O pão que o... amassou


Naquela manhã chuvosa, tudo estava deliciosamente aconchegante. Depois do café, Betânia percebeu que os outros cachorros estavam sob o telhado que cobria a varanda, pegou então suas muletas e se dirigiu para lá, encontrando Bill consertando a cadeira de balanço.

— Bill, obrigado por me acolher e por me ajudar naquele momento. Também por me dar de comer e por ser paciente. Teria como me responder o que aconteceu comigo?

— Moça, não me agradeça, foi o Urso que descobriu seu corpo e me avisou. Ele uivou uma noite inteira, não pude dormir e Tino me libertou para que eu fosse lhe resgatar, só que não me permitiu tocar naqueles desgraçados, precisava esperar que eles partissem. Mas se eu ficasse esperando, eles lhe matariam naquela noite, daí permiti que sentissem minha presença e eles se foram.

— O senhor viu o rosto deles? Viu quem eram? Desculpe, não conhecia eles, não é mesmo? Foi muita maldade comigo. Ainda choro e tenho sonhos horríveis quando me lembro.

— Pobrezinha. Você está bem agora?

— Sim. O que o senhor quis dizer aquele dia? Falou de Rafael e que ele deveria ter me protegido. De onde o conhecia?

— Do hospital, onde as pessoas vão em busca de cura para o corpo e encontram a morte. Desculpe, Betânia, mas tudo que eu lhe disser agora vai lhe fazer muito mal. Fique forte e então conversamos e prometo contar o que descobri.

Bill se levanta, dá-lhe as costas e a jovem o chama:

— Bill, Rafael estava fazendo algo de errado? Só me responda isso, por favor.

— Sim, minha querida. Muito errado e muito mau. Beba seu suco, foi Marvin que fez.

— Senhor Bill, isso é confuso demais. Quero entender o porque de terem assassinado o meu marido. Se sabe de algo fale, que diferença faz agora ou depois. Eu sofri por uma vida, passei pelo inferno com meu corpo, Bill...

— Seu corpo está cicatrizando, mas a alma está em "carne-viva", não posso deixar que se atormente mais. Paciência Betânia.

— Sinceramente papai Bill, odeio quando faz isso com as pessoas, o coitado do Marvin está há décadas tentando entender suas charadas. — Tino ouviu parte da conversa e se irritou — Seja generoso, dê umas pistas...

"Décadas?" Pensou Betânia. Bill gargalhou sonoro e encarou a jovem.

— Busque em suas memórias, linda princesa. Paixão demais, cega e emudece uma pessoa.

— Eu não consigo entender quando fala por enigmas. — Betânia gritou perdendo a paciência. 

— Olha Betânia... Lembra da história de Marvin? Silêncio... Poder, obediência, injustiça?

Tino pulou para o lugar desocupado ao lado de Betânia num sofá velho e entregou a ela um lenço xadrez azul claro, com um bordado feito a mão e crochê branco em redor. No lenço continha o gentil gesto dele e no olhar de Bill, havia mistérios indecifráveis.

— Você vai achar a causa de seu martírio nas suas lembranças. Não é um enigma que lhe proponho, embora pareça.

— Bill... — Sua voz era suplicante e o olhar dele era triste.

Urso chegou perto da moça chorosa, apoiou a cabeça em suas coxas e levantou os olhos carentes. Queria carinho, mas sabia que ela precisava muito mais que ele no momento. Urso parecia se compadecer de sua dor e recebeu um afago nas orelhas com a mão trêmula. O grande pastor alemão, abanou a cauda em reposta e a fez sorrir de leve.

Alguém deu-lhe um delicado toque no ombro, era Marvin com uma travessinha de vidro marrom, contendo pequenos quadrados de doce de abóbora. Seu olhar meigo parecia sorrir pra ela e lhe dizer que a compreendia. Havia confissão e cumplicidade.

— Marvin, você é feliz aqui? 

Ele entreabriu os lábios, pensou e voltou a cerrá-los. Sorriu e balançou afirmativamente e com vontade. Depois esticou a travessinha da sobremesa e sentou do outro lado dela, aguardando enquanto comesse. 

— Muito bom. Não gosto de abóbora, mas você sabe preparar. Você gosta tanto assim disso? Abóboras?

Ele balançou a mão, com a palma virada para baixo, respondendo que "mais ou menos", ela riu tendo o rosto molhado e o queixo trêmulo. Não precisaria de muito para cair no choro, mas controlou-se por Marvin e o cão chamado Urso.

— Me perdoa, Marvin, não odeio vocês. Eu só queria entender o que é isso tudo. Fui arrancada dos braços do meu marido, minha mãe deve chorar todos os dias. — Conversar com Marvin era estranho, pois o silêncio dele continha algo misterioso. Betânia lembrou-se de algo. — Marvin, eu estive vendada a maior parte do tempo! Eu não vi nada!

Ele sorriu timidamente e deixou-a sozinha. Betânia engoliu a saliva que doeu ao descer goela abaixo, lembrou-se de um momento dentro dos três anos que vivera com Rafael. 

"— Rafael, a minha mãe disse que Ramiro esteve observando suas idas e vindas, quando ela sai para entregar suas confecções."

"— Sua mãe se impressiona fácil. Fica assustando você a toa."

"— Porque ela faria isso? Mamãe...".

"— Basta desse assunto. Se vir da casa de sua mãe cheia de chiliques, posso proibir que saia."

"— Me proibir de ver minha mãe? E quanto a Ramiro?"

"— Ele está bem casado hoje. Se uma mulher casada que é seu caso, começa a achar coisas, é porque está dando margem."

— Eu respeito você, sempre respeitei, porque está falando assim? Desconfia de mim?"

"— Antes de eu pegar você, já tinha passado pela mão de dois."

"— Você foi o primeiro, sabe disso."

"— Sei o que me conta."

Tiveram essa conversa e Betânia reconheceu que seu marido estava agindo estranhamente, depois da primeira bofetada que levara dele. Um segredo só dela e que já estava perdoado, perdoava sempre e encolhia-se como a esposa obediente e exemplar. Sempre eram os ciúmes em excesso que mexiam com seu doce e carinhoso marido. 

Levantou-se com cuidado, usou as muletas e encaminhou-se para o portãozinho da varanda. A chuva era refrescante, o céu cinzento, trovejante e nem por isso era feio. Continha uma beleza diferente. Diferente como ela. Olhou para o local onde havia um buraco escuro que servia de casa para um animal que não deveria estar vivo, a própria natureza o escolhera para ser extinto, através da cadela que o mataria. Bill tinha interferido. Marvin, Tino e os bichinhos que ali viviam, viviam porque um homem teve paciência em resgatá-los. 

Mas quem era Bill? Ou o que ele era? Ele parecia a ela algo sobre-humano. E se ele fosse?

Sem muito o que fazer numa tarde de interior, todos optaram por um cochilo preguiçoso. As venezianas fechadas forneciam a penumbra perfeita para adormecer. O que dizer então, sobre a orquestra executada pelo som da chuva? Todo o corpo relaxa e as pálpebras pesam. O sono impera.

Betânia tomou um grande susto ao abrir os olhos. Podia ver a sombra de alguém pela fresta sob a porta, remexia-se indecisa e parou junto com seu olhar assustado. Instigada, Betânia pensou em levantar e verificar quem ali estava, porém o medo venceu a curiosidade e ela tampou-se até a cabeça. 

— Betâniaaaa! Porque está escondida, menina? Eu fiquei ali pensando, ui, chego a me arrepiar, naquele dia que você parecia estar com o diabo no couro, você gritou duas vezes: Foi ele! Ele quem? 

— Tino! Me assustou! Era você fora do quarto?

— É claro que era!

— Eu me assustei. Tino, eu não me lembro.

— Ai, isso é uma tragédia, eu preciso saber! Betânia, o Bill não me fala nada, eu queira tanto ajudar a descobrir quem era esses bandidos monstros. Você não lembra das pessoas que não gostavam de você? Algum rapaz que pode ter ficado magoado com você e tinha jeito de quem era capaz de fazer o que lhe fizeram? Não lembra? Força essa "cuca".

 — Tino... Tinha o Ramiro que ficou ressentido comigo e Rafael o odiava, eles se odiavam. Ele foi um que descobriu que eu sou "assim". Tino, Ramiro não era um monstro não. Ele era explosivo e estourava no momento com as pessoas, depois passava a raiva dele.

— E o seu marido? Era estourado ou era de guardar as coisas?  

— Eu não sei...

.............

O vento apaga velas, não apenas uma das velas! 

Num dia quente não poderia uma brisa trazer tanto frio. Lola se encolheu ao notar que todos aquelas pessoas lhe encaravam com seriedade. Como uma alcateia faminta ao deparar-se com a caça, sendo a caça, um belo e saudável cervo.

O homem chegado era José que fora amigo de Ramiro no passado. Seu jeito era acanhado, parecia triste e amedrontado. Um cochicho correu pela sala, iniciando na boca de alguma pessoa fofoqueira bem informada, que o recém chegado fora aquele que encontrou o "caixão" com Rafael dentro. Ele a encarava com dor e pesar.

Lola ouviu tais cochichos e decidiu que seu momento de ir já era oportuno, por isso saiu discretamente. Boa parte do percurso sentiu-se estranha, com sensação de estarem lhe perseguindo, até passos lhe acompanhavam cada vez mais próximos e por isso olhou várias vezes para trás, mesmo que ninguém estivesse ali. Quando ofegante, alcançou o portãozinho de madeira sentiu um alívio tão grande que suspirou audivelmente. Segurança! Seu lar lhe proporcionava isso. 

Três dias se passaram e no domingo como era costume seu, Lola se arrumou para ir à missa, optando pela paróquia do bairro vizinho, pois queria rezar sossegada sem pessoas a lhe olharem de soslaio. Na volta, passou em uma "vendinha" e comprou alguns itens que faltavam em casa e que não lhe pesassem nos braços. 

Pôs o fermento para crescer que seria adicionado à massa do pão que sovava com disposição. O telefone tocou, ela ignorou e continuou a cantar juntamente com Roberto Carlos:

♫ Tanta gente se esqueceu, que a verdade não mudou... quando a paz foi ensinada, pouca gente escutou. Meu Amigo volte logo, venha olhar pelo meu povo, o amor é importante, vem dizer tudo de novo...♫ 

Betânia amava Roberto Carlos e ouvi-lo, aproximava seu coração de sua menina.  Logo o rádio lhe presenteou com Caetano Veloso, tocando Alegria, Alegria. Acabou cantando e rindo sozinha, Betânia, fora sua sugestão quando Bento lhe perguntara cheio de medo se ele poderia adotar um um nome feminino. Maria Bethânia a dona de uma voz potente "batizou" sua filha. 

 ♫Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora e não espera acontecer♫

Outra música lhe trouxe lembranças, Raul! Ele fora um soldado e morreu naquela época tão escura do Brasil. Tantos lutaram, foram presos, torturados e morreram, lutando contra a repressão no país. 

Chorar não adiantava, pensou Lola. Raul se foi e deixou o exemplo de honradez. Deixou uma filha que ele não não pôde ver crescer. Betânia estava desaparecida e ainda tinha esperança de reencontrá-la. Quando Elis Regina soou seu poderio na canção Nossos Pais, Lola parou de sovar a massa do pão. Lentamente abriu a gaveta da cozinha e puxou sua faca de carne. 

"Toc, toc..." Na porta da frente da casa. Ninguém.

Tinha alguém em sua casa, pode ouvir os passos e uma voz já conhecida a deixou furiosa:

— Lola...

— Motta! O senhor está abusando de sua autoridade!

— Domingo eu não a exerço.  Vim ver como tem passado, há dias que não a via. —  Lúcifer Motta ergue as mangas e lava com esmero as duas mãos. Quando ele se volta, vê a faca na mão de Lola. —  Isso era para mim? Lola, Lola, não sou seu inimigo. Dê-me.

Ela não o obedeceu, abriu a gaveta e atirou o utensílio com raiva. Ele sorriu, retirou dois anéis e pôs-se a sovar o pão. 

— O rapaz esteve no velório, não é mesmo? José? 

— Dizem que ele foi a pessoa que encontrou Rafael.

— O corpo. Sim, José achou o corpo do doutorzinho. Vou dar uma averiguada no local, antes que meu pai faça chover muito. 

— Lúcifer Motta, você é a pessoa mais estranha com quem já conversei. Não fala com coerência. Fala como se fosse um anjo ou um demônio.

— Demônios já foram anjos. Lola, preciso que ligue o forno para aquecer. Teremos um bom pão.

"Teremos?" Ela pensou ter ouvido errado. Fez o que ele pediu e juntos assaram o pão, Lola fez chá para ambos e conversaram sobre travessuras na infância. Lola preferiu não entrar naquele assunto estranho, pois não acreditaria nas palavras dele e certamente voltaria a detestá-lo.  

O pão ficou perfeitamente sovado, digno de um elogio. Mas ela jamais o faria e nem mesmo devolveria o sorriso que ele lhe dera de presente antes de ir embora.


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Oii pessoas maluco de bonito! Eu queria ter postado ontem, mas tava muito cansadooo ahhhh (isso é um choro, kkk) e dormiiii. 😴😿😿😴😹😹

Deixarei vocês lendo e volto só de noite então segurem alguns beijos e meu carinho♥♥♥

Vou tomar meu café 🍼🍼🍼 kkkkkk

Um sábado muito além de iluminado a todos!!!

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