Herói de capa preta
Lúcifer Motta estava com dores de cabeça devido ao tempo gasto com o quebra-cabeça disposto em sua frente. Não importa o quão experiente é o sujeito, sempre escapará algo. Agora chega uma caixa com os restos mortais de um sujeito ou sujeita. O estado de deterioração e a mutilação imposta, faltando partes para compor o esqueleto, dificultava muito a identificação.
A família de Ramiro também desejava respostas, mas pareceram recuar um tanto, quando houve a descoberta daquele corpo.
Lola não quis acreditar que fosse sua filha.
Fabrícia entrou em desespero achando que era seu filho.
Achar, era só o que podiam no momento inicial. Quem era "aquilo" dentro do caixote? Ainda havia três pessoas desaparecidas, pois aquele corpo poderia também não ser de nenhum dos procurados.
Quem encontrou a tal caixa e fez a denúncia, era um cidadão morador na zona rural que sentiu cheiro de carniça nas proximidades e saiu para investigar. O dito cujo informou que se embrenhou na mata para descobrir a origem da catinga que invadia sua casa, impregnando os narizes de sua família.
"Justo no interior, onde matam porco, bovinos..." Motta coçou a cabeça com irritação. Mas irritado mesmo, ficou quando o IML liberou o corpo para o enterro. Rafael Silva e Oliveira. "Não sei como que eu já sabia disso." Motta riu sozinho.
Lola juntamente com a notícia do falecimento de Rafael, recebeua comunicação de que sua filha continuava desaparecida e que agora poderia se tornar suspeita de alguma ação criminosa, segundo Motta. Seu desespero foi das lágrimas silenciosas à tremedeira intensa que não lhe deixaram segurar o copo com água. Ninguém tinha ideia do sofrimento interior daquela solitária mulher.
Da mesma forma a família de Ramiro precisou ouvir aquela conversa, para depois descobrir que seu filho sumido, poderia passar de desaparecido para foragido. O rosto de Vera, mãe do jovem oleiro, era tormento puro
E Fabrícia? Era mãe também e por ser a única a enterrar o filho, encontrava-se fora de si. Destilava acusações em meio ao seu desespero, ofendendo duas mulheres que ainda estavam aflitas.
O enterro de Rafael seria um momento sombrio e triste para a cidade inteira. A suspeita daquela morte caindo sobre Ramiro e Betânia dificultavam a saídas de suas famílias de casa sem que fossem perseguidos por olhares, palavras e jornalistas locais.
"Nada a declarar". Quem poderia se defendia dessa maneira, mas e Lola?
Ela achou certo ir ao enterro do genro, já que ele fora um pessoa importante na vida de sua filha e merecia esse último momento, uma oração e a benção dela. Gostava muito dele e por ele, enfrentaria sua família desdenhosa.
Vestiu-se de roupa preta, enrolou seu rosário na mão e voltou-se para a penteadeira. Encarou seu falecido marido, o belo soldado Raul. A foto preservou o sorriso de ambos no momento "do sim". Ao lado, outra foto guardou aquele mês no qual reclamou todos os dias por estar inchada demais devido a gravidez. E finalmente Bento nascera, seu amor. Bento tinha cabelos pretos, rosto amassado, olhos fechados e era tão feinho. Lola sorriu quando lembrou que seu pai, o avô de Bento, lhe disse ao ver o neto:
"— Lola, acredite minha filha, crianças bonitas enfeiam com o passar dos anos". — Seu Ernesto justificara a aparência característica de alguns bebês prematuros quando têm aquele rostinho de "joelho". — Esse menino se ajeita pelo caminho."
Seus pensamentos voltaram o último dia em que esteve na presença de Motta.
"— Não sabemos o paradeiro da sua "filha". Rafael veio para nós dentro de uma caixa de madeira. Pelo menos é o que diz o legista. Barbarizaram o corpo, não é qualquer pessoa que consegue encarar aquilo."
"— Ah meu Senhor! Que monstruosidade! — Lola tampou a boca horrorizada com a notícia e a frieza com a qual era passada a ela."
"— Ele deve ter sofrido um bocado. Sequer pudemos saber se o dedo amputado que nos enviaram é desse doutorzinho, uma vez que nem os pés foram achados. Para o doutor, os problemas terminaram, não é mesmo? Agora estamos no encalço de dois foragidos."
"Tomada pela náusea e a tontura, Lola apagou imediatamente. Quando acordou, estava sentada no chão da delegacia sendo abanada pelo homem."
"— Perdoe-me pela forma crua com a qual lhe dei a notícia... — Ele desculpou-se com um leve sorriso. Lola levantou-se ainda zonza e prostrou-se em frente ao homem da lei. — Devagar, minha querida..."
Ele não terminou a frase dita e foi atingido por uma bofetada tão forte que quase fê-lo perder o equilíbrio. A mulher enfurecida tentou soca-lo com as duas mãos de punhos fechados, no entanto Motta conseguia ter mais sucesso em se defender.
"— O senhor não deve ter família ou pessoas que gostem de você. É frio e sádico. Porque você precisa ser assim? Queria me destruir com a notícia da morte do meu genro e essa suspeita ridícula sobre minha filha, vou sair daqui enquanto você fica dando risada pelas minhas costas. Idiota!"
"— Não sou Sérgio Chapelin que anuncia de forma elegante, o falecimento de alguém."
"— Um mínimo de sensibilidade, por favor... — Lola chora inconsolável. Lúcifer a abraça e a faz repousar a cabeça em seu peito."
"— Todos nós temos uma cruz. Chore, chore muito, pais e filhos morrem. A dor não é diferente. Perdi meus dois filhos e esposa. Meu único irmão Serafim é o que tenho de mais valioso, porém não nos falamos há anos. Curei minha dor da perda quando passei a crer que jamais vou ver meus filhos e esposa sofrendo. Pois descansam hoje."
"Lola secou as lágrimas e disse-lhe:"
"— Se sabe como é a dor de uma perda? Então não me peça para eu não chorar."
"— Chore, por favor. Derrame todas as lágrimas que precisar. Estou aqui com você. "
Sozinha, Lola estranha a forma consoladora do homem que carrega o nome de Lúcifer. Não confia nele, nem na família de Rafael. Fabrícia chora, porém lágrimas não necessariamente significam dor. A mãe de Rafael tem motivos para ressentir-se contra Betânia e sua família, pois se sentiu enganada. Será que eles descobriram tudo antes ou depois do casal sumir? Será que dariam um sumiço em sua menina só por isso?
E Rafael? O velório com caixão fechado não permitia que as pessoas vissem ou tocassem no corpo do jovem médico. A morte impregnava o ambiente muito fechado, não ventava do lado de fora e o calor triplicava pela quantidade de velas que estavam acesas.
Cânticos católicos entoados de forma autômata, cheiro de velas, flores naturais como jasmim, cravo tornava o clima pesado além do normalmente fúnebre. Lola tentou se aproximar da sogra de Betânia, mas foi detida pelo pai do falecido. Algumas pessoas a olharam.
Lola rezou pela alma de sua doce filha e por seu querido genro. Fernão, pai de Rafael, um arrogante sexagenário mantinha um olhar enigmático sobre Lola que distraída observava uma única vela dentre tantas, que não tremulava com o vento. A vela sequer derreteu. Parecia não "chorar", derramando sua cera. Era curioso e parecia que alguém ali não possuía sentimentos pelo jovem morto no caixão. Tal era a vela.
Num repente a mesma vela apagou e sobressaltou Lola. Um gélido vento bateu em sua nuca, embora fosse verão quente. As atenções se voltaram para alguém recém chegado, mas as atenções desse alguém foram voltadas para uma só pessoa na sala...
.............
— Marvin, eu estou entediado. Fale comigo... — Tino certamente nascera sob a influência de algum signo, cujo ciúme exacerbado o tornava meio ou possessivo demais. Ele batia na porta do quarto do irmão pela manhã, mas perdeu a paciência e a abriu. — Cadê?
Obviamente, Tino queria garantir sua posição de favorito do papai e isso o fazia esgueirar-se pela madrugada para o quarto de Bill, sem esperar que Marvin ganhara um quinhão de atenção naquela noite em especial.
Tino respeitava muito esse momento do irmão com Bill. Marvin demorou muito tempo para permitir que alguém lhe tocasse com intimidade, embora tenha partido dele a iniciativa. Fora por necessidade de contato humano, necessidade básica de carinho e pelos instintos que fazem brotar sensações mais primitivas no corpo.
A mão dele desceu para dentro do pijama quando sentiu calor no rosto. Imaginava-se com o grande pênis, duro como uma barra de ferro, inteiramente dentro dele. Bill fodia bem, era carinhoso, mas podia ser bruto caso lhe pedisse... Tino gostava assim... Imaginava-se no lugar do irmão e suspirava pesado. O prazer e as ondas de calor se espalhavam com força por seu corpo. Um gemido feminino parecido com um sussurro foi ouvido...
— Tino... Tino... — Marvin estava chamando por ele? — Tino me ajude, por favor...
Tino revirou os olhos e falou com impaciência:
— Ai que inconveniente, me interrompe na melhor parte. Ai que diabo! — Tino vai atender Betânia, contrariado — Bom dia, amada irmãzinha. O quê? Ah, desculpe, deixei a porta lá de trás aberta e o Urso entrou. Urso, vem garoto.
— Seu cachorro se chama Urso? — Betânia tenta de defender das lambidas na cara.
— Esse é o Urso, o pequeno é o Montanha, aquele com duas cabeças é o Touro e aquela coisinha feia com a mandíbula proeminente é o Vasco.
— Tem todos esses cachorros? Eu não os vi e nem ouvi latidos. Gosto de cães.
— Os nossos cachorros só latem quando pressentem perigo e aqui tudo é muito calmo. Sempre foi assim, só latem quando tem tempestade, furacão, animais selvagens, Serafim. Eu sonho com o dia em que o Touro morda o rabo dele e arranque um pedaço daquelas calças bem costuradas que ele usa.
— Espera... Tino, você disse que tem um cão com duas cabeças?
— Touro é um cachorro que Bill não quis sacrificar. A cadela rejeitou, mas quando o papai foi meter a mão para ajudar o filhote, tomou uma mordida. Dizem que já nasceu gente assim, se chamam gêmeos siameses, são irmãos grudados.
— Você já o viu? Como que ele é?
— Claro que vi! Ele tem duas cabeças, dois peitorais e quatro patas dianteiras, das costas para trás é igual a outro cão, só que imenso. Além de ser bem antissocial e quase não aparecer, preferindo ficar na gruta aqui perto do sítio.
— É a coisa mais incrível que ouvi! Um dia posso vê-lo?
— Convença o Marvin te levar junto, só ele que entra e sai.
— E os outros?
— O Montanha é um vira-lata ínfimo, um cocozinho de mosca de tão pequeno. Ele veio se esconder aqui para terminar de morrer depois de levar uma picada de cobra, mas não morreu. O Vasco é o mais velho, tá surdo, meio cego, ganha do Urso na teimosia e é feio de dói, a praga.
Betânia acariciava a cabeça de Urso que mantinha as orelhas pontudas erguidas. Sentiu uma conexão incrível com ele, parecia seu cachorro.
— E esse daí você conhece. Urso, o pastor alemão é teimoso demais. Betânia, foi o Urso que lhe encontrou e veio avisar o Bill.
A jovem sorrindo, não foi capaz de conter a emoção ao ouvir aquela afirmação. Urso! Urso não fora um delírio, esteve com ela. Foi o rosnado estranho que ela ouviu, quando... Ele tentava animá-la, lambendo seu rosto.
— Obrigado, Urso, meu querido amigo. — Betânia chorou apertando o cão, não querendo mais soltá-lo. Ficou um tempo assim até que a calma trouxe a racionalidade e ela sentiu a bexiga estourando. Olhou para Tino para pedir que ele a ajudasse a retirar de cima dela o grande cachorro, mas ele saiu correndo do quarto.
— Ei, Tino onde você vai?
— Chamar o Bill. — Ele corre até a cozinha sem olhar para trás e acha Bill agachado em frente ao fogão, a alimentar o fogo com lenha partida de bracatinga. — Bill, o Urso não obedece, aquele pulguento sem vergonha está sobre a irmã.
Bill ergue-se em toda sua altura como um velho urso pardo.
— O que disse? — Bill beija-o — Urso não obedece esse lindo rapaz? Hum? Porque está chorando, Tino?
— Me lembro que você disse, depois matar aquele padre que nunca mais ia interferir na vida das pessoas que sofrem. Você tinha prometido não sujar mais suas mãos, fez essa promessa por mim, lembra? Mas estou feliz demais por ter resgatado a Betânia quando o Urso veio te avisar. Feliz demais... por isso que choro. Te amo tanto.
Bill o apertou com mais força contra seu corpo e sorriu de leve. Tino o tinha perdoado por aquele crime.
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Oiii pessoal! Primeiro um carinho, uns abraços e uns apertões... uns pelos de gato em suas roupas, kkk.
Depois, eu quero esclarecer algo a respeito do capítulo anterior. Não sou católico, nem evangélico, nem budista, nem maçom, nem umbandista e nem espirita. Muito menos islã, nem muçulmano... nem judeu. Sou alguém que crê em alguma força superior a nossa, mesmo que esta força não tenha um rosto pra mim. Sou do bem, acho que esse ainda é o caminho.
Porém pareceu talvez, ou não, que eu coloquei o clero como vilões. Usei o clichê de pedofilia cometida por pessoas dentro da sagrada instituição Católica, onde tem muitas pessoas boas e decentes, até mesmo padres e irmãs, afinal quem foi Madre Tereza de Calcutá e o que ela fez? Eu já chorei lendo o que fez, essa mulher santa e também Madre Paulina que foi de uma cidade aqui perto de onde eu moro( Nova Trento), fui até conhecer o Santuário dela. E mesmo pessoas que agem como missionários, abrindo mão da vaidade para beneficiar o irmão sofredor. Desta forma, querido leitor, não diga-me que generalizei.
Afinal usei um clichê como o disseste, para compor a "realidade" de um menino de orfanato onde "aconteceria" tais práticas. Por isso peço que perdoe a mim se pareceu-lhe ofensivo. Jamais pensei nisso, até porque sou bem de boas. De coração, dedico a ti meu carinho e esse capítulo. Um beijão Renan♥
E seguirei com a ideia que tenho, mencionando temas religiosos ligados à figuras bíblicas. E já falei demais, cale-se Jota, hehe.
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