Amado urso...
43 dias antes...
Tino e Marvin já estavam preocupados, as pessoas mais velhas diziam que haveria tempestades com raios nos próximos dias e Bill estava fora de casa.
Bill tinha um caminhão de transporte e passava até uma semana longe de casa, mas dessa vez estava demorando demais.
— Marvin, você está pensando o mesmo que eu? Claro que não achei isso, seu exagerado! Só você mesmo para achar que Bill sofreu um acidente. — Marvin revirou os olhos quando Tino o repreendeu. O ursinho ruivo não estava tendo um bom dia. — Ah, senhor Marvin, às vezes o senhor me irrita com essa arrogância e soberba para cima de mim. Vou contar tudo para o Bill. Papai vai saber o quão atrevido você se tornou.
O ruivo revirou os olhos enquanto lavava a louça, pois como sempre, não havia esboçado reação alguma. O som de um caminhão a diesel o fez largar o que estava fazendo e sair correndo.
— Ei, Marvin. E a louça, seu malandro?! Volta aqui. — Tino lixava uma de suas unhas e ao ouvir o ronco do motor, imitou Marvin e correu em desabalada carreira até o portão de madeira para ajuda-lo a abrir.
A força do vento quase carregava Tino e Marvin o abraçou com força para que o vento não o derrubasse. Era um tornado que passava na redondeza e por ali quase deitava as árvores.
"Ouviriam sobre o poder de destruição no dia seguinte, no único meio de transmissão de notícias que tinham em casa, um rádio."
Um estrondoso raio caiu, fazendo Tino se esconder debaixo da mesa e Marvin de joelhos, fazia um gesto com a mão para convencê-lo a sair de lá. Logo algo mais poderoso rugiu e foi uma voz:
— Marvin, venha cá.
O coração de Marvin se encheu de temor e alegria. Saiu em disparada na direção da voz de timbre grave. Papai estava de costas, próximo a banheira de louça e exalava um fedor de podridão. Sua pesada casaca de couro catingava todo o tipo de coisa ruim e estava suja dessas coisas fedidas, além de sangue.
Marvin observou uma pessoa esquelética dentro da banheira vazia. O ser humano estava coberto de sujeira, continha ferimentos graves e sangrantes, além de lhe faltarem partes dos dedos de um dos pés.
— Prepare água para o banho.
A água que aquecia sobre o fogão a lenha era para o banho de Tino, no entanto ele jamais ousaria contestar um pedido de Bill.
Bill despe sua camisa, aguarda Marvin preparar a água morna e despejar com os dois baldes, até que o corpo esteja coberto. Depois ambos a esfregam até que a sujeira mais grossa desprenda de seu corpo. Fora um processo demorado, pois a pessoa lutava de forma inconsciente contra dois pares de mãos que tentavam lhe aplicar alguns cuidados.
Seja lá quem fosse, estava nas piores condições que um ser humano poderia suportar.
Bill secou o rosto daquela criatura para aplicar um medicamento, costurou vários ferimentos abertos a passou a noite acordado a velar seu sono agitado. Obrigou Marvin a ir descansar, sabendo o quanto ele gostava de ajudar. Levantou o estranho nos braços e sentou-se frente ao fogão com a criatura judiada em seu colo, embrulhada em uma coberta a embalou como se faz a um bebê que não dorme.
Por muitas noites seguintes, cuidou daquela pessoa que ardia e febre, resmungava maldições, implorava pela vida de alguém, se debatia, gritava, chorava, vomitava e quase congelava com crises de hipotermia.
Todos os meios de cuidar bem dela, passaram a dar resultados quando cessaram os gritos noturnos e as febres. Isso se deu após quase vinte dias. Tino e Marvin não sabiam nada a seu respeito, mas já a amavam. Seriam sua família daí por diante. Bill então disse:
— Temos uma menina em casa, protejam-na. Ela vai precisar de paciência, machucaram sua alma e essa é difícil de curar. Não é como o corpo, que cicatriza. — Na sala o grande homem sentou-se estando muito cansado e seus dois meninos correram para pedir um colo.
— Bill, o senhor foi à delegacia pela manhã, o que lhe disseram?
—Ah Tino meu bezerrinho... O delegado Serafim, só me disse que se a procurarem, ele entra em contato.
— Credo Bill, estou cansado desse descaso que autoridades têm com pessoas comuns como nós. É bem óbvio que não irão mexer um dedo para descobrir quem é e o que lhe aconteceu.
— Não implique com o garoto Serafim.
— Se eu pudesse e também se eu fosse mais alto, mais forte e corajoso... arranhava a cara dele. Ele finge que nada acontece. Pessoas somem e ele não se importa. Teve aquele maníaco que desapareceu no inverno passado, que até eu gostaria de ter dado um sumiço, mas não vêm ao caso. Não vou com a cara dele. E nem o Marvin. Marvin o odeia.
Marvin arregalou os olhos, indignado com Tino. Marvin não tinha nada contra o delegado Serafim.
—Quando ela foi achada pelo senhor, não deveria ter sido levada ao hospital e interrogada, essas coisas? — Tino continuou.
— Fiquei por seis horas exaustivas naquele pequeno "abatedouro" lotado. Pediram documentos e eu tentei argumentar que um médico não pode negar atendimento. Mandaram que eu me retirasse, pois eu estava empesteando o ambiente. Então, eu ameacei de largar a moça lá... mas me partiu o coração quando pensei em abandoná-la naquelas condições.
— Onde ela foi encontrada, papai Bill?
— Isso não é relevante para você, Tino. — Bill finalizou a conversa dessa maneira. Ele sabia onde a encontrara, isso bastava. Alguém ainda a procuraria. — E o meu anjinho? Hum? Esse lindo menino do Bill, não trabalhou demais, não é mesmo?
Marvin negou com a cabeça e sorriu, depois abraçou forte o papai. Tino também estava com saudades do calor daquele corpo grande e peludo, o jeitão bruto, autoritário, mas ao mesmo tempo doce, generoso e de amortransbordante por seus rapazes. Naquela noite ambos quiseram banhar o grande corpo de Bill. Ajudaram-no, e depois de se lavarem também, Tino e Marvin se aconchegaram na cama, abraçados ao macho que ressonava pesado, roncando como se fosse uma serra de madeira.
O amanhecer era muito louvado por eles... Iniciava com uma gélida brisa, depois aquecia perto das dez horas, o gramado já estava livre da umidade do sereno e ali os animais se aqueciam, brincavam ou apenas coexistiam.
— Olha como esse Totó está gordo, Marvin! Chega de enchê-lo de comida. Nossa, como pode comer desse jeito, ele vai explodir. Oh meu Totó, porco lindo do Tino. Marvin não é uma boa pessoa né? Ele quer ver você roliço e incapaz de caminhar, obeso e com problemas do coração. Ai Marvin, ele não é o porco mais fofo que você já viu? Marvin?
Tino ficou possesso quando percebeu que seu irmão lhe abandou enquanto ele conversava com o porco de estimação. Marvin tratava os bichos, que eram criados por eles. Algumas galinhas, um ganso, um casal de emas, uma tartaruga, duas vacas, um porco, gatos e cachorros, todos tinham receberam nomes. Bill não criava animais para abate e seus rapazes sequer comiam carne depois que foram morar com ele.
De repente Marvin passou correndo com uma coisa escondida e Tino não conseguiu ver o que era, então seguiu seu irmão. Descobriu que nascera outra ninhada de pintos e Marvin queria mostrar àquela nova hóspede que completava quarenta e dois dias de estada no lugar. Porém, ela ainda se negava em sair do quarto.
Os olhos da estranha pousaram sem entusiasmo na ave amarelinha. Marvin pegou sua mão e fez com que tocasse nas penas fininhas. Betânia olhou sua mão sem unhas e escondeu-a rapidamente, se arrepiava ao lembrar de como haviam descolado cada uma das dez unhas.
— Que lugar é esse? Porque estou aqui? Sabe me dizer?
Marvin outra vez balançou os ombros com desinteresse. Betânia ficou desanimada e tentou levantar-se. Ele pôs a pequena ave no chão e serviu-se de calço para ela levantar. Com cuidado Betânia colocou os pés no chão e reclamou de fisgadas no pé mutilado. O quarto girou à sua volta, a escuridão ameaçou leva-la ao desmaio e por fim teve forças para permanecer acordada. Passos lhe causavam muita dor, mas ela quis sair do quarto... e com dificuldade chegou à sala aconchegante.
— Não fala ou não me entende? — Ela ainda tentava dialogar com Marvin sem sucesso.
— Ele não costuma falar. — Respondeu-lhe uma voz poderosa. — Marvin é o nome desse pequeno. Marvin é um anjo. Eu sou Bill.
Betânia ainda procurava o dono da grave voz. Achou engraçado chamar Marvin de pequeno, pois este era alguns centímetros mais alto que ela. Logo compreendeu o porque da voz referir-se ao rapaz dessa forma. O dono do timbre, era imenso, tão grande que lembrava um urso pardo quando fica em duas patas. Bill usava um jeans velho que marcava as coxas grossas, a camisa xadrez puída com botões abertos mostrava os pelos pretos e densos, o peito largo e um pouco de barriga. Em seu rosto, a barba castanha era cheia e seus traços indicavam ter sido um belo homem na juventude. Cinquenta anos era certo que já havia completado. Demonstrava paciência ao empalhar um gato.
A jovem ficou horrorizada, vendo o homem costurando a barriga do animal que parecia vivo. Acabou urinando de pé, desvencilhou-se de Marvin e tentou correr, mas caiu e arrastou-se até a porta.
— Socorro! Socorro! Socorro! — Betânia não conseguia gritar, repetia ensandecida até que Tino surge com a pá de cavar em uma das mãos. Seus gritos ecoaram, tampou sua cabeça com as mãos esperando o golpe e a tortura recomeçar.
A demora em lhe acontecer algo, deu a ela coragem para abrir os olhos e nisso, focalizou um par de pés grandes calçados com uma sandália de couro. Era o "empalhador". Ele a mataria e depois ia enchê-la de serragem, após isso, ela seria envernizada e colocada junto com outros animais que ele deve ter assassinado por diversão. Mas onde estavam esses outros animais? Betânia procurou com o olhar e não encontrou nada de anormal, a não ser o gato "empalhado" que parecia acordado e mexia uma das patas.
— Ei pequena, Marvin acabou de encerar o chão. Temos banheiro com encanamento. Achou de certo que tínhamos uma latrina por aqui nessas bandas?
— Não, não chega perto. Senhor não me faça mal, não me machuque mais. Me mate, por favor.
— Entendo bem o seu pavor. Relaxe. Se fosse para lhe fazer mal, eu teria deixado onde encontrei ou naquele hospital da prefeitura. — Bill retruca, fazendo com que ela procure seu olhar. Um olhar cheio de enigmas, com muitas histórias escondidas, havia tranquilidade, mas também rudeza. Eram olhos escuros, cuja cor ainda não descobrira.
"Miarrrrrrr"
Betânia assustou-se com o miado fraco, o que fez o grande sujeito esboçar um sorriso e voltar-se na direção onde largou o bicho recém "empalhado".
— Chinho, sinto muito ter que falar isso — O sujeito juntou com cuidado o gato grogue e conversou com ele — mas, você só tem mais seis vidas. Em vez de costurar sua barriga rasgada pela cerca, eu devia lhe dar umas palmadas, isso sim. Tino!
Tino estava na porta da sala aborrecido, emburrado e enciumado com a atenção recebida pela jovem.
— Terminei de juntar aquelas coisas nojentas. Só ia guardar a pá, Bill.
— Guarde logo e entre. Hoje não tem luar e não gosto que fiquem para fora de casa.
— E você, moça... se acalme. Vou ajudá-la com seu banho. — Papai se agacha e a levanta nos braços pouco se importando com a urina em suas vestes. — Linda princesa... — Ele diz com suavidade. — Deixe-me cuidar de você. Já lhe fizeram todo o mal que poderia suportar, deixe então que alguém lhe faça o bem.
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Boa noite pessoal♥
Capítulo revisadinho e entregue. Acredito que a "crueza" está assustando, um bom bucado, mas eu quis muito testar isso. Agora teremos um período em que Betânia luta contra as lembranças. Quem sabe ela supere né? Traumas não se apagam, nem conseguimos bloquear, mas podemos achar uma forma de amenizar... Depois virão outras fases que ela precisará passar.
Beijos, boa terça, ótima quarta, quinta e... opa, eu volto antes de quinta, kkk
Mas será com o capítulo de "Com quem Abi vai ficar?" pra deixar o "troço" mais leve. :D
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