Depoimento

Esta obra foi escrita por quatro diferentes autoras. Eu não poderia deixar de homenageá–las, diante de tanto esforço. Penso que todas mandaram bem, quando lhes foi passado o bastão. Eu, aos 17 anos. Eu, aos 24 anos. Eu, aos 29 anos. E eu, aos 40 anos.

Aos 17, a "autora sonhadora" já tinha o livro inteiro pronto na cabeça. Foi praticamente "expelido" de uma só vez. Meu primeiro livro! Que emoção!

O primeiro, entre aspas, pois ela já tinha escrito à mão outro enredo que se passava na 2ª Guerra Mundial. Mas este, o Papiro, foi o primeiro escrito com a intenção séria de publicar. Foi o primeiro livro que ela concluiu.

Como interessada em egiptologia, ansiava em colocar no papel seu humilde conhecimento sobre o assunto. Quanta ingenuidade de uma garota que tinha estudado apenas alguns poucos clássicos e nem ao menos fizera uma visita de campo...!

Numa época em que não havia computadores disponíveis, as pessoas só tinham duas opções: escrever à mão, ou utilizar máquinas de escrever. Em ambos os casos, era preciso ter prudência antes de colocar qualquer ideia no papel. Caso contrário, seria um desperdício de tempo, esforço e material. Então, a "autora sonhadora" começou a redigir o texto à mão, mesmo... Em folhas de rascunho verde, que sobravam lá, no lugar onde sua mãe trabalhava. Depois da escola, durante as longas e solitárias tardes, ela escrevia e reescrevia... Mão e braço chegavam a doer. A sonhadora não tinha uma mesa e fazia isso sobre a cama, em frente à televisão. Mas, no final das contas, não tinha ninguém interessado em ler, ou opinar, etc. Assim, ela continuava escrevendo e reescrevendo, fazendo as modificações que julgava apropriadas.

Eu sentia que estava criando alguma coisa bonita, que seria apreciada pelos outros. Mas logo compreendi que o mundo não era cor–de–rosa.

Aos 23, ela foi para a faculdade e vislumbrou o cenário acadêmico – de pesquisa, experimentação e metodologias rigorosas; mas, também, de falas por vezes estéreis, egocêntricas, e até antipáticas... Eu diria até "cheias de dedos" e "rococós". Eram frases bem construídas, mas sem resultados práticos, a não ser estéticos. O ditado "para bom entendedor, meias palavras bastam" não se aplicava aos seus professores, nem aos acadêmicos que os imitavam... Então, a "autora pseudocientista", que realmente tentou se moldar ao gosto acadêmico, conheceu algumas epistemologias interessantes...

Aos 24, ela entrou em ação. Diante de repentina injeção de ânimo, decidiu retomar o manuscrito com um olhar mais apurado para sua falta de consistência – dando uma perspectiva social mais crítica. Nesse período, o enredo recebeu embasamento de pesquisas minuciosas. Aliás, as inúmeras tardes passadas na biblioteca universitária – longas, solitárias, e agradáveis – produziram material suficiente para vários projetos. A faculdade também serviu para que eu, ainda uma sonhadora, descobrisse que as diferenças importavam, ao contrário do que dizia a mãe de Forrest Gump. E as diferenças a afastaram do manuscrito novamente, uma vez que ela precisou lutar para se firmar profissionalmente. Sem parentes a quem pudesse recorrer, só podia contar com sua própria competência.

Aos 29, a "profissional competente", mas ainda lutando para se firmar no mercado de trabalho, teve uma conversa informal com uma grande amiga. E nessa conversa, veio à baila o sonho de escrever. Medrosa, revelou que não tinha coragem de mostrar o que escrevia, por três motivos básicos: não considerava estar à altura do que era publicado (alguns professores do curso que frequentava – o mestrado, diziam que seu estilo não servia à literatura acadêmica; enquanto outros diziam que era diferente demais para se encaixar em qualquer coisa, posto que usava muitas figuras de linguagem e gírias – mas, contraditoriamente, todos concordavam que ela escrevia muito bem!); além disso, a carreira de escritora não era vista pela família como algo rentável...

Ao contrário do que imaginou, a amiga entusiasmou–se, insistindo para que a deixasse ler o manuscrito. À princípio, a "profissional competente" relutou. Além de achá–lo tolo e superficial, o texto estava todo escrito à mão... Marlyane, no entanto, foi persistente. Ofereceu–se para digitá–lo e prometeu dar uma opinião sincera a respeito. E, acredite, ela sabe ser sincera como ninguém! Tive a oportunidade de testemunhar isso várias vezes!

Numa época em que os computadores já funcionavam como utensílios de trabalho corriqueiros, mas nem todos dominavam seus recursos, Marlyane estava num estágio avançado de entendimento com as máquinas. Ela trabalhava eventualmente com design gráfico, produzindo excelentes resultados. E o fazia porque gostava, sem pensar no retorno financeiro que poderia obter. Num belo dia, ela lhe confessou que digitar costumava ser uma tarefa chata, mas o manuscrito fizera parecer excitante – já que ansiava por descobrir o que aconteceria no próximo capítulo... Seus comentários foram tão empolgados, que levaram a "profissional competente" a concluir o texto.

Contudo, novamente, ela se viu arrastada pelas reviravoltas do destino. O computador pifou. O disquete também. Assim, o manuscrito se perdeu, restando apenas uma cópia impressa. Não era a primeira vez que o destino lhe pregava peças, já que, na época da faculdade, uma colega que faria a digitação e a diagramação desapareceu com o manuscrito. Foram seis meses tentando fazê–la devolver, e ela sempre se esquecia de trazê–lo. Ela trabalhava na Caixa Econômica, mas a autora não sabia em qual das agências... A garota estava prestes a se formar e deixar a cidade. Prometera ir à faculdade especialmente para lhe devolver o manuscrito... Mas qual não foi a "surpresa" da autora quando a garota não apareceu no último dia de aula! Sorte da autora que um outro colega sabia onde a irresponsável morava. Tive que atravessar meia cidade, sem dinheiro e a pé, para resgatar o meu manuscrito... Peguei a garota entrando no carro, em frente a sua casa. Ah, ela levou um tremendo susto! Não esperava! Vitória de Ramsés em Kadesh! – aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo!!!

Mas, no caso de Marlyane, a danificação da mídia não era culpa de ninguém. Coisas que acontecem às máquinas. Mas como já havia precedentes em matéria de chateação – por exemplo, o caso da garota da faculdade, que ficou com o manuscrito e não fez nada por ele – a autora acreditou que realmente esse livro não era para "acontecer"...

Assim, por estas e outras razões pessoais, a "profissional competente" continuou competente por fora, mas foi se deprimindo por dentro, e de novo deixou O Papiro de lado. Só que lhe aconteceu uma coisa, aos 34 anos. Uma coisa muito séria. Ela se deparou com a morte. Foi aí que a revolução interior teve início. Ela pensou em tudo o que sacrificou em nome dos outros, sempre querendo ser o que os outros consideravam ideal... Refletiu profundamente, e chegou à conclusão de que toda a dedicação ao trabalho, à carreira, e ao sustento da família, não poderia guiá–la até aquele fim patético. Não era justo terminar daquele jeito, sem que ela tivesse, ao menos, aproveitado a vida e realizado alguns sonhos... Ter feito o que queria fazer. A morte foi entendida como a coroação de seus fracassos pessoais. Mas, então, milagrosamente, ela sobreviveu. Eu interpretei como uma resposta de Deus: aquela era a minha segunda chance.

Até o momento, a "profissional competente" tinha feito tudo para receber o reconhecimento familiar que nunca veio... Ao revisar a vida até aquele ponto, precisou compreender que já tinha cumprido a sua obrigação, e que deveria fazer algo por si mesma. Só por si mesma. Assim, resolveu viajar um pouco e "conhecer um pouquinho do mundo lá fora"... Esteve no Programa do Jô, foi ao show do Ricky Martin, onde conheceu garotas fantásticas e fez amizades que, espera, sejam para toda a vida. Livin' la Vida Loca!

Aos 38, decidiu ressuscitar o sonho de se tornar uma escritora, agora, mais segura de sua capacidade. Deixou de lado suas outras atividades para investir nisso. E a prova de que estava no caminho certo lhe foi apresentada através da leitura de obras novas, de autores de sucesso, que utilizavam os mesmos recursos linguísticos que ela foi desaconselhada a usar pelos professores catedráticos, no passado. Os doutores de Bembridge estão por fora, diria Eve!

Ela estava livre das amarras representadas pela aprovação/consideração que esperava dos outros. Assim, tratou de resgatar o estilo que gostava de escrever; e tratou de esquecer as pessoas interessadas em vantagens pessoais, que se aproximaram visando lucros maiores do que na verdade mereciam – se é que mereciam – e que se aproveitaram de suas tentativas de autorrealização. Bem, para estas, só posso dizer que existe a Lei do Retorno. Quem trapaceia, um dia é trapaceado...

Então, veio Hadrian's Wall. Atualmente conhecido como "A Muralha". A saga que revolucionou a maneira como ela escreve, como se sente em relação à obra, como vive suas emoções e as emoções de suas personagens... Enfim, ocorreu uma verdadeira catarse. Os dois primeiros volumes foram os livros que ela começou e conseguiu terminar de uma só tacada, sem interrupções ou hesitações. E se divertiu muito ao redigi–los! Foi um verdadeiro divisor de águas na sua vida.

A fim de resgatar o espírito de O Papiro, a "autora renascida das cinzas" teve que se reunir com as três antigas autoras. Aos 39 anos, uma tarefa difícil se descortinava a sua frente: avaliar o manuscrito impresso desde a criação até a última recauchutagem. Só assim, ela poderia dar o formato ideal, respeitando as três mãos que trabalharam no projeto antes dela. Afinal, este livro não pertence só à ela – mas também, às diferentes mulheres que ela foi no passado. O princípio que gerou o enredo tinha de ser preservado, acima de tudo.

Caramba! Mas o que fazer com toda aquela pesquisa histórica? Com os nomes fantasiosos que só poderiam brotar de uma mente adolescente? Ou com o linguajar altamente rebuscado de uma teórica engessada? Ou, ainda, com todas as histórias de vida que inspiraram a versão mais competente? Tivemos que fazer concessões, cortando alguns trechos e alterando outros a fim de chegarmos a um consenso.

O que se pode dizer? A jornada de O Papiro finalmente chegou ao fim. Mas não foi mais longa do que o reinado de Pepi II. A sensação que tenho é de missão cumprida. Uma janela do passado que se fechou. Ou se preferirem, a mandala foi completada para que outra possa finalmente ter início.

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