Prólogo
Prólogo
EPÍGRAFE
[...] Lá no solo onde o cardo apenas medra,
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
_____________Castro Alves__________
Egito, 13 de junho de 1914.
Para Miguel, não existia nada mais espetacular do que o crepúsculo no deserto.
Metido em um kaftan à moda local, sentiu o vento cortante açoitá–lo, porém não se importou. A tempestade de areia havia amainado significativamente, permitindo–lhe contemplar a beleza das cores incandescentes que se derramavam sobre a linha do horizonte... Ele esfregou os olhos irritados e gesticulou para os homens que retornavam vagarosamente pela trilha.
A fúria do deserto... com seus vendavais repentinos e temperaturas extremas – que despencavam ao anoitecer e se elevavam bruscamente aos primeiros raios diurnos...Um espetáculo a ser temido e respeitado pelos mais prudentes– ele refletiu.
O desfiladeiro protegia o acampamento de um lado e abrigava, do outro, parte de um sítio arqueológico escavado arduamente. Da posição em que se encontrava, no alto da falésia, ele podia contemplar todo o perímetro e se certificar de que os nativos mantinham o ritmo de trabalho.
Embora corressem vários boatos, os egípcios não sabiam exatamente quem seria desenterrado daquela vez; estavam mais interessados em sustentar as famílias esfomeadas, que deixaram na vila mais próxima. Por isso, seu entusiasmo precisava ser supervisionado de perto, para que não esmorecesse, ou se exaltasse a ponto de estimular o roubo dos achados arqueológicos.
Miguel conhecia bem a maneira de pensar daquele povo, seus problemas sociais e sua cultura. Por isso, era um dos poucos estrangeiros respeitados na região. Convivera com eles tempo suficiente para medir o tamanho do orgulho e a repercussão de uma ofensa, dissimulados pela postura de aparente subserviência aos olhos europeus.
Quantos arqueólogos já passaram pelas "Duas Terras"? Melhor dizendo, quantos caçadores de tesouros já estiveram lá? Eles se apropriavam das riquezas do Egito para vendê–las aos colecionadores e aos museus... Não estavam interessados em um país empobrecido ao longo do milênio, e sim, na glória de seu passado; de seus tesouros soberbos e inigualáveis.
Os nativos estavam cansados de saber o que agradava à maioria dos escavadores... Mas um povo carente de identidade nacional e de instrução não poderia se importar o suficiente com as consequências dessa pilhagem ininterrupta, instituída, e amplamente consentida. Viva a "egitomania"! Repaginada pelo frisson das múmias... Pelas supostas maldições e armadilhas preparadas por seus antigos guardiães, os sacerdotes de Amon, a fim de impedir que o delicado equilíbrio de Maât fosse destruído pela profanação por parte dos vivos em relação aos mortos.
Para os turistas ocidentais – ricos e sequiosos de novidades – os rituais funerários dos antigos egípcios pareciam tão alienígenas quanto a enorme esfinge, em Gizé. As representações de seres metade homem e metade animal impressionavam até os vitorianos menos impressionáveis... Mas o que entendiam eles de Maât, ou de quaisquer tradições advindas de uma língua difícil e simbolicamente morta até que Champollion olhasse para ela? Se a prioridade dos ocidentais era aventurar–se por países exóticos em busca de segredos e relíquias, a dos egípcios, no início do século vinte, era alimentar as bocas que contavam com o seu suor diário para sobreviver em meio à miséria crescente do país.
Mas, na falta de uma consciência coletiva, de zelo cívico pelos tesouros egípcios, havia apenas uma coisa que poderia desestimular os nativos a auxiliarem os caçadores de tesouro estrangeiros... Muitos boatos já corriam de boca em boca; e os egípcios, com sua imaginação repleta de superstições, temiam ser amaldiçoados por almas ancestrais enfurecidas. A lenda sobre o faraó implacável e seus cães infernais era alimentada por testemunhas que juravam tê–lo visto ao cair das noites castigadas pelos vendavais.
Wahankh!
Ambição versus superstição... Como os faraós conseguiram resgatar e manter a unidade política e social de um país oscilante entre esses dois fatores de motivação?
Na antiguidade egípcia, naturalmente, imperaram a prudência religiosa e o respeito aos deuses (representados, na terra, pela divina figura do rei); alguns reinados foram guiados por um tradicionalismo fervoroso, especialmente em períodos turbulentos... Mas também imperou a vaidade cotidiana – desde o egípcio mais simples até o notável da corte. Como em qualquer sociedade humana, em qualquer época, o desejo de obter vantagens prevaleceria sobre Maât... Os sintomas sociais estavam lá, registrados em seus mais remotos arquivos: a disputa entre os nomarcas sanguinários; a corrupção administrativa e burocrática dos templos; as conspirações; a crescente invasão de ladrões de tumbas aos santuários; e a falsificação de múmias – comercializadas para os cultos populares.
O mercado negro não foi uma invenção da sociedade moderna. O homem antigo não vivia o seu cotidiano destituído de malícia, estratégias, ou de tecnologias (como pareciam acreditar os ingênuos publishers do século vinte). E no Egito, seus tentáculos se fixaram muito antes de Imhotep criar portas falsas para enganar aqueles que não respeitavam as leis.
Os grandes faraós que passariam à Posteridade seriam dotados de pulso firme e personalidade magnética – sempre atentos à pena de Maât; sobretudo, excelentes propagandistas de si mesmos. Sob o seu comando, a unidade ideológica, financeira e administrativa permearia o florescimento cultural de uma das mais poderosas nações que já existiu... Uma nação onde o povo tinha voz e encontrava nas instituições públicas o respaldo de que necessitava. Uma nação que valorizava a posição da mulher como nunca outra nação antiga ou moderna o fez...
A sobrevivência do legado egípcio, no entanto, ficaria essencialmente restrita a um recorte, uma parcela da população: a elite que viveu naqueles tempos.
Ele lamentava que fosse assim... Afinal, vivia e trabalhava lado a lado com aquela gente humilde há anos. E percebia na antiga e na atual falência da cultura egípcia os mesmos fatores de dominação e controle que atrasavam o pleno desenvolvimento de outros países. O seu país.
Distante e saudoso Brasil... Dominado por uma elite "pensante", enquanto a massa deixava de pensar... Uma elite que ditava o que a massa deveria sentir ou fazer... Mas, afinal, ele também não era um produto de seu meio? Estaria ali, agora, se não fosse pelas chances de estudo que teve? Viajaria pelo mundo, caso as portas acadêmicas não se abrissem para o bom nome de sua família? Nobreza travestida de burguesia. É claro que ele fez por merecer, mas...
Miguel sacudiu a cabeça, confuso. Quantas vezes já lhe disseram que ele não soube usufruir de suas conquistas. Como se não as merecesse de fato.
Seus dois jovens assistentes se aproximaram, interrompendo sem querer aquele momento de divagações. Eles aguardaram o anoitecer em silêncio, num acordo tácito, subjugados pela magia do deserto. Não ousariam desrespeitar uma cena que se repetia há milhões de anos: Rá se despedindo de sua plateia para que Nut abraçasse Geb. Enquanto isso, os últimos ventos fortes anunciavam a partida intempestiva de Sekhmet.
Já no acampamento, o espetáculo visual era outro. À medida que a escuridão se acentuava, a luz dos archotes se intensificava na mesma proporção – compondo uma dança bruxuleante nas mãos dos trabalhadores. Eles pareciam pequenos vagalumes seguindo pela trilha, logo abaixo da falésia.
Ao contemplarem os contornos da escavação, os três homens agradeceram à boa sorte de integrarem uma operação de resgate arqueológico tão importante como aquela. E pensar que tudo acontecera pela iniciativa de um milionário alemão...
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