Capítulo 23
COEMETERIUM
Nathaniel
As nuvens carregadas tingiam a praia vazia de cinza, a cor da minha angústia. As ondas batiam forte nas pedras beirando a margem, talvez, tão aflitas quanto eu. O mar gritava para mim: “Você precisa sair daqui!”
A última coisa de que lembrava era de estar na cozinha de Liza até sermos impiedosamente afastados. Nem tive tempo de desligar o fogo. Espero que alguém tenha ajudado ela a arrumar a bagunça que causei.
Uma força muito maior que a minha não me permitia deixar essa praia decrépita.
Andei pela margem e a água cobriu meus pés.
Sinto uma vibração ruim. Como a de um predador à espreita de sua presa.
Olhei sob os ombros. Não havia ninguém. Nada além de uma provável serpente a espera do bote. Uma força covarde e mesquinha que se recusava a aparecer para mim.
Liz devia estar lá, imaginando milhões de coisas diferentes para justificar a minha saída inesperada. E eu havia acabado de prometer que estaria ao seu lado. De fato, isso resumia tudo o que eu havia feito até então. Mesmo que ela ainda não soubesse.
Lembrei-me da primeira vez em que vi seu rosto. Liza sequer havia nascido, mas já preenchia meus sonhos. Fazia meu peito bater. Eu devia estar com uns seis anos. Brincava sozinho no parque do Orfanato Alis Angeli quando seu rosto invadiu a minha mente. Como uma espiada no futuro. E tudo o que fiz foi sorrir.
Na época eu não possuía ainda o conhecimento de minhas habilidades. Muito menos poderia supor que aquele rosto era um lampejo do destino. Uma mensagem dos céus, me dizendo que eu não precisava me preocupar. Seu olhar vivo e doce me fez uma promessa: Nossos caminhos se cruzariam no momento certo. E desde então, vivi a espera desse instante certeiro.
Passei os anos seguintes com a promessa de Liza em meus sonhos, noite após noite. Até o dia em que finalmente a vi no berçário. Nascida então, minha vida finalmente teve início e tudo o que me importava era a sua felicidade.
Se eu pudesse, se fosse forte o bastante, me afastaria e a deixaria buscar a felicidade com outra pessoa, ainda que isso fizesse de mim um miserável. Eu me manteria apenas zelando, pronto para o caso de algo ruim acontecer, pois ainda não compreendia a razão de meus dons. E meus dons atraíam algo ruim. Uma brasa de ferro ardia minha garganta, só de cogitar o que seria.
Mas em que isso está ligado a Liza?
Só sei que não posso contar a ela, se eu mesmo desconheço.
Eu tinha uma vaga ideia. Uma teoria. Baseado nos poucos fatos narrados a mim, por Irmã Daiana, e em ocasiões em que o próprio universo parecia me dizer. Mas não acreditava muito a fundo. Além disso, nunca tive como provar. Nunca conheci ninguém como eu, exceto por um ser que me encontrou uma vez. De longe, muito mais poderoso.
O ser viera me visitar no orfanato quando eu ainda era criança, e estranhamente eu me lembrava com detalhes dessa visita.
***
Sai do refeitório e ajudava a irmã Daiana a lavar a louça quando o reitor veio me buscar dizendo que uma visita me aguardava. Supostamente, meu tio.
Olhei confuso para o diretor e lhe expliquei que não tinha parentes vivos. Ele me ignorou. Antes que eu pudesse protestar, arrastou-me pelo cotovelo até o pátio de frente à capela. O reitor agia como se estivesse enfeitiçado.
Observei de longe enquanto nos aproximávamos dos bancos. Vi um senhor de cabelos brancos. Ele vestia um terno preto e estava sentado de uma forma que lhe atribuía o aspecto de dono daquele lugar. Ele me abriu um sorriso que não chegava aos seus olhos frios.
— Nathaniel! Não se lembra de mim? — Havia um falso entusiasmo nítido em sua expressão.
Balancei a cabeça em negativa.
— Mas é claro que não. Você era muito novo na última vez em que o vi. Sou seu tio Olaf, irmão de seu pai.
Eu continuava encarando-o assustado. Passei os meus únicos seis anos de vida, ciente de que meus pais haviam falecido logo que nasci. Nunca ouvi falar de nenhuma família. Irmã Daiana teria me confidenciado se meu pai tivesse um irmão.
Senti raiva daquele suposto tio, o qual, sabendo que eu estaria sozinho, deixou-me seis anos abandonado no orfanato.
— Se isso é verdade, por que demorou tanto para vir? E o que quer agora?
— Calma, Nathaniel. Eu entendo sua frustração, mas seu tio precisou organizar muitas coisas. Agora, eu vim levar você para casa — disse com mais um de seus sorrisos.
— Eu não quero ir, a irmã Daiana, cuida de mim. Eu não gosto de você. — Choraminguei e dei-lhe as costas.
Foi então que algo inesperado aconteceu: Olaf se levantou, cobriu meus olhos com uma mão, e com a outra, vedou a minha boca. No mesmo instante, minha mente se esvaziou. No instante seguinte, foi preenchida por imagens em flashes de outra vida. Visões de praias e estradas verdejantes passearam por trás de meus olhos. Junto de dezenas de imagens que apareciam em sequência, como um slide de fotos.
Eu brincando com tio Olaf. Nós dois sorrindo. Eu e ele, correndo com um cachorro na areia... Depois, um bolo de aniversário, eu soprava a vela e ele usava um chapéu colorido e pontudo, batia palmas... As imagens se repetiam e se misturavam.
Quando abri os olhos, passei a vê-lo como um membro de minha família. Ele era o meu tio favorito. Veio me buscar assim que voltou de sua viagem a trabalho. Sorri para ele e ele sorriu de volta. O reitor chegou com uma mala contendo todos os meus pertences e a entregou para o meu tio.
A irmã Daiana se despediu com os olhos cheios de lágrimas ao se abaixar para me abraçar. Tio Olaf me puxou pelo ombro e interrompeu nosso abraço. Eu a soltei e dei as mãos a ele.
Andei dois breves passos em direção ao portão. Estava feliz. Iria para casa. Eu e meu tio. Uma família. Até que um clarão inundou meus pensamentos.
O olhar mel e vivo de Liza apareceu de repente. Foi como se ela estivesse ali, ao meu lado e dissesse: “Não vá, ele está mentindo!”
Pisquei confuso. Olhei para Olaf e soltei sua mão. O sorriso abandonou seu rosto. As nuvens em minha mente se dissiparam. Minha razão voltou ao lugar.
— Eu não vou. Você não é meu tio. Vá embora, seu mentiroso!
Irmã Daiana, que já se distanciava, se aproximou ao ouvir os meus gritos. Olaf olhou de mim para ela. Parecia calcular o tempo que teria para me arrastar dali e desaparecer. Por fim, falou:
— Você vai se arrepender, moleque! E não se esqueça de que eu voltarei. Da próxima vez, não terá a menor chance.
Olaf se desfez à minha frente como a areia quando levada pelo vento. E aqui estava eu, anos e anos depois. Aparentando ser muito mais novo do que era na verdade. Anos e anos e ainda sem saber o que me fazia acordar inesperadamente em lugares que nunca estive. Ainda sem saber o que me fazia ouvir a natureza como se cantasse para mim. Sem saber por que podia prever o tempo. Por que os animais me obedeciam e entendiam minhas palavras. Desconhecia por que só era visto se desejasse. Desconhecia o motivo de poder me conectar a mente de qualquer um. De enxergar a personalidade das pessoas, sentir os mesmos medos e me alegrar com as mesmas coisas. Apesar das minhas suspeitas, Liza era o real motivo para o que eu queria descobrir, mais do que nunca. Eu sempre soube que ela seria única para mim. Porém, nunca tive a certeza de que me amaria de volta.
Agora eu seria capaz do impossível para ficarmos juntos, ou para deixá-la feliz, mesmo que as duas questões precisassem acontecer separadamente. Caminhei lentamente pela beira da praia. Concentrei-me novamente com toda a minha força em Liza. De novo, não consegui voltar. Olhei à minha volta buscando por algum sinal ou alguém. Nada.
Estava preso, sozinho. Procurei relaxar. Talvez clarear os pensamentos ajudasse. Sentei na areia e observei as ondas. Tentei brincar com uma delas deixando-a mais alta.
Não funcionou.
A natureza aqui não responde a mim.
A onda se elevou metros acima da superfície e estourou no meu corpo. Fiquei completamente ensopado. Levantei assustado. Percebi que meus poderes não funcionavam.
O que isso significa?
Caminhei sem observar nada ao redor. Procurei por alguma brecha onde eu pudesse passar e voltar. Ainda tinha muito para contar a Liza. Aquele seria o dia em que eu, se finalmente reunisse coragem, lhe explicaria tudo.
Preciso sair daqui. Se este lugar for como o Penhasco, pode parecer que apenas horas se passaram enquanto, no ritmo de tempo normal no qual Liza está já serão dias.
Esbarrei em algo que me pareceu um tronco de árvore.
Pelo visto, a serpente à espreita decidiu aparecer.
— Calma, rapaz. Aonde vai com tamanha pressa?
Um homem me olhava deitado sobre o cotovelo. Ele me analisava com uma curiosidade forjada, se divertia. Era pálido e tinha os cabelos loiros, quase brancos. O homem sorria bastante, mas parecia ser mais para si do que para mim.
— Que lugar é esse? — indaguei
— Eu gosto de chamá-lo de Coemeterium — respondeu e esticou um braço à sua frente, fazendo uma mesura, me apresentando ao lugar.
— Um cemitério? De quê?
— Muito bem, Nathaniel, você entende latim — falou beirando o tédio, olhava fixamente para o horizonte.
— Como sabe o meu nome?
— Ora, está escrito em sua mente. Aposto que você também já sabe o meu, não? — Sorriu novamente e sentou-se no grosso tronco de árvore às suas costas.
— Quem é você? — Eu começava a perder a paciência.
— Ainda não descobriu?
— Sua mente é um borrão de luzes se movendo rapidamente. Não consigo focar em nenhum ponto.
— Exatamente, Nathaniel. E sabe por que não consegue? Porque esse lugar é criação minha. Aqui os seus poderes funcionarão apenas se eu desejar. Fantástico, não acha? — Explicou com um tom que lembrava um professor ensinando a matemática mais simples a um aluno com deficiência de aprendizado.
Minha irritação crescia e deduzi que precisaria me manter calmo se quisesse ir embora. Limpei a minha mente e me concentrei em ver apenas a dele.
— Então, Lucas, por que me trouxe aqui?
— Muito bem, rapaz. Mas fui eu quem deixou seus poderes funcionarem agora. Eles poderiam ser muito maiores, sabia? Você poderia ter tudo o que desejasse. Bastaria pensar no que anseia e pronto. Para isso, precisa vir comigo.
— Isso não está fazendo sentido.
— Perdi a conta de há quantos anos procuro por alguém como você. Alguém que possa compreender todo esse mistério da vida e me faça companhia. Acha que é fácil ser um Guardião solitário?
— Guardião? — As vibrações dele eram poluídas, impuras. Isso era um guardião?
— Sim. Guardião. Você nunca se perguntou o motivo de seus dons?
— Todos os dias. Mas aparentemente não sou poderoso como você a ponto de me considerar um Guardião.
— Você é, sim. A diferença é que eu domino os meus poderes e você ainda desconhece o potencial dos seus. — Lucas completou a frase fazendo uma onda subir uns dez metros acima da superfície e depois se voltar lentamente para o mar, acompanhando a velocidade do movimento de seu braço.
— E como tem a certeza de que é um Guardião se você, como mesmo disse, procura alguém como eu há anos? — Eu não acreditava em uma palavra vinda da boca dele.
— Esta é uma história muito antiga. Vai desde os primeiros que apareceram até chegar a você, supostamente o último. Quer escutar?
Nitidamente a pergunta era uma falsa educação. Se Lucas guardasse alguma intenção de me deixar sair, eu já estaria livre há muito tempo.
Claro que desejava desvendar o mistério ao meu respeito. Descobrir histórias do passado. Ao mesmo tempo, por que deveria confiar nele?
Era crucial descobrir um jeito de voltar para Liza.
Eu não desperdiçaria mais tempo ali. Além do fato de Lucas me contar somente mentiras, eu duvidei de que o motivo de não conseguir enxergar dentro dele tivesse apenas a ver com a falha em meus poderes. Ele me parecia vazio, sem alma. Se isso era ser um Guardião, eu, definitivamente, não era um. E se por acaso viesse a ser, não me juntaria a ele.
Fechei os olhos e inspirei profundamente.
Liza, Liza, Liza.
Saí do Coemeterium. Vi a casa de Liza de cima. Pude sentir seu perfume. Algo me puxou rispidamente. Abri os olhos e fitei Lucas. Ele me observava vigilante. Havia certa fúria em sua expressão.
— Podemos deixar para outro dia? Adoraria escutar, mas preciso partir, Lucas. Tenho compromissos — falei falsamente educado. Suspeitei que irritação não fosse a melhor abordagem.
— Desculpe-me decepcioná-lo, Nathaniel. Qualquer que fosse o compromisso, posso garantir que você já o perdeu.
— Não, não é possível.
— Veja bem, como você mesmo sabe, quando viajamos, o tempo parece comum em nossa mente, mas na Terra ele corre. E é especialmente rápido aqui, no Coemeterium.
— Bom Lucas... Então tenho mais um motivo para não demorar.
— Ela o ama, Nathaniel. E é paciente. Pode esperar mais um pouco.
Ouvi-lo falar de Liza e demonstrar intimidade como se a conhecesse me fez perder a cabeça. Avancei como um animal, aos berros, em sua direção:
— Fique longe dela!
Ele desapareceu um segundo antes que eu o alcançasse. Eu o procurei à minha volta.
— Nathaniel, meu caro, que decepção! Pensei que tivesse compreendido, a essa altura, que será melhor para você me ter como um amigo
Sua voz veio de cima, olhei para o alto. Lucas se apoiava em um galho de árvore a uns dez metros acima de mim. Eu não me lembrava de já ter conseguido ver a mente de alguém da forma que ele via a minha.
Não pensei em Liza com detalhes. Como ele saberia que ela era paciente?
A única pessoa que eu poderia ver e sentir a essa distância era Liza, mas eu só via o que ela mostrava no momento, partilhava do seu sentimento. Como no dia que armaram para Raquel, o desespero de Liza me atraiu e eu salvei sua irmã para livrá-la daquela aflição.
Meu sangue ferveu com a provocação.
Esforcei-me para manter a calma. Não havia escolha. Eu sabia que ele ocultava alguma intenção por trás desses gestos.
Por ora, teria que ficar e ouvir até o final da bendita história. Passaria mais tempo naquele lugar. Horas para a minha mente, mas dias para Liza. Se Lucas tentasse me impedir de partir após isso, eu não responderia por meus atos.
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E as coisas só pioram...
E aí? O que estão achando? Deixem estrelinha e comentário! =)
Se até amanhã a noite tiverem dez comentários de leitores diferentes, posto 2 capítulos seguidos, o que acham?
Beijosss
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