O que são vocês?


— Serafim é seu filho? Por isso que ele não lhe prendeu quando matou o padre? Ele acoberta o senhor!

— Embora Tino ainda pense que eu não tinha o direito de matar por justiça, fiz o que achei ser certo: "olho por olho". Isso foi há muito tempo, sequer a instituição existe nos dias atuais.

— Ai meu Deus! O que são vocês? Vocês falam de tempo, crime, justiça, anjos, serafim... direito de viver, intervir... Bill! — Bill saiu da presença de Betânia e ela ficou assustada. — Tino, vocês são alguma coisa diferente?

— Para começar, defina o que é diferente.

— Pessoas estranhas, anjos, demônios, coisas, bichos, bruxos?

— Bruxos? Ai que nome mais pesado, chame-os de magos. Mas não somos isso não. Somos pessoas comuns e você, minha filha você está ficando caduca.

— Desde quando está com o Bill?

— Cheguei aqui quando tinha doze anos, hoje tenho trinta e seis, faça suas contas. E depois... se eu fosse poderoso como anjo ou diabo, não teria sofrido feito cachorro nas ruas quando menino. Sabe, irmã... eu já tive momentos onde odiei estar vivo e ser como sou.

— Ser como você é?  

— Ter minha aparência, minha cor... hoje a amo tanto, mas já quis ser diferente.  Isso faz... tempo. 

"Eu tinha uma irmã e um irmão mais velhos, e um mais novinho também. Nossa mãe era dançarina de cabaré e para essas mulheres a vida é sempre mais dura. O fato de sermos negros em épocas passadas nos rendia muita humilhação, perseguição e sofrimento. Ela estava grávida pela quinta vez e foi assassinada na nossa frente. Fomos empurrados para alguns parentes que nos acolheram de má vontade. Então fugimos... Fugimos no inverno e os parentes devem ter dado graças aos céus, por terem menos quatro bocas para alimentar. Sobre  os tratos deles que achávamos ruins, não eram nada comparados com o que as ruas nos fizeram.  A mais velha se chamava Altina, foi nossa segunda mãe. Dormíamos nas ruas e os invernos eram cruéis, para que meu irmão menor não passasse tanto frio, Altina o enrolou em seu casaco, assim acabou morrendo na noite mais severa em que dormimos ao relento. Pela manhã ela estava dura e gelada, pobrezinha."  

— Oh...Tino, isso é triste demais... e o pai de vocês?

— Não sei quem é o desgraçado. Meu irmão mais velho Rubens achava que fomos abandonados, a Altina já supunha que éramos filhos de pais diferentes e que um desses homens devia ser casado e por isso se livrou da mamãe.

"O mais novo teve uma infeção e morreu num hospital qualquer. Rubens desapareceu "misteriosamente" depois de furtar umas moedas de uns rapazes. Eu fiquei sozinho nesse mundo que parece com o inferno. Eu acho. Revirava as lixeiras para achar o que vestir e o que comer. Minha cor fechava portas com raiva em minha cara. Eu me odiei por anos e por falta desse amor com minha aparência e vida, eu procurei um meio de morrer sossegado, sem pessoas ruins e idiotas a minha volta. Fui para o interior."

— Porque há tanto ódio nas pessoas? No interior foi melhor?

— Veja irmã... sabe o que são essas cicatrizes? — Tino estende suas mãos.

— São queimaduras?

— Foram queimaduras. Um homem me contratou para um trabalho que consistia em tratar animais, limpar estábulos, chiqueiros e eu precisava comer, lógico que aceitei. 

"Fiz até amizade com o porquinho. Acredita que o homem me acusou injustamente de ter roubado um colar da esposa horrorosa dele dentro de sua casa? Só por eu ser preto! Betânia, eles me bateram para que eu confessasse algo que não fiz. Quando pensei que ia apanhar até morrer, eu aceitei a culpa, aí queimaram as palmas das minhas mãos numa frigideira com óleo... Nunca cheguei perto da casa do filho da puta. Eu fedia a merda de porco, como que ia entrar naquele luxo todo sem que tudo fedesse? A acusação de roubo fora um pretexto para humilhar um ser humano, ele tinha outros empregados que poderiam tê-lo furtado. Eu era só um moleque faminto, pele e ossos, e algumas lombrigas..."

Betânia sorriu em meio ao choro comovido pela história do alegre rapaz.

— Ganhei umas lombrigas mesmo. Eu era imundo, não tinha sapatos, vivia doente e tomava banho de chuva. Comia grama quando a fome castigava demais, passei por um bocado de coisas horríveis até que finalmente eu o vi...

— O Bill?

— Que Bill, mulher?! O colar que a vagabunda da mulher do patrão disse que eu roubei. Tava no pescoço daquela morcega. Senti tanto ódio que... fugi. Para encurtar, conheci o Bill e ele me deixou morar aqui e dormir no quarto do filho mais novo que havia se mudado há muitos anos... Contei minha história ao Bill e ele me pôs em cima do Tobi, um cavalo que ele tinha na época. Fomos até a fazenda e...

— O que aconteceu?

— Credo que curiosa!

— Tino!

— Ele fez a mulher engolir o colar sem água para ajudar a descer. A jóia era imensa. E fez o patrão comer toda a comida que tinha na despensa. Haha. Precisava ver a cara dele quando o Bill disse: "coma ou empurro essa comida toda pelo outro lado".

— Que horror! —  Betânia ficou meio assustada e em seguida deu risada. —  Tinha muita comida?

— Muita!   

Os dois riram como bobos. Aquela punição tinha cara de travessura, mas Tino omitiu a parte em que o homem morreu de congestão.  

— Logo o Bill te levará a delegacia, talvez alguém a tenha procurado por essas bandas. O que o nojento do Serafim lhe disse?

— Que posso ser morta se sair por aí sozinha.

— Hahaha. Grande novidade, eu já tinha dito isso. Agora precisa ser um policial elegante e metido a besta, para merecer crédito?   

— Estou com medo dele. Será que posso ser presa?

— Presa? Só porque usou um "papel daqueles", falsificado. O Bill não ia deixar. Sabemos o mal que lhe fizeram e o Serafim não é burro de irritar o próprio pai, querendo te dar uma lição sobre as coisas erradas que fazemos nessa vida. 

— Mas e se eles pensarem que eu sabia de algo? Como essas coisas que o Bill falou, as pessoas que morreram, os bebês... Eu nunca imaginei que a maldade dele ia além de uns tapas que ele me dava.

— Dava? E você deixou ele vivo? Você é meio devagar, desculpe a franqueza, Betânia.

— Eu gostava dele, Tino... ele pedia desculpas e chorava. —  Betânia baixou o olhar triste e humilhada. — Eu morria de medo de ser largada e que as pessoas descobrissem que eu sou um pouquinho diferente. Eu fui menino, você sabe, porque contei a você toda a minha história. Tudo ia ser mais fácil se eu...

— Não fale besteira. Parece que fez algo pior do que o sem vergonha do seu marido. Você é uma moça que nasceu com um pinto. Grandes coisas.

  — Tino!

— Verdade. Não consigo olhar para você como um homem. Adoro você por ser como é. E não chore porque choro junto... 

Já sentiam-se como irmãos de verdade. Permaneceram sozinhos sentados na grande toalha de mesa que estenderam no gramado com a intenção de um piquenique naquele domingo abafado. Beliscaram um bolo de fubá, Betânia comeu abóbora caramelizada e ofereceu ao rapaz que a xingou pela clara provocação.

Marvin e Bill adormeceram com ventilador ligado. O mais jovem dos dois, acordou antes e ficou observando o ressonar pesado do mais velho. Bill confiava nele para dormir tão tranquilo, pois Marvin tinha uma alma limpa que facilmente poderia ser confundido com um anjo de verdade. Embora fosse um homem marcado.

Geralmente Bill o seduzia quando transavam, hoje Marvin encontrava-se carente de todo aquele corpo. Sentou-se na cama e levou a mão pesada do urso aos seus lábios, beijou cada dedo e a palma. Seus olhos abriram lentamente para encontrar o homem a olhá-lo.

— Anjo...

Marvin sorriu, certo de que precisava daquele contato íntimo, já havia provocado a grande fera. Bill sempre fora gentil com seu menino, hoje ele queria ser amado de forma mais devassa. Sem vergonha e com pressa. Se ofereceu desnudando-se, tomando fôlego e pela primeira vez tocou oralmente no mais velho.

O grande quase esqueceu-se que já fora do paraíso ao inferno, lembrava somente das delícias prometidas naquela boca macia, madura e quente. A beira de ser drenado pelo apetite do rapaz, o mais velho o fez deitar-se de lado, se posicionando atrás dele. Com sua boca tinha acesso ao pescoço sensível de pele sardenta. 

— Como te amo, garoto. — Bill o penetrou fisicamente ao erguer-lhe a coxa, mas estava gravado na alma do jovem que sempre se entregou ao homem que também era seu. Suas almas se uniam naqueles instantes e quase apartavam-se do físico juntas. E o pós, causava pequenos risos, pequenos tremores engraçados e pequenos beijos.  Marvin adormeceu nu de bruços e foi coberto por um fino lençol. O urso, riu ao olhar o grande anjo tatuado nas costas de Marvin, lembrava uma pequena tentativa de ser rebelde, o fazia ainda mais doce.

Ao anoitecer, pernilongos entraram em casa o que obrigou-os a acenderem espirais verdes que compravam em mercearias.

— Quem deixou a porta aberta? — Bill usava um tom brando de voz, mas intimidava mesmo assim.

— A Betânia. — Respondeu Tino sem dó. Ela realmente fora a última a entrar e agora ia levar uma bronca por não tê-la fechado.

— Betânia?

— Sim. — Ela respondeu com os olhos arregalados.

— Pobrezinha, Tino. Nossa princesa ainda não está acostumada com o interior e essas pestes aladas, Tino, francamente.

— Mas... — Tino fez o maior beiço e Marvin caiu na risada, risada sonora na qual expunha seu grosso timbre de voz. Algo tão raro que fez três pessoas interromperem sua refeição para olhá-lo. Ele notou e se recompôs.

— Meu menino maravilhoso, canso de falar que te cercamos de amor. Ficaremos muito felizes se um dia sua confiança retornar. Posso ouvir seus clamores, mas queria muito ouvir sua voz.

— O quê? — Tino ficou inconformado. — Eu sempre achei que ele falava pela boca com o senhor.

— Marvin faz suas orações, algo que o senhor há tempos não faz, Tino.

— Senhor Bill, o que o senhor é exatamente? — Betânia não quis parecer grosseira, estava curiosa e amedrontada. — Vocês são... eu sei que são... 

— Betânia, vai dizer que nunca percebeu? — Tino revirou os olhos. — Somos gente. Pessoas. Tá vendo alguém com rabo, chifre ou asas?

— Anjos? — Ela perguntou com os olhos arregalados e pronta para levantar da mesa, correr e gritar. — Ou são demônios? Ai misericórdia, misericórdia, isso não é verdade, é um pesadelo horrível. Vocês todos...

— Bill, eu posso dar uma bofetada nela?

— Tino! — Bill falou pausadamente, mas com irritação. — Betânia, se continuar com seus chiliques não podemos conversar. 

Bill estende a ela as duas mãos calejadas e grossas, Betânia segura naquelas mãos e imediatamente se acalma.

— Você é um anjo mesmo?

— Quem seguiu aquele que foi expulso para cá, por vocês, são chamados de demônios. Tivemos liberdade de escolha, para descer com ele e também para nos arrependermos de tê-lo seguido. A maioria de nós escolheu uma vida simples, isolamento ou migração. Estamos amarrados a terra e a nós, é atribuída a culpa pelos piores males, quando o próprio homem se tornou perverso. Betânia, não fique tão assustada comigo.

— Acho que vou desmaiar.  

— Sua tonta, não está vendo que isso é uma anedota? Somos pessoas, eu já disse! Olha bem o que você inventa, senhor Bill, o urso. Ela vai pensar que somos uns capetas.

— O senhor tem um filho legítimo, então?

— Tenho dois garotos, o mais velho é Serafim e o mais novo, Lú... o delegado Motta. Meu pequeno foi quem investigou o hospital e descobriu, muito antes de eu resgatá-la que Rafael era chefe de uma organização criminosa. Sufocou dois bebês recém nascidos e outras coisas que um enfermeirinho "plantado" descobriu. Lú... Motta confia naquele diabinho.

— Eu confiaria em qualquer pessoa chamada César. Gosto no nome. Seu único defeito é que ele vive se esfregando no Serafim.  — Tino demonstra intimidade com os parentes de Bill. —O mais novo é encantador, aquele safado! Ai Betânia, todo Natal ele aparece... a não ser que ele arrume uma vagabunda lá na cidade onde ele vive. Opa, ele vive na cidade de onde você saiu.

— Tomara que não se aproxime da minha adorada mãe. Ela é uma mulher doce, solitária e frágil. Fico preocupada que um safado desses possa lhe fazer mal. Será que um dia o senhor me deixaria fazer uma visitinha a ela?

— Um dia sim... por enquanto é melhor que ela não saiba do seu paradeiro. Converse com Serafim e faça o que ele disser. Em sua cidade, você não será bem acolhida nesse momento. O doutorzinho precisa ser achado e preso, tudo esclarecido e os comparsas dele, identificados.

— Se fosse no passado, eu ia adorar ver esses filhos da puta jogados no meio de uma praça pública, o povo descendo o sarrafo, linchando eles. Serafim não vai aguentar muito tempo sem arrancar a cabeça desse Rafael.

— Amanhã vou conversar com meu menino. Ele que não faça merda ou Betânia é quem vai ficar mal na história.

— Mas Bill...

— Ele foi dado como morto. Se aparecer morto, Betânia pode ser acusada de dois crimes. Ela precisa de justiça e não de vingança.

— Espera... meu marido não está morto?  

.......

Deise amamentava seu bebê esfomeado quando recebeu uma carta. A curiosidade humana pode ser terrível, mas ela optou por não tocar no documento. Desde que Motta esteve em sua casa, ela estava alerta a qualquer mínimo movimento à volta. Escutou seu portão abrir pelo barulho das engrenagens metálicas mal lubrificadas e se sobressaltou. O coração palpitou com força e ela sentiu que algo poderia lhe acontecer, pressentimento igual ao dia em que Ramiro lhe comentou que buscaria sua fruta preferida.

— Durma, filho, por favor. — Deise beijou a criança que não adormeceu, mas ficou caladinha a olhar em seus olhos, quatro dias completos em sua companhia foram os mais preciosos que vivera. Fechou os olhos quando uma pancada forte rompeu a porta da frente. Pediu ao anjo da guarda que lhe matassem antes de seu filho.

Passos pesados caminharam na direção do quarto, se aproximaram rápido demais e a maçaneta girou devagar.

— Doutor Motta!

— Onde ele está? — Motta com a arma empunhada e vasculhou o local. — Rápido, pegue seu filho, vem comigo. Ele está perto. Anda!

Para uma mulher que havia feito um parto há poucos dias, não era tão fácil ser rápida, mas pela segurança da criança e instinto de sobrevivência, ela fez o impossível para segui-lo. Um tiro foi ouvido tão perto que suas pernas quase falharam, pensou ser nela ou no delegado, mas não foi. 

Fora num pilar de concreto muito perto de onde passou num espaço de segundos. Correu na direção do carro ao som de novos tiros e foi empurrada sem delicadeza, quase deixando seu menino cair. Seu chorinho era um chamariz, alguém queria-o. O bebê era o alvo!

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Aiii Oi pessoal! Quando criei o conto, tinha aquela vontade de explorar algo meio sobrenatural, mas não me achava pronto então deixei a história com cara de drama mesmo. Então haverá umas dicas que comentei com um leitor, que deixariam aquela dúvida no ar... O que é Bill, urso de verdade? Anjo? Demônio? Cesar que vai aparecer, deixa outra dúvida, ele é uma cobra, um diabinho 🤘 ou apenas um homem estranho? Lúcifer e Serafim compartilham Cesar, afinal ele é o assistente de Lúcifer aquele que tá sempre "morrendo" e Lola o odeia, ao mesmo tempo foi "plantado" no hospital e descobriu coisas....eeee no escritório de Serafim ele também aparecerá .... O que ele é? kkkkkk

Espero que estejam gostando dos rumos do conto.... :D Tem coisa pela frente até mãe e filha se reencontrem... se é que isso acontecerá... 😏😏😏

Carinho e beijos na bochecha de todos...  🐾😽🐾😽🐾😽🐾😽🐾😽🐾😽

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