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Vamos deixar uma coisa bem clara aqui: não é que eu acredite em papai Noel, daqueles da embalagem da Coca-Cola, ou do verdadeiro santo e etc. Ok, talvez do santo sim. Mas eu ainda acho que algumas coisas mágicas nascem de algum lugar... Tudo bem, foi viagem começar assim.

Na véspera do natal, a rua de Cosme passou por um apagão terrível, e aquela cena clássica aconteceu. O salpicão azedou, os doces derreteram e o calor insuportável do subúrbio quase descolou nossas peles. Foi terrível, mas tudo se reestabeleceu lá pra sete horas da noite. Venhamos e convenhamos, o estrago já estava feito e a ceia de muita família arruinada.

Sinto muito começar assim, mas é o que é. 

Diferente de muitas casas de tijolo exposto pela minha rua, a nossa tinha dona Cida. E minha mãe é diferente. Diferente e ponto. Assim que faltou luz ela passou tudo para o congelador, tirou tudo da tomada, fechou as janelas com medo de uma chuva que poderia vir e principalmente, me entregou um presente que se mexia. 

"O que é isso?" foi a primeira coisa que eu disse enquanto sacudia.

"Não! Não pode sacudir" ela disse, iluminada pela lanterna do celular. "Só abre de uma vez, vai precisar ser agora, ele não pode ficar escondido no escuro".

Abri e um gato gordo estava com a cara mais irritada possível, como quem quisesse pular em cima de mim e me arranhar inteiro, e eu entendia ele, fechado dentro de uma caixa pequena por alguns segundos para ser entregue para um adolescente igualmente gordo e com a mesma cara de irritado. Mas eu amei.

"Puxa! Mãe, obrigado, sempre quis um gato que parece almofada" dei um sorriso, abracei ela e fiquei encarando o felino, com fitilhos na cabeça e um colarzinho onde deveria estar seu nome. Sempre quis um gato. Nunca pensei no nome.

O deixei solto, minha mãe já tinha trago a água para ele e notei que possivelmente ele estava dentro de casa desde cedo, lá pela área de serviço onde estendemos roupa (o lugar ao qual quase não vou). E vou explicar rápido e de maneira detalhada o porquê.

Eu tinha perdido meu pai, ele morreu no início do ano na área de serviço. Escorregou, bateu a cabeça e acabou a história. Desde então eu evito ir lá, minha mãe lava e pendura minhas roupas, só me entrega para passar, e aquele foi o primeiro natal sem ele. Viu, foi rápido e detalhado, não gosto de falar muito sobre isso.

Mas lá estava eu, o gato e a casa inteira sem luz. Demorou cerca de três horas num calor insuportável, só soubemos que voltou pela luz da sala. Quando voltou foi aquele grito por quase todo o bairro, minha mãe mandou eu calar a boca enquanto falava no celular, aos poucos vinham os funks do lado de fora, as crianças correndo na rua e os cachorros latindo atrás delas. Porém, um latido insistente não parava, e o gato (sem nome no atual momento) correu para os meus pés como se tivesse medo daquele barulho alto. Parecia estar no meu portão, e com essa dúvida eu fui checar pela janela e vi ele...

A vizinha Deise e seu filho Ruan, segurando duas sacolas pesadas e um cachorro que não parava de latir pela coleira.

"Mãe, tem gente no nosso portão..." comentei, ainda olhando os dois pela fresta.

"É óbvio que tem, dá pra você ir atendê-los?" ela dizia tudo enquanto corria procurando um prendedor de cabelo. 

Segurei o gato no colo, para avisar que também tínhamos animais de estimação. Abri a porta de ferro e tirei o trinco do pequeno portão que separava a rua da nossa casa, Deise sorria e seu filho me olhava da cabeça aos pés. Ela se adiantou, segurou meu rosto e me deu um beijo na bochecha, perguntando onde estava minha mãe sem nem me deixar responder, entrando logo em seguida na minha casa. Já Ruan, estendeu a mão.

Ele ainda não me conhecia.

"Prazer, Ruan" ele disse dando um sorriso educado.

"Ruan".

"Seu nome também é Ruan?" ele indagou confuso, ainda segurando minha mão.

E eu percebi que tinha repetido o nome dele, anestesiado.

"Não! Não..." soltei a mão dele e coloquei a minha no bolso da bermuda.

"Tudo bem... E qual é então?" ele sorriu, mas daquela vez foi porque eu estava sendo estúpido.

"É Roberto" respondo, recompondo meus pensamentos. "Ou Beto, me chamam assim por causa do meu pai".

"Tudo bem... Beto. Prazer".

Sorri, ou pelo menos tentei sorrir. 

Ruan passou por mim, o cheiro de perfume de madeira impregnou meu pulmão e naquele momento eu não consegui deixar de pensar: Papai Noel existe, e enviou um presente.

                                                                                             ***


Estávamos naquele dilema quando sua mãe obriga a você conversar com uma pessoa desconhecida somente porque ela tem sua idade. Ruan estava vestindo um casaco rosa claro, tinha o cabelo liso e era uma mistura de indígena com oriental. Sua mãe era uma japonesa, e seu pai era misturado. E ele nasceu assim. A bermuda bege ia até acima do joelho, deixando a mostra um pouco dos músculos da coxa, isso porque Ruan era jogador de futebol, atacante para ser mais exato.

Nunca tivemos contato, nunca mesmo. Ele era da mesma escola que eu só que dois anos acima, e quando entrou para a faculdade quase não vinha para o bairro. Por isso talvez nunca prestou atenção no meu nome, ou simplesmente havia esquecido, era mais comum me chamarem de filho da Cida ou do Betinho (meu pai), e eu me pergunto quanto tempo irá demorar para eu me tornar um Betinho, já que a geração de Robertos na minha casa era grande.

"Você vai fez o Enem?" perguntou Ruan, e eu percebi que olhava fixamente para o seu cachorro de cachecol. 

"Sim" respondi sem olhar para ele ainda, tentando parecer mais pensativo do que obcecado.

"E quer passar em que?"

Não sabia o que ele fazia, era alguma coisa de engenharia ou matemática ou essas coisas que envolvem número e eu não gosto. "Pedagogia".

"Interessante" ele respondeu, acariciando o pelo do cachorro. "Quando eu entrei pra química..." ok, nada a ver com o que eu tinha pensado. "A primeira coisa que me passava na cabeça era ensinar química, mais do que ser um cientista. Queria que as pessoas gostassem do que eu estudo, o Brasil é tão carente por influência para cientistas, não é?".

"Sim" não tinha certeza se era mesmo, mas quis concordar. "Você faz o que fora da faculdade?"

"Futebol. Sou apaixonado por futebol".

"Qual time?" indaguei, curioso, e meu conhecimento por futebol era grande.

"Flamengo".

"Merda".

"O que foi?" ele sorriu com minha expressão.

"Sou tricolor, e também tenho uma queda pelo Santos".

"Combinamos em alguma coisa então, meu sonho é fazer teste pelo Santos, depois do Flamengo é claro" Ruan naquele momento parecia entrar em devaneios, parecidos quando estamos falando dos nossos assuntos favoritos. Seus olhos caramelos brilhavam com a luz amarela da sala, o seu corpo alto e grande dava um contraste com a poltrona azul clara de minha mãe. "E você faz o que?".

Passou na minha cabeça: escuto k-pop, mas não o conceito de k-pop em si, eu escuto algumas músicas repetidamente. Também pensei em falar sobre minha coleção de insetos mortos, mas ele iria ficar assustado. Foi quando veio na minha cabeça o meu vício inegável por Papai Noel e coisas místicas, e não sei o porquê, mas naquela hora pareceu muito interessante falar sobre isso.

"Acredito fielmente em Papai Noel".

Um longo silêncio após minha frase, seguido de uma gargalhada alta. "Você é tão engraçado" ele disse, quase chorando de rir.

"Você não está entendendo, falando sério" reafirmo. "Não acredito que seja como nos filmes sabe, nem temos chaminé no Brasil, quem dirá aqui na baixada. Mas a sua presença enquanto magia".

"Acredita em magia?" sua sobrancelha franziu, demonstrando nitidamente a confusão que sua cabeça fazia para assimilar todas as informações jogadas que eu dava. "Não quero ser estraga prazer, mas... Acho que seus pais esqueceram de falar que o Papai Noel não vem" ele tornou a rir.

"Estou falando sério. Acredito nessas coisas, não me deram motivos pelo contrário. Nunca o viram, certo?".

"Você acredita em Deus?".

Silêncio, mais demorado que o esperado. "Sim".

"Conversa encerrada. Já entendi tudo. Você acredita e ponto, e está tudo bem, só que eu não. Não precisamos entrar num debate".

"Mas eu quero entrar num debate com você".

Isso pareceu uma cantada? Ruan olhou dentro dos meus olhos e depois sorriu, sorri de volta porque parecia o certo a se fazer. Ele bagunçou o cabelo e encostou na poltrona, o cachorro saiu do seu colo correndo atrás do meu gato, não brigavam, mas estavam se caçando e quando chegavam perto, se lambiam. 

"Parece que eles pelo menos se entenderam" disse.

***

Minha mãe e a mãe de Ruan ainda conversavam na cozinha, e eu pude escutar o motivo desse acontecimento. A fiação da casa de Deise "ficou fodida", foi assim que ela explicou. A geladeira queimou, a televisão e várias outras coisas. No português mais correto: o gato enorme da casa acabou com tudo. E agora estão aqui passando o natal, e ela amou, são amigas desde infância e ambas compartilhavam do mesmo sentimento.

Filhos sem pai.

O pai de Ruan sumiu, de um dia para o outro, no seu aniversário de dez anos. Muito se diz que foi pelo tráfico, mas não existe nem menção do nome dele no alto do morro sobre envolvimento, foi tudo muito estranho. A verdade é que possivelmente ele se desentendeu com Deise, traiu e foi viver sua vida com outra mulher. Não comentamos sobre isso, e nem sobre a morte, no mínimo escrota, do meu pai.

E nós dois estávamos no quarto, sem comentar sobre nossos  pais, e ainda assim num debate interminável do porquê faz mais sentido Deus existir do que Papai Noel. Ruan defendia a tese de que Deus está aqui desde sempre, mesmo não acreditando, e que o bom velhinho tinha surgido como um santo na igreja e ganhara poderes do além. Já eu, continuei por acreditar que fazia sentido sim ganhar poderes do além, é o que mais acontece.

"Tudo bem, agora me diz o que são esses cd's" ele pegou o álbum do Tim.

"Esse é o ao vivo do Tim Maia, meu favorito. Por isso está em primeiro na pilha, escuto sempre" expliquei enquanto ele virava para ver as músicas atrás. "Eu gosto muito de shows ao vivo, e como os artistas se entregam" concluí.

"Tipo aquele do Exalta né? De 2002, quando ainda não tinha o Thiaguinho, eu gosto bastante" ele puxou o celular e colocou uma música deles. "Essa é '40 graus de amor'".

Basicamente era uma letra de amor, e eu fiquei um pouco mexido enquanto ele sambava miudinho de olho fechado e cantando a música, depois me puxou pela mão e pediu que eu dançasse junto. 

"Não sei dançar" disse.

"Não tem mistério, duas ou três pisadinhas e joga pro lado, depois você pega o jeito" ele demonstrava, mas não parecia tão fácil como a explicação. Tentei, mas não consegui e preferi ficar admirando o sambinha de Ruan. "É o Péricles cantando, Beto! Inadmissível você ficar parado".

A música continuou tocando, mesmo que ele tenha parado de sambar. Ficou observando meu quarto, o ventilador quebrado no chão, os  pacote de Fofura sabor churrasco (ele comentou que preferia cebola), e nos seus comentários sobre minha decoração, uma outra música começou. "Eu me apaixonei pela pessoa errada".

"Puts! Essa eu amo demais, ela toca na gente porque eles cantam a verdade, entende?" ele disse e cantarolou um pouco. "Digo, cantam a verdade já que alguma vez nos apaixonamos por alguém meio merda, né?".

Não foi uma pergunta solta, ele me encarou esperando eu dizer algo. Mas não. Eu tinha uma pequena quedinha por Ruan no ensino médio, quando ele ia se formar, e agora eu que estava me formando e indo para uma faculdade, se tudo der certo entro para a UERJ e fico bem longe dele, de qualquer jeito o bairro do Fundão fica longe de tudo e a UFRJ é imensa pelo o que me dizem. 

"Não sei ao certo" respondi.

"A pessoa não era merda ou você não sabe se a pessoa era merda mesmo?" Ruan estava entretido no assunto, talvez ele tenha percebido meu incômodo e gostaria de saber mais justamente por isso. E agora ele iria descobrir pelo menos um dos dois: ou que sou gay ou que gosto dele. Os dois eram horríveis de dizer em voz alta.

"Ele nunca soube que eu gostava" preferi informar que sou gay. 

Seus olhos arregalaram e depois voltaram ao normal. "Então você tinha um amor platônico" o assunto parecia que iria se encerrar ali, mas Ruan ainda estava pensativo. "Ele parecia ser legal pelo menos?".

"Ele é legal".

"Vocês ainda mantém contato?"

Sim, claro, estou falando com ele agora mesmo seu idiota. "Não muito" foi o que respondi.

Silêncio prolongado novamente, ele parou de me olhar e tornou a retirar cada um dos meus cd's da pilha, aquilo poderia me dar uma agonia enorme se fosse outra pessoa, mas eu gostei de assistir a cena dele me decifrando, por mais que me desse muito medo, eu gostava da importância que ele tinha dado a minha coleção do Tim Maia.

"Acho que tenho um presente pra você, mas só quando der meia-noite. Vou em casa rapidinho embrulhar" e saiu, sem dizer mais nada e nem esperar eu responder.

                                                                                ***

A ceia foi bem tradicional, peru assado com farofa de linguiça no recheio, maionese e salpicão (eu acho que os dois são quase a mesma coisa e mesmo assim faço questão dos dois, sou contra quem escolhe só um para fazer), um prato de uva-passa (amo, e Ruan é o que odeia). Depois da farta janta que tivemos, conversando sobre Jesus Cristo (no assunto em que Ruan ficou mais em silêncio para parecer educado) e sobre a invenção do papai Noel (esse foi eu que fiquei quieto, para não parecer idiota).

Comemos as rabanadas, pudim, pavê e tudo mais que cabia de doce no prato. Nossas mães foram guardar algumas coisas e abriram algumas cervejas, nos deixaram beber um pouco junto à elas enquanto colocávamos as cadeiras na calçada da rua para ficar vendo os vizinhos conversando e as crianças correndo. No meio do caminho, Ruan me perguntou se dava para subir onde ficava minha caixa d'água. Disse que sim, e parecendo um imprevisto satisfatório, ele levantou da cadeira e perguntou se podíamos ir lá.

Eu concordei.

Levamos duas latinhas de Brahma e subimos pela escada do fundo, o ajudei no último degrau já que ele estava segurando as duas por mim. Logo, tinha dado a vista para o morro e os prédios ao longe da cidade, todas as luzes das casas se mesclando com os pisca-piscas decorativos. Não consegui deixar de reparar no brilho dos olhos de Ruan, e no seu sorriso logo após. Ele colocou as latinhas no chão, estava boquiaberto, ficou próximo ao nosso papai Noel que dançava funk bem acima do número da nossa casa, ele se sentou e colocou os pés para fora.

"Você deve soltar bastante pipa daqui" ele disse.

"Sim, é muito bom cortar os outros daqui da laje".

"Eu joguei um verde" ele comentou e eu não entendi. "Só queria saber se você soltava pipa mesmo".

"E quem não solta pela área?" indaguei.

"Bom, é que..." eu sabia o que ele queria dizer, mas não intrometi, queria ouvir sair de sua boca, aquela boca... Redonda, brilhante... "Você é gay, certo?" ele disse por fim.

"Mas gostar de homens não me deixa sem linha e cerol pra te avoar" comentei e sentei ao lado dele. "Isso é injusto".

"Desculpa".

"Tudo bem" eu não queria parecer grosso, mal conseguia olhar para ele, mesmo sentindo seu olhar em cima de mim. "É que...".

"Trouxe seu presente" ele tirou do bolso do casaco um embrulho verde com de árvores de natal, era quadrado e pequeno. "Abre, espero que goste".

ERA. O CD. DO. EXALTASAMBA. Cartão Postal, de 1998. Não consegui conter meu sorriso, parecia tão improvável alguém me dar um presente esse ano e estou aqui, com um alguém mais improvável do que o presente. Era dele, não pude deixar de notar, estava um pouco arranhado e tinha uma parte quebrada no canto, isso fez com que eu gostasse ainda mais. 

"Eu também trouxe algo" eu disse, e não iria dar o presente até que ele desse o meu, mas agora não tinha mais motivo para esconder.

Passei o embrulho, um pouco mal feito na pressa que eu tive quando ele foi em casa, e entreguei.

"Não ganho um desde criança" ele pegou o embrulho e retirou, revelando um boneco do papai Noel. Ruan começou a rir e eu fui junto, pois seu sorriso era adorável e sua risada mais ainda. "Esse aqui foi excelente".

A risada foi parando, e nós dois nos encarávamos por um tempo, admirando nossos olhos que refletiam milhões de luzes coloridas, batendo em nossa pele a deixando azul, vermelha, amarela... Depois uma aproximação, devagar, até que seu rosto chegou tão perto de mim que eu fechei os olhos, na hora que o vi fazer o mesmo. Sua mão pousou na minha nuca e a minha foi para sua cintura, eu sentia meu corpo inteiro queimar enquanto os dedos dele deslizava pelo meu corte disfarçado.

Me beijou. Demoradamente. O beijo gelado com gosto de cerveja impregnou na minha língua, o cheiro de perfume amadeirado enchendo meus pulmões. Tudo fez silêncio, só conseguia escutar meu coração batendo forte e o dele também. Demorou um grande tempo, era como se recusássemos a nos afastar e encarar a realidade sem estarmos juntos, mas assim que o fez, os olhos ainda pertos do meu, ele encostou a testa na minha e ficou em encarando. 

"Pensando melhor..." ele disse. "Eu acredito em papai Noel".




fim.

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