Capítulo 13
MENTIRAS...
Liza
Senti a cama macia e gemi. Segunda-feira. E pior, teria que esperar até a noite para vê-lo.
Será um longo dia.
Como eu trabalharia apenas no turno da manhã, me acalmei um pouco. Eu deitaria cedo e logo estaria no Penhasco.
Espreguicei-me e vaguei pelo quarto à procura da minha roupa.
Que estranho eu estar tão cansada, afinal, eu não dormi a noite inteira?
Desci a escada para tomar café antes de sair. Na cozinha, me surpreendi com Ben lendo o jornal e já com uma xícara nas mãos, e com Amanda, que fazia torradas enquanto arrumava a mesa. Era sempre eu quem fazia isso.
— Bom dia! — disseram ao mesmo tempo, quando passei pela porta.
— Bom dia — respondi com menos entusiasmo, desconfiada daquele comportamento. — Vocês sabem se Raquel dormiu em casa? Não a vejo desde sábado.
— Ela chegou tarde ontem. Eu estava na sala, já passava da meia-noite. Simpática como sempre, ela passou direto para o quarto e me ignorou. — Ben deu de ombros.
— O aniversário dela está chegando, será que ela ignoraria um jantar? Mas antes que eu esqueça, por que vocês fizeram o café? Desculpem, passei um pouco da hora hoje.
— Nós fizemos por isso, Liza. Não precisa ser sempre você. Veja o que acabou de falar, não tem que pedir desculpas. Nós é que abusamos da sua boa vontade. — Amanda exalava um ar de: "tem algo a mais" com seu sorriso meio torto.
Percebi que aquilo era um pedido de desculpas do dia anterior. Senti uma pontada de culpa, especialmente, quando me lembrei da minha saída teatral e exagerada. .
— E respondendo a sua outra pergunta — Ben mastigava as torradas e falava com a boca semiaberta —, mesmo que Raquel não ignore o jantar, ela não o merece. Não sei como você consegue ser assim.
— Eu queria uma trégua, só isso, Ben. Talvez ela só precise de tempo para se recuperar. Mas talvez... Um jantar não seja mesmo uma ideia divertida. Acho que ela vai preferir sair com os amigos dela.
Este pensamento me entristeceu um pouco. Suspirei e me sentei com eles. Ben balançou a cabeça, incrédulo.
***
Raquel
Raquel descia a escada, prestes a entrar na cozinha. Ao ouvir seu nome, hesitou. Às vezes, sentia-se culpada por seu tratamento com Liza.
Às vezes. Porque a culpa se esvaía facilmente. Bastava lembrar-se do episódio em que Liza foi buscá-la na escola e gritou com ela quando se recusou a ir embora. Completava duas semanas do desaparecimento de seus pais. Raquel tinha acabado de se matricular. E a vergonha que Liza a fez passar, era imperdoável. No dia seguinte, todos falavam às suas costas.
— Vocês viram aquela menina nova? Mal entrou aqui e já passou a maior vergonha. Pior! No horário de saída! Todos viram! — falou um menino que não percebeu Raquel atrás dele.
— Coitada! — disse uma menina. — Ninguém vai falar com ela depois disso.
Raquel correu para o banheiro e se trancou, sentindo-se totalmente humilhada. Mas nunca contou a verdade sobre esse dia a ninguém. E culpava Liza por tudo de ruim que lhe aconteceu. Quando finalmente se tornou amiga de alguém na escola em Los Angeles, foi de uma menina que não fazia exatamente o tipo que gostaria. Aceitou apenas por não ter mais ninguém como companhia. Ana. Uma menina doce, que a ajudou a recolher seus livros, no dia em que um grupo maldoso fingiu esbarrar nela. Ana era estudiosa, conhecia poucas pessoas na escola e não se vestia muito bem. Tinha todos os quesitos que antes, fariam Raquel manter distância. Ana, talvez, soubesse lá no fundo que Raquel a desprezava. Mas sentia admiração por Raquel, achava-a linda e queria aprender a ter aquele mesmo ar de superior, de indiferente. Ana havia lhe confidenciado tudo isso, e confessou que estava cansada de ser boazinha e ingênua, porém, nunca conseguiu mudar. E Raquel, não demonstrou a menor inclinação para ajudá-la.
Raquel contou a Ana, a história do dia em que Liza foi buscá-la na escola. O momento foi calculado. Sentaram-se no pátio na hora do intervalo, quando este ficava lotado. Em sua versão, Raquel disse:
— Ana, você se lembra do dia em que minha irmã veio me buscar e nós discutimos na frente de todos da escola?
— Humm... — murmurou tomando um gole do suco, parecendo desinteressada.
— Bom — Raquel continuou um pouco irritada —, não está curiosa para saber a razão daquilo?
— Apenas se quiser me contar.
Um tanto desapontada, pois só apreciava esse tipo de conversa, quando a outra pessoa demonstrava que passaria a história adiante, Raquel continuou. Não sem antes dar uma boa olhada à sua volta. Precisava confirmar que as pessoas certas se encontravam próximas o suficiente para ouvi-la. Era a sua chance de tentar se redimir com os populares da escola. Sua chance de se livrar de Ana.
Inspirou profundamente, tomou ar, e falou em um tom mais alto do que o necessário:
— Você é a primeira pessoa a quem conto esta história. Eu perdi os meus pais há pouco tempo, de maneira muito misteriosa. Ninguém sabe o que aconteceu. E minha irmã... me culpa por isso — mentiu teatralmente, sentindo-se mal apenas por envolver seus pais na farsa.
— Eu sinto muito — sussurrou Ana.
Raquel notou as pessoas a sua volta se aproximarem, ainda que mantivessem os olhares propositadamente longe dela. Ela sabia que seu plano havia funcionado.
— A última vez que vi meus pais foi na viagem que fizemos para comemorar o aniversário da Liza. O motor começou a dar problemas, e meus pais precisavam ir ao mecânico antes de seguirmos viagem. Eu sugeri que nos deixassem em algum hotel, porque me sentia muito cansada por ter passado o dia todo na estrada. E foi assim que aconteceu. Nós chegamos à noite no hotel, eles foram ao mecânico. Quando acordamos na manhã seguinte, eles haviam desaparecido. E nunca mais voltaram.
— Nossa, isso deve ter sido horrível para você. — Raquel não se importou que Ana pudesse desconfiar da mentira. Nem mesmo tentou disfarçar seu olhar, fixo nas pessoas a sua volta.
— Liza e eu combinamos que ficaríamos na Califórnia para procurar por nossos pais. Mas ela insistiu para que eu voltasse a estudar. Ela prometeu continuar as buscas, a cada segundo do dia enquanto eu estivesse aqui. Eu não queria. Queria ir com ela. No dia da confusão aqui na escola, ela veio me buscar porque iríamos almoçar com o delegado da cidade. Ele disse que tinha novas informações. Mas quando perguntei a ela sobre as buscas e onde ele estaria esperando por nós, ela começou a gritar.
Raquel vibrou de satisfação ao se dar conta de que seus ouvintes nem fingiam mais, agora, a olhavam atentamente. Ela fungou como se estivesse prestes a chorar e continuou:
— Você já não acha que fez o bastante? A culpa disso tudo é sua! Você quem sugeriu ir para o hotel! Como se não bastasse toda a preocupação que carrego, ainda preciso cuidar de você! — Raquel imitou uma falsa Liza. — E foi isso. Mal nos falamos desde aquele dia. Todas as vezes que tento conversar com ela para fazermos as pazes, ela me ignora, sai de casa, me deixa sozinha.
— Nem imagino como deve ser difícil para você. Pode contar comigo, sempre que precisar. — Ana afagou as mãos de Raquel.
— Obrigada, Ana. — Raquel fingiu enxugar os olhos, secos naquele momento.
Raquel sabia que em questão de dias, todos da escola voltariam a falar com ela. Adorava ser o centro das atenções e não se importava em mentir. Nem em usar o desaparecimento de seus pais para isso. Ela culpava Liza, que via apenas como alguém com quem precisava conviver por mais dois anos. De acordo com o testamento, ao completar 18 anos, ela poderia retirar sua parte do dinheiro que estava na poupança e se emancipar. Raquel não sentia remorso ao pensar na dedicação de Liza. Enxergava os esforços da irmã apenas como algo feito para compensar a própria culpa, apesar de saber que Liza era inocente.
O real motivo da discussão sequer se aproximava da história de Raquel. Na verdade, ela se sentiu muito envergonhada ao ver a irmã esperando por ela no portão. Sua reação foi se afastar enquanto berrava para Liza, que ela não devia estar ali.
— Será que você poderia não fazer escândalo? Preciso conversar com você! Sei que depois das suas aulas, você vai desaparecer o dia todo! Como sempre faz! — berrou Liza em resposta. Parecia assustada com sua própria reação.
Liza puxou Raquel pelo braço e entrou em uma lanchonete. Desejava se afastar dos olhares curiosos. Detestava chamar a atenção. Raquel, por outro lado, aumentava o tom de voz na medida em que mais pessoas se aglomeravam ao redor delas.
Quando os pais delas não retornaram ao hotel, Liza decidiu ficar na Califórnia e procurá-los. Ela nunca perdeu a esperança de que eles voltariam. Ela não queria envolver Raquel, queria poupá-la. Mas Raquel se recusava veemente a retomar os estudos. A verdade é que ela nunca gostou de ir à escola, e adorou ter uma desculpa para não fazê-lo. Se não fosse o fato de Liza insistir no assunto, e conversar com o diretor, ela teria perdido o ano.
Ao entrar na lanchonete, Raquel bufava, prestes a explodir. Estava furiosa, pois sua irmã a envergonhou na frente de todos da escola. E ela sabia, as poucas pessoas que conheceu a ignorariam no dia seguinte.
— Raquel, você pode tentar se acalmar? — Liza lhe passou o cardápio. — Vai, peça alguma coisa. Deve estar morrendo de fome. Desculpe pelo café da manhã, não tive tempo de ir ao mercado.
— Ah, coitadinha de você! Está tão ocupada procurando por nossos pais, chega a não ter mais tempo para nada. Pena que eu não estou ajudando, não é? É isso o que você quer dizer? — Raquel fuzilou Liza com os olhos.
— Você sabe muito bem que não. Fui eu quem decidiu que você ficaria fora disso, é melhor assim. Dedique-se aos estudos, é tudo o que peço.
Cantarolando, Raquel passeou com o dedo pelo cardápio, ignorando Liza.
— Precisamos conversar — Liza explicou calmamente.
De repente Raquel ficou muito interessada na janela ao seu lado. Liza a ignorou e continuou:
— Se você pretende continuar saqueando minha carteira a cada chance que tiver, vamos acabar morando na rua. Aquele dinheiro estava reservado para pagar a segunda parte do aluguel à senhora Schneider.
— Eu não peguei dinheiro nenhum — afirmou com a cara mais deslavada que conseguiu fazer. — Mas é óbvio que eu não me surpreendo que você me culpe por uma coisa assim. Já pensou que pode ter sido a própria senhora Schneider? — Raquel adotou uma calma que não combinava com ela.
— Por favor, não faça uma acusação dessas. Ela nos ajudou muito nos recebendo repentinamente e nos oferecendo um quarto em sua casa. Nem sei o que teria feito sem a ajuda dela. Eu vi as sacolas de compras no seu armário e já vou avisando: devolvi tudo e peguei o dinheiro de volta.
— Eu... odeio... você! — rosnou Raquel
— Um dia você vai me entender. E eu vou esperar. Você é minha irmã e eu só quero o melhor para você. Queria tanto que pudesse enxergar isso. — Liza parecia à beira das lágrimas.
Raquel chamou a garçonete, fez o pedido para viagem e deixou Liza sozinha a mesa.
***
Raquel remoeu as palavras de Liza: "Eu queria uma trégua, só isso, Ben."
Trégua?!
Era tarde demais para apagar o que Liza lhe fez em Los Angeles.
Deu as costas e subiu novamente as escadas. Aguardaria eles saírem e só depois tomaria o café da manhã.
Ah, a vaidade. O pecado que mais assola a humanidade.
***
Liza
Perdi-me na conversa com Ben e Amanda durante o café da manhã. Saí de casa em cima da hora. Corri, e ao chegar à esquina, vi que faltavam três minutos para o meu turno começar. Parei na porta aos tropeços, desejei um bom dia à senhora Barbara, e ofeguei de maneira vergonhosa.
— Bom dia, querida! Não precisava correr, afinal, nessa hora o movimento ainda está fraco.
Dei-lhe um sorriso amarelo, me sentindo idiota e envergonhada. Mas eu era conhecida por sempre chegar um pouco antes e detestava atrasos.
Coloquei o avental e me preparei mentalmente.
Preciso me ocupar o máximo possível durante as próximas oito horas.
Mas admiti desanimada de que não havia nada ali interessante o suficiente ao ponto de me dispersar de Nathaniel.
Por volta das quatro horas, me distrai por um momento e vi seu rosto de repente. Tive certeza de que ele me viu também. Os lábios grossos se esticaram em um sorriso. Provavelmente ele se divertia com a minha expressão. Uma mistura de manteiga derretida e surpresa.
O que é isso? — eu o questionei em pensamento — Isso é real?
Ele me fitou com um olhar sedutor e se manteve em silêncio. Senti sua respiração quente em minha nuca, meu corpo tremeu quando um arrepio me percorreu. Elevei minha mão para trás, queria tocar em seu rosto, mas tateei o ar.
Nathaniel saiu de trás de mim e parou à minha frente. Vi ele mover os lábios, prestes a dizer alguma coisa, e então, Marcel me cutucou. Abri os olhos e me deparei com ele rindo do meu torpor.
— Liza, mesa para você.
— Ah, obrigada, estou indo. — Distraída, fui atender o casal que havia chegado.
Passei o restante do dia contando os minutos para ir embora. Quando faltavam dez minutos, pulei ao lado do relógio. Segurei o laço do avental nas costas para tirá-lo. Queria correr para casa, assim que o ponteiro marcasse quatro horas.
— Liza, vai! Está me deixando nervosa! — A senhora Barbara ria.
— Ah, desculpe. — Fiquei assustada ao perceber que me observavam. — É que tenho... umas coisas para resolver em casa.
— Sem problemas, não precisa se desculpar.
Sorrindo sem graça, guardei o avental e andei até a porta, fingindo não ter pressa. Ao deixar o restaurante, acelerei os passos. O rosto de Nathaniel surgia cada vez mais nítido.
Obviamente ele queria me ver, e não daria tempo de chegar em casa. Fiquei exausta pelo esforço que fiz para não cair no meio da rua.
Atravessei a rua correndo, ao ver um banco escondido por um arbusto. Teria que me sentar ali mesmo, aparentava ser um lugar suficientemente discreto.
De repente, congelei.
Um carro desgovernado corria em minha direção.
Eu tinha uma fração de segundo para me mover.
A última coisa que ouvi, foi o som estridente de uma buzina.
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E aí? O que acharam?
=D
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