Bento, uma doce princesa...



Ainda muito jovem, Bento sentia-se feminino. Uma doce menina presa no corpo de um menino...

Na sua cabeça não fazia sentido "usar" um corpo de macho e nem ser chamado de Bento. Gostava do nome Betânia e queria ser chamado assim. 

Fora uma criança muito amada por sua mãe Lola, a costureira. Esta permitia que ela ajudasse a colocar os pequenos botões em formato de pérola em vestidos das filhas dos mais abastados habitantes da cidade onde viveram por muitos anos. Sendo uma mulher perspicaz, Lola notara muito cedo essa particularidade da criança e aguardou que se manifestasse. Apoiaria o até então Bento, se Bento fosse ou se Betânia se tornasse.

Bento tinha pouca idade quando teve certeza de que estava tudo errado com ela. 

E porque era errado se havia apenas inocência em seu ser?

Lola sabia que sua filha poderia sofrer com aquela condição, então por volta de 1976, quando a criança tinha onze anos, ela resolveu que procuraria algum lugar mais isolado para viverem em paz. Assim, menino ou menina poderia criar asas, voar e ser feliz como o desejasse. Mas o processo de mudança não se deu da noite para o dia. 

Passados quase cinco anos, Bento chegou ao décimo quinto aniversário e até ali já havia sofrido vários tipos de humilhação e agressões físicas, apenas por ser feminino. Lola sofria por não conseguir proteger sua cria como gostaria, estava demorando em economizar dinheiro suficiente para comprar uma casa no interior e por esse motivo tirou a filha da escola, passando a lhe ensinar o ofício de costureira.

Finalmente chegara a oportunidade de ir embora! Elas não se importaram o quão moroso e cansativo fora todo aquele processo de compra, mudança e adaptação.  Naquela cidade fazia anos que não se obtinha notícias de crimes, violência, roubos e desaparecimentos e povo não tinham motivos para tais. Ali as pessoas se davam bem e o padrões moralistas da localidade eram mantidos por ser mais convenientes a todos.

Apoiando a identidade da filha, Lola a protegia, mimava e cosia-lhe os mais bonitos vestidos que encontrava na Revista Manequim. Porém eram cuidadosas e reservadas para não chamarem a atenção.  Algo que não funcionou, porque mãe e filha eram bonitas. Ambas tinham belos olhos castanhos e cílios naturalmente fartos. Lola era esguia, já Betânia era pequena de corpo, com gordurinhas que faziam as curvas certas, possuía voz doce, rosto liso e modos de princesa. Uma pequena dama que passou a ser sonho de conquista de jovens bem intencionados, ou não.

Lola se preocupava com os tipos que vinham a sua casa para obterem a permissão de acompanhar a jovem filha aos pequenos eventos daquele lugar. A moça se encantava muito com as atenções que recebia, mas por sorte, pensava Lola, sua filha ainda não tinha se apaixonado. 

Um dia isso mudou. Aos dezessete anos, Betânia permitiu-se o primeiro beijo e o homem escolhido por ela foi Ramiro, o filho do dono da maior olaria da cidade. Seus pais faziam parte das poucas pessoas tinham muito dinheiro ali e ele era um rapaz gentil.

Betânia encantada, feliz e apaixonada contou  a sua mãe sobre o beijo. Só que aquela mulher que lhe parecia muito mais com um anjo do um ser humano, que ainda a colocava na cama e esquentava-lhe o leite, a fez chorar quando soube. Lola tentou explicar o quanto ficaria complicada a situação se o rapaz descobrisse sobre a particularidade dela.  Betânia entendeu que tinha que se guardar, pois entre as pernas tinha algo que podia "matar" o romance de ambos.

Ramiro podia ser a gentileza em forma de pessoa, mas logo demonstrou um temperamento instável, principalmente quando sentia-se mais possessivo com Betânia. O rapaz cansou de discutir com um dos colegas e veio então a primeira agressão física. Betânia permaneceu calada e encolhida num canto perto do cercado do sítio onde o amigo de Ramiro morava. Seu namorado tinha músculos em desenvolvimento, firmeza e destreza nos golpes que acertaram a cara de José por tantas vezes até garantir que o sangue que tingia sua face, lhe desse um aspecto assustador. 

— Da próxima vez te soco até seus dentes caírem da boca, seu filho da puta.

José permaneceu calado com as duas mãos em frente ao rosto  tentando se proteger de novos golpes e só chorou assustado quando eles partiram.  O rapaz se apaixonara pela jovem Betânia na mesma medida que ela se apaixonara por Ramiro. Pobre dela que foi ameaçada de apanhar junto com José se o defendesse.

— E não defende-o que você apanha também. 

— Calma, Ramiro. Eu não falei nada, só...

— Cala a boca! Cala a boca! —  Ele gritou levantando o braço para esbofetear o rosto dela que se encolheu toda.

Por medo de Ramiro, Betânia nada disse a sua mãe. Por medo que a mãe intervisse, ela permaneceu calada e para se proteger não saia mais de dentro de casa. Ramiro jogava pedrinhas na veneziana de madeira para chamar Betânia que estava acuada como um cãozinho ameaçado. Para não sair com ele, ela arrumava desculpas como cólicas menstruais e enxaqueca. 

Porém, um dia ele se enfezou tentou invadir a sala onde Lola riscava um tecido com um molde de costura. Não conseguindo, ele parou do lado de fora da janela aberta e gritou:

— Dona Lola, por favor, chame a Betânia ou juro que faço uma loucura aqui.

— Se entrar em minha casa sem autorização, não sairás. — Ramiro não era moço de ter medo, menos ainda de uma mulher delicada e calma como Lola, mas a temeu pelo olhar que ela lançou a ele. — Vai embora e nos deixe em paz. Se voltar eu não respondo por mim.

Ele resolveu recuar, mas o ódio deixou ali a promessa de que não acabaria bem aquela história. Lola se precaveu registrando ocorrência contra Ramiro e aquilo a fez ser mal vista no lugar. Ora pois, a família dele ia bem financeiramente, eram pessoas de modos simples, trabalhadoras e provinha de gerações que ajudaram a construir o lugar. Ela era só uma viúva com uma filha em idade de se casar que recém haviam chegado no lugar e já estava causando tumulto.

Como praxe houve uma ordem para que o rapaz não chegasse perto da moça e isso oportunizou a aproximação de outros rapazes, porém ela não desejava. Tinha medo. Sentia o coração apertar com esse medo, tinha sonhos ruins e o ar lhe faltou num certo dia. Sua mãe chamara a ambulância que lhe atendeu de forma rápida e garantiu uma noite em observação.

Doutor Rafael fora outro que encantou-se com a beleza de cabelos longos e lisos. Passou uns momentos a cuidar de seu repouso. Pela noite em que atendeu como plantonista, fez visitas desnecessárias ao quarto onde Betânia estava dormindo.

Pela manhã antes de encerrar seu plantão, foi até o quarto mais uma vez para guardar mais um pouco daquela juventude em sua memória e a observou com mais atenção.

— Ah. Que susto! — Betânia pôs a mão no peito e mirou nos olhos azuis do macho bonito a sua frente.

— Desculpe pequena. Não era intenção. É ainda mais bela pela manhã.

Aquela frase arrebatou o coração dela, mas vinha o medo da entrega, amor, paixão, contato físico e então a descoberta de seu segredo.

Pouco a pouco, Ramiro perdeu o interesse em Betânia e sua família o influenciou a noivar com uma jovem cuja família tinha boas posses e colocação social de prestígio. Fora que Deise era moça casadoira, afoita por um partido interessante como Ramiro. 

Betânia sentiu uma pequena agulhada no coração ao saber. Não pelo rapaz, mas porque sabia que não poderia realizar o sonho de ser uma noiva, esposa e mãe.

Não demorou para que outro pretendente batesse a sua porta, esse era sim o moço decente. Filho de gente rica, Rafael cursou medicina com recursos da família e se tornou cardiologista. Já beirava os trinta e nunca se casara. Antes que alguém lhe apontasse ou questionasse, ele apenas dizia que aos trinta ficaria noivo. Mas a namorada nem havia sido escolhida. Talvez estaria sendo naquela tarde em que ele foi de carro até o bairro onde lhe indicaram a costureira.

— A senhora colocaria esse zíper, gosto dessa calça e ela está tão boa que é um desperdício descartar.

— Engraçado doutor, sempre achei que gente rica esbanjasse.

— Na verdade eu vim a sua casa para pedir se posso ver aquela moça, Betânia.

Lola arregalou os olhos.

— O senhor lembra dela?

— Nunca me esqueci, na verdade.

Betânia aproxima-se da sala ao escutar a conversa por trás da porta e sorri envergonhada. Lola era receosa e já pensava que coisas ruins poderiam acontecer com sua menina se alguém descobrisse que era um "menino".

Doutor Rafael não desistiu e por meses e incansáveis tentativas levou a moça ao cinema que era estilo drive-in, onde poderia conversar sem surpresas desagradáveis. O filme que passava era Mad Max 2, o qual nunca souberam como fora o final, pois estavam se beijando apaixonadamente no momento. Finalmente ele disse:

— Você é ele...

O susto a deixou lívida e pálida. Betânia tentou abrir o carro e fugir, mas Rafael segurou com gentileza o braço.

— Betânia, tudo bem. Eu gosto dessa sua condição, fique. Amo-a demais para não nos permitir isso. Nunca casei-me e jamais me relacionei com o corpo feminino. Entendeu agora?

— Tenho medo.

— De mim não precisa. 

Foi naquela noite que eles fizeram amor. Depois houve tantas outras noites em que se amaram e exploraram o corpo um do outro. Finalmente Betânia e Rafael eram um único ser.

Ele sabia que não seria tão fácil viver amasiado. Seriam mal vistos perante a sociedade conservadora. E como casaria com ela não podendo apresentar documentos?  O que era pior que amasiar-se? Era descobrirem que sua companheira era um "homem". Isso causaria escândalos e quem sabe algo muito pior.

Betânia completou dezoito anos, estava pronta para a etapa do matrimônio e seus sogros cobravam isso do filho, pois gostavam da moça e do ofício dela como costureira. Logo a jovem se tornara parte de uma família carinhosa e isso não agradava por completo sua mãe. Lola tinha medo que a filha sofresse e sofria por não poder lhe proteger melhor como sempre fizera. Agora ela tinha Rafael em sua vida e esse lhe proveria além do sustento o conforto e a proteção.

— Rafael, cuide dela por tudo que existe de mais sagrado. Você sabe que Betânia é diferente, não é mesmo?

— Ela é especial. É como preciso que seja.

A conversa tranquilizou Lola e a levou a lágrimas de emoção, pois Betânia teria um bom homem que lhe cuidaria e nada de mal poderia acontecer com ela.

A princípio, o casal amasiou-se e muita gente torceu o nariz. Aquilo era errado, os religiosos "cuspiam" que Jesus Cristo transformara água em vinho em uma celebração de casamento justo para demonstrar o quão importante era esse voto. Então Rafael confuso, achou que se Betânia e ele entrassem em acordo, poderiam se mudar para uma cidade maior onde ficavam mais "camuflados" ou quem sabe na outra alternativa, providenciaria documentos falsos para ela casar-se com ele.

A segunda opção foi unanime e pareceu mais fácil. Não era certo, mas como nada era certo, não fazia diferença a eles, mas para quem os olhara com desdém.

Cidades grandes ou pequenas têm seus submundos e a partir desse, Rafael conseguiu com que lhe fornecessem uma certidão de Nascimento adulterada, pagando uma alta quantia pelo documento e pelo silêncio do tabelião. Porém a segunda parte comprada era a mais cara, porque nunca estariam seguros.

Bento era Betânia agora e pra sempre, enquanto o sempre durasse.

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Oiii Pessoal, resolvi "soltar" um capítulo bem morninho para vocês conhecerem duas personagens... 

Eu não aguenteiiiii, era pra postar só quando acabasse de escrever... 

Beijos, beijos e dignidade já! haha

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