignorando os olhares curiosos sobre nós.

Levei-a direto ao Penhasco. Não podíamos nos arriscar.

Eu precisava ver irmã Daiana novamente e descobrir o que ela ainda não havia me contado. Se aquelas sombras eram capazes de habitar qualquer corpo, o perigo poderia estar muito mais perto do que eu imaginava.

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