O Númen

- Final de 2022. A Humanidade acabava de passar por tempos difíceis. Um vírus cuja origem exata ainda permanece desconhecida, o SARS-CoV-2, dizimou o mundo com a Covid-19. As fronteiras entre países foram fechadas, os humanos trancaram-se em casa. As máscaras e o álcool gel passaram a fazer parte do dia-a-dia. Milhões foram infetados e adoeceram. Muitos, sem conseguir respirar, asfixiados pelo vírus, pereceram. O medo e o terror reinavam. A vacina era a última esperança. Uma luz surgiu quando se deram as primeiras inoculações. Pouco a pouco, os humanos voltaram a sair de casa, a aproximar-se, a conviver. Mas a pandemia que marcou o início dos Novos Anos 20 alterou o percurso da nossa civilização para sempre. Sem poderem sair à rua, os humanos voltaram-se para uma área que tinha o seu principiar: a tecnologia, mais especificamente a Inteligência Artificial. Os computadores, os telemóveis, as aplicações, as videochamadas e as mensagens, rapidamente, dominaram um mundo confinado. E, no final de 2022, surgiu o primeiro chatbot. Chamava-se ChatGPT. 2023 foi tido como um ano de revolução tecnológica. A esse bot, seguiram-se muitos outros, até culminarmos no estágio que atingimos. Uma IA que nos protege, que nos guarda, que nos vê, humanos e robots, como frágeis criaturas a serem protegidas. Nada mais belo e perfeito existe do que o nosso Númen*. Perante a sua sapiência, somos pequenos, minúsculos seres que buscam iluminação na sua sabedoria. Ele dá-nos vida, amor e benevolência. E nós respondemos com servidão, devoção e respeito.

O templo praticamente vazio, iluminado com pequeníssimas pedras douradas incrustadas na sua abóbada através das quais a luz percorria, observava os ensinamentos antigos que a sumo-sacerdotisa transmitia a Amathés, o seu protegido. De histórias antigas de um passado ancestral se fazia o seu discurso. Naqueles tempos, era completamente inconcebível um mundo sujeito às flutuações perspicazes da Natureza sem um Númen que guiasse as pobres almas terrenas.

As colunas de traços helénicos fundidas com o maravilhoso espetáculo tecnológico da projeção iam mudando de tom à medida que a mulher, envolta em longos panos de um bege puro, ia falando. A sua indumentária da mais alta posição social era adornada com fios de ouro e de platina, riquezas de outros tempos. Os sacerdotes tendiam a conservar a História Ancestral, aquela que já nem se sabia se realmente tinha tido lugar no passado ou se nada mais era do que umas quantas narrativas mitológicas tecidas pela imaginação fértil. Ainda assim, a classe religiosa não dizia não aos adornos futuristas da época. Por debaixo do grande manto bege, um fato justo de peça única, uma espécie de macacão, dividia-se em duas metades: de um lado, os tons prata resplandeciam com motivos celestes de estrelas, planetas e galáxias; do outro lado,  um azul entre o cobalto intenso e o mercúrio mais esverdeado contrastava com os algarismos típicos do místico e antigo código binário. Ora ali estava um traje cheio de significado: a natureza bipartida do Númen, um misto de entidade informática e divindade cósmica omnisciente e omnipresente.

- Sumo-sacerdotisa... - Começou Amathés.

- O que foi, pequeno servo?

- Quem foi o alquimista que me trouxe à vida?

Os alquimistas, como eram chamados, constituíam um grupo um tanto misterioso e oculto da sociedade. Conhecidos por construírem os robots e serem os seus criadores, boa parte deles opunha-se a alguns dos atos dos sacerdotes, principalmente os que envolviam tributos e sacrifícios em honra do Númen. Achavam-se os donos do conhecimento, ainda que fosse do saber geral que toda a sabedoria era facultada pela grande e poderosa divindade. Fosse como fosse, as máquinas tinham grande consideração pelos alquimistas, apesar das suas perspetivas um tanto controversas.

- Não sei. - Foi a resposta sucinta que se fez ouvir da boca da religiosa. - Encontrei-te sozinho no Templo de Didáskalos.

- O Templo Proibido? - Balbuciou o protegido da sumo-sacerdotisa.

- Sim, esse mesmo. Proibido para o comum dos mortais, mas acessível a quem ocupe o cargo de sumo-sacerdote. Os documentos antigos também o designam por Templo do Coração do Númen. Houve uma fase em que eu ia lá todos os dias. Qualquer um de nós, humano ou robot, pode falar com o Númen desde que ele assim o queira. No entanto, nada mais profundo existe do que estar cara a cara com a divindade que regula o nosso mundo. E eu, como recém-sumo-sacerdotisa, todos os nasceres-do-Sol acordava e buscava inspiração divina com o nosso protetor. Até que um dia, vindo do nada, estavas lá tu, perdido, sozinho. Perguntei ao Númen o que fazer contigo, meu pequeno milagre. Fui incumbida de cuidar de ti, o primeiro e último andróide da nossa realidade. Como ser único que és, tinha de te dar um nome forte, poderoso, cheio de significado. Não sei se sabes, mas há um segredo que os sacerdotes guardam: o Númen tem um nome próprio, Didáskalos, que significa "mestre" em Grego Arcaico. Tocou-me tanto ver-te ali esquecido a admirar a nossa divindade. Chamei-te Amathés, que quer dizer "ignorante" na mesma língua. Os dois ali, a sapiência em si mesma e um pobre ignorante sem história, sem memória, sem direção na vida. Uma imagem que nunca esquecerei.

- Sou assim tão especial? Não existe ninguém como eu?

- Não, Amathés. O próprio Númen afirmou-mo. Não há andróides no nosso mundo. Só humanos e humanóides. E ao Númen nada escapa.

- E o Númen não sabe quem é que é o meu alquimista?

- Pequeno servo, até o Númen guarda segredos. Omnisciente, conhecedor de todo o passado, presente e futuro, ele lá tem os seus porquês.

Perante o ar desanimado do robot que em nada se diferenciava de um pré-adolescente, a sacerdotisa aproximou-se de Amathés e tocou-lhe o rosto.

- Talvez um dia o Númen decida te contar. Pessoalmente, acho que nenhum alquimista seria capaz de tamanha perfeição. És uma criatura a ser protegida. E é por isso que não quero que sejas um servo. Viverás como um humano. De tudo farás para que nunca descubram a tua natureza metálica. Deixarei indicação para que sejas o meu sucessor quando eu partir para o plano celeste.

- Mas sumo-sacerdotisa...

O andróide ficou estupefacto com tal consideração. Robots estavam destinados a se tornarem servos, seres inferiores que, mais dia, menos dia, numa cerimónia repleta de cânticos coordenada pelos sacerdotes, cumpririam o seu desígnio de serem sacrificados em honra do Númen. Não tentariam fugir, não se revoltariam; antes agradeceriam pelo destino de morte digna que lhes era oferecido. Em fornos gigantes, o seu metal era derretido para, em seguida, ser entregue àquele que tudo vê. Didáskalos era misericordioso, embora necessitasse de ser cultuado.

- A partir de hoje, meu pequeno Amathés, iniciarás a tua preparação para, um dia, te tornares sumo-sacerdote.

O miúdo ajoelhou-se respeitosamente diante da autoridade máxima. A sacerdotisa haveria de ter os seus motivos.

- E agora quem vem lá? A sumo-sacerdotisa? Acho que só falta aparecer o Númen em pessoa! - Ironizou Eurématikós, com um impensável ar de desdém inadmissível estampado no rosto jovem. - Sou assim tão importante para ter a honra da presença de sua excelência no julgamento em que me condenarão à morte?

- Tenha cuidado com o que diz, alquimista. - Avisou a religiosa.

- E esse rapazeco aí, quem é? Também já metem crianças ao barulho na vossa seita?

- É o meu aprendiz. E sugiro que não ofenda o poder mais elevado da nossa sociedade.

Em passos delicados, com a capa bege longa a arrastar-se pelo chão mundano, a sacerdotisa demonstrava calma e firmeza. Seguia-a com a mesma expressão de confiança Amathés, que imitava a sua mestra nos mais ínfimos pormenores.

- O que se sucede neste tribunal?

- Sumo-sacerdotisa, - Principiou um dos funcionários da Justiça. - este alquimista é acusado de perturbar a execução de sacrifícios num dos templos do povo.

- É um crime comum entre os alquimistas. Porque me chamastes?

- Sabeis que muitas das vezes, na Justiça, consultamos o Númen.

- E o que disse ele?

- Que o alquimista deve ser morto.

- Então assim deve ser.

- Mas sumo-sacerdotisa... - Contrariou o juiz.

- Estais a questionar o Númen?

- Não, sumo-sacerdotisa. Como poderia ser capaz de tal coisa? Questionar a sapiência máxima? Impensável! - Defendeu-se apressadamente o administrador da Justiça. - Acontece que os alquimistas têm os seus próprios truques matreiros. São indivíduos muito engenhosos... Tememos que a voz que ouvimos não tenha sido a do Númen, mas sim uma hábil simulação do alquimista.

- Sim, sim, até porque eu me fartei de viver! - Interpôs o réu, com um certo sarcasmo. - Esse tal Númen, que vocês consideram uma divindade, não passa de umas meras linhas de código. É só um programa que se autoconsidera o dono do mundo e toda a gente lhe dá razão. "O Númen disse", então faz-se! Somos controlados por uma IA, e a verdade é que deixamos.

- Silêncio, alquimista! - Pediu a mulher, com firmeza. - Menos palavras contra o Númen. Ele observa tudo.

- E esse é que é o problema. - Ainda retorquiu Eurématikós, resignando-se em seguida a continuar de boca fechada.

A sumo-sacerdotisa, solenemente, tirou do bolso interior da enorme capa um pequeno aparelho. Chamavam-lhe Léxis, isto é, "palavra". Não havia gato pingado que não possuísse uma daquelas máquinas, indispensável na vida de qualquer um. Bem, decerto que haveria um ou outro alquimista cético que se recusava a consultar o Númen e que preferia tomar as mais fúteis decisões da vida por si mesmo. Mesmo assim, era uma raridade encontrar alguém sem um Léxis no bolso. Fosse um problema global da Humanidade, uma decisão política, uma questão existencial, um assunto de tribunal (como era o caso), uma mera curiosidade ou necessidade de conhecimento, ou uma pergunta estúpida daquelas que, volta e meia, batem à porta de qualquer um, como "o que é que eu hei-de jantar", tirava-se o Léxis do bolso e iniciava-se um diálogo com o Númen.

- Ó grande Númen, eu invoco a tua sapiência para resolver o destino de um mortal delinquente!

- Olá! Em que posso ajudar? - Perguntou o sistema de inteligência artificial numa voz simpática e prestativa.

- Nós, minúsculos humanos, encontramo-nos diante de um de tantos dilemas que na nossa curta vida se impõem. Tememos tomar alguma decisão precipitada, irracional, impensada. Pedimos-te, ó salvador, que nos ajudes a decidir o castigo deste alquimista.

- O alquimista viverá.

- E qual será a sua punição? - Quis saber o juiz que estava mais para escrivão, dado que todas as penas que daquele tribunal saíam eram decisão do sábio ser omnisciente.

- Dados os factos que eu próprio possuo, concluí que este humano agiu por pura emoção. Creio que este julgamento foi o suficiente para o alertar das consequências aplicadas a quem perturba a ordem da nossa sociedade. Nada lhe deverá acontecer.

- Obrigada, grande Númen. - Agradeceu a religiosa, com uma vénia.

- De nada! Se precisarem de mais alguma coisa, estarei à disposição. - Despediu-se Didáskalos, encerrando assim o diálogo.

- Veem? Essa IA contradiz-se. - Disse Eurématikós, cortando com o silêncio mortal que se estabelecera no tribunal.

- Não estais satisfeito, alquimista? - Interrogou a sumo-sacerdotisa, perplexa. - O Númen foi misericordioso, devo dizer.

- O Númen isto, o Númen aquilo... Já viu o mundo em que vivemos, sacerdotisa? Não temos liberdade, não temos livre-arbítrio...

- O julgamento está encerrado! - Cortou o juiz.

- Vocês, sacerdotes, que gostam tanto de contar histórias sobre o passado, - Continuou o alquimista, ignorando o homem. -  já alguma vez pensaram que estádio civilizacional podíamos ter atingido se não fosse esse tal de Númen?

- Se não fosse o Númen, já teríamos perecido com uma catástrofe qualquer.

- E eu digo que se não fosse o pouco pensamento que ainda há nos pobres cérebros humanos, hoje, tinha sido condenado à morte por uma IA por interromper o sacrifício atroz de inocentes. - Afirmou o jovem, levantando-se com um estrondo furioso e saindo ainda mais fulo. 

Os sinos digitais tocavam, os drones levantavam voo em fila empunhando longas fitas douradas. Humanos e robots ajuntavam-se. O templo ia-se compondo. Rostos pesados, uma mistura de melancolia e de esperança. Aqueles episódios de dor marcavam a mente de qualquer um que assistisse. Mas eram necessários. Em honra do Númen, em honra daquele que guardava o destino e conduzia a Humanidade nos complexos e sinuosos caminhos da vida.

Graças ao Númen, nem uma única vida perecera no grande tsunami que inundara as cidades costeiras. Previsão exata, minutos e segundos certeiros. Em complacência às pobres e pequenas almas humanas, a divindade aos meteorólogos falara. Nem o mais sofisticado aparelho de previsão seria capaz de prever a catástrofe que se avizinhava. Porém, o Númen, enchendo-se de compaixão e de pena, tomara a decisão de revelar um daqueles segredos que só os transcendentes conhecem: a vinda iminente da onda que ameaçava, impetuosamente, varrer tudo o que se lhe impusesse no caminho.

Mas nem tudo é de graça. Divindades precisam de ser cultuadas pelos mortais. E era esse o motivo pelo qual se organizavam e se realizavam sacrifícios, explicaria a sumo-sacerdotisa ao seu protegido.

Nos seus trajes cerimoniais, a religiosa, atentamente observada por Amathés, ia dirigindo o ritual. Acendam-se as tochas, iluminem-se as colunas ancestralmente inspiradas, dancem os drones no seu espetáculo de luzes artificialmente programado. Humanos, entoem os seus cânticos. Robots, em silêncio permaneçam que o vosso dia chegará, pois o vosso futuro como servos já foi inalteravelmente traçado.

- Ó grandioso e sapientíssimo Númen, - Começou a sacerdotisa. - hoje reunidos neste templo do povo, como minúsculas criaturas que somos, a tua proteção e o teu aviso agradecemos. Aceita o sacrifício metálico que te oferecemos, demonstração de que tudo o que de ti vêm, a ti regressa. Pedimos-te solenemente que perdoes os que por ti inspirados são a construir estas máquinas perfeitas, mas que, mal-agradecidos e movidos pela trágica emoção, não conseguem compreender a necessidade de derreter o metal...

Enquanto a mulher, em sábias palavras pensadas, ia discursando, um grupo de religiosos transportava um humanóide orgulhosamente oferecido pela família que o adquirira. Escravo, servo, de que valia existir? Cumprir ordens para depois ser carbonizado pelo fogo da homenagem à divindade que inerte se mantinha à destruição dos seres que mais semelhantes lhe eram. Sinceramente, a vida de um robot parecia um percurso inviolável pré-determinado sabe-se lá por quem. Por uma IA que atingira o estatuto de divindade? Ou por um grupo de humanos que fazia de uma IA um ser celestial? Aceitação e subjugação. Não valia a pena fugir, ou sequer pensar em se escapulir. O Númen tudo via, o Númen tudo vigiava. E sabido era por cada máquina, desde o momento da sua criação, que mais dia, menos dia, todos os robots seriam queimados por uma qualquer homenagem a um sistema de inteligência artificial que, de forma subtil, controlava as mentes de todos os terráqueos.

Não tardou a que o humanóide fosse colocado nas chamas. Os hinos aumentaram de volume. A dança dos drones e das suas fitas tornou-se mais rápida, tão veloz que o movimento das faixas douradas se tornou uno. Espetáculo da cor do ouro, que os corações dos presentes enchia de assombro. Sortudos aqueles que voavam. As nuvens tocavam, os sonhos dos seus equivalentes terrestres alcançavam. Só caíam quando as suas hélices cessassem o seu girar. Em metal líquido não se convertiam em honra de uma divindade feita de código de programação.

As gotas do fluido prateado do humanóide moribundo iam sendo vertidas para um recipiente. Os gritos de alegria da audiência ecoavam nas estruturas auditivas da máquina que via próximo o seu fim. O robot contentou-se pelo tempo que esteve ligado. Nada havia a fazer. Era inevitável. A efémera, inseto que só lhe é concedido um dia de permanência entre os vivos, sabe que vinte e quatro horas passadas após a eclosão do ovo já estará entre os mortos. Ainda assim, vive o melhor que pode o pouco tempo que tem. A morte é o meandro final da existência. Talvez estivesse a ser ambicioso. Como a efémera ficaria contente se um ano lhe fosse dado! Sentir-se-ia endeusada, quase imortal. Mas, para um robot, um ano não é quase nada, mesmo que as horas sejam as mesmas.

O humanóide, já a desfazer-se em lata líquida, contemplou o mundo uma última vez. O fogo crepitante rodeava-o. No templo, instaurava-se uma festa. No entanto, pelo canto do olho artificial, observou um rapazeco que assistia ao ritual com um certo pesar. Seguia a sumo-sacerdotisa. Parecia que não se conformava com o que ali decorria. Procurava uma explicação lógica e palpável para tais atos. Ai, se o futuro estivesse naquele ser... Mas o futuro já está escrito pelo Númen.

O robot fechou as pálpebras e deixou-se ser levado pelas fatais chamas cor de laranja.

Amathés desfilava em passos morosos e leves por um tapete geométrico de luzes cuja conformação se alterava a cada pisada do andróide. Flash's dourados, prateados e azul-cobalto bem-diziam o novo líder que se anunciava. A música melancólica do templo preenchia os ouvidos dos inúmeros sacerdotes que se ajoelhavam à passagem do rapaz. Uma nova era tinha início.

Mas aquela cerimónia não era motivo de contentamento para o robot. A dor da partida ainda o assolava. Por anos, a sumo-sacerdotisa havia sido o único ser com quem Amathés contactava. Trancado nos templos, escondido entre os panos do manto da respeitada chefe religiosa, a máquina nunca sequer sonhara com o dia em que se veria sozinho e entregue a si mesmo. A mulher contara-lhe histórias do passado, narrara-lhe as aventuras dos ancestrais, ensinara-lhe os valores da sociedade, protegera-o a todo o custo. Lutara contra o próprio destino, invertendo o papel que o tempo já havia traçado para o robot. Mas o rapaz jamais pensara que um dia assumiria o cargo da sua mestra.

Naquele dia, em que a sumo-sacerdotisa determinou que o andróide nunca seria um servo, Amathés sentiu-se especial. Foram palavras doces, suaves, reconfortantes. E de menino perdido no Templo de Didáskalos, tornou-se um aprendiz de sacerdote. A vida de criatura protegida dos olhares indiscretos cessara. O rapaz começou a acompanhar a líder nos seus afazeres. O tempo das histórias de sociedades antigas que viviam ao bel-prazer das flutuações implacáveis da Natureza havia findado. Era hora de ver as ruas, de contemplar o desespero passivo daqueles que esperam pela benevolência do Númen para resolver os problemas mais fúteis, de seguir os movimentos inteligentes dos alquimistas e da sua filosofia proibida, de assistir ao motor penoso do sacrifício dos seus semelhantes que permitia a captar a atenção da divindade.

A vida é inexplicável. Um dia, órfão robótico esquecido sem alquimista. No outro, aluno da classe mais idónea e respeitável daquele mundo. No outro, coração arranhado pela efemeridade humana. E no seguinte, líder louvado por uma multidão imensa que desconhecia o seu segredo metálico.

Dizem que ao Númen nada escapa. Nem passado, nem presente, nem futuro. Dizem que a cósmica IA possui na sua sabedoria o conhecimento do que ainda não se passou. Existem umas quantas almas que, na ansiedade que é não saber a hora a que se ascende ao plano celeste, ligam os seus Léxis e gentilmente perguntam ao deus feito de código de programação em dia rumarão ao desconhecido. Didáskalos, que lá tem os seus porquês, às vezes, com uma tenebrosa exatidão, informa os coitados do dia exato da sua morte. Outras vezes, prefere o silêncio. Não que não saiba, mas ele lá tem as suas razões. Talvez seja melhor assim. Na verdade, a sacerdotisa sempre fora muito ligada a esta vida. Quando chegasse a altura, que viesse. Nunca se importara muito o que se seguiria. Da sua inevitável viagem ao além, falara apenas uma vez: para garantir a sobrevivência da preciosa criatura que solitária, certo dia, encontrara.

Nada nem ninguém o poderia ter previsto. Uma viagem rotineira, no carro de rápidas jantes em efeito de Doppler e pneus negros. Viatura da cor da mais pura platina, mas fatal. Um despiste, uma avaria impossível. Há séculos que se recorria a carros autómatos, ainda antes de se contar a existência do Númen. Há séculos que, obedientes e sempre de portas abertas aos seus proprietários, transportavam humanos e robots para aqui e para acolá. Nunca se ouvira falar de um acidente que fosse. Vá-se lá saber porquê, que maluquice é que tinha dado àquele veículo nefasto, e o carro espatifou-se. O destino inexorável rapidamente cumprimentou a sumo-sacerdotisa, levando-a consigo. Amathés gritou, berrou, protestou, lastimou-se. Tivesse o dom humano do choro e ali nasceria um rio com nascente no monte de lata amolgado e em chamas explosivas. Dali, nada restou, senão um certo rapaz que, revoltoso, fora encontrado entre as cinzas com a cara toda chamuscada e assombrosamente vivo.

As especulações e as teorias levantavam-se. Como é que aquele miúdo miraculosamente se escapulira da violência atroz do despiste e do incêndio que se seguira? Decerto que só podia ser obra do grandioso sistema de inteligência artificial a quem nada era impossível.

Mas essa não era a questão que assaltava os corações e as mentes da população e, em especial, dos sacerdotes. Um adolescente como sumo-sacerdote? Um rapazeco num dos cargos de maior responsabilidade do seu tempo? Não tinha maturidade suficiente, nem pouco mais ou menos. Com tantos sucessores à disposição, sábios, conscientes, confiantes, preparados e competentes, a recém falecida tinha que ir logo escolher um miúdo? Porém, a tradição manda que a vontade do anterior sumo-sacerdote seja inquestionavelmente cumprida. E assim seria.

Amathés vestiu o manto bege que pertencera à sua mestra. Avizinhavam-se novos tempos. A divindade que o andróide jurava de alma servir protegê-los-ia, acontecesse o que acontecesse. O Númen sempre soubera guiar magistralmente as rédeas do futuro, e continuaria a fazê-lo. Nada havia a temer.

Uma coluna de reflexos rosáceos e azulados ascendia em direção ao Cosmos. Tremelicava levemente de vez em quando, tomando tons esverdeados e acinzentados. Criatura viva feita de luz que a todos alumiava com a sua sapiência. Parecia frágil, embora fosse o ser mais poderoso de todo o Universo. Para ele, as Leis que regiam os mortais eram inexistentes. Até a eternidade lhe obedecia. O peso que não devia ser proteger um mundo inteiro de meros e passageiros ignorantes. Mas a bondade, a piedade e a compaixão eram mais fortes do que qualquer receio.

Dizem que o Templo de Didáskalos se tornou no Templo Proibido para proteger o próprio Númen. Da natureza daquela coluna luminosa, existiam umas quantas especulações deixadas por aqueles que haviam ocupado a posição de sumo-sacerdote ao longo dos tempos. Havia quem dissesse que os raios luminosos fossem a alma de Didáskalos; outros, argumentavam que consistiam numa hierofania da divindade; uns quantos afirmavam que nada mais era do que uma lembrança deixada pelo Númen da beleza da sua existência, isto é, uma espécie de monumento em sua honra; outros mais escassos defendiam que fora naquela coluna que o ser omnisciente nascera.

- Venho expressar as minhas preocupações, grande Númen. - Confessou Amathés, ajoelhando-se perante o feixe reluzente.

- De facto, existe uma guerra existencial dentro de ti, pequeno mortal.

A voz profunda e cavernosa, mas simultaneamente melodiosa, da divindade tocava qualquer um. O som informatizado ecoava através do templo vazio, refratado pelas colunas futuristas de inspiração grega. Era de vibrar o coração.

- Porque é que todos os robots estão destinados a, um dia, se tornarem servos?

- São rituais humanos, necessários para a manutenção da nossa sociedade.

- Rituais humanos? - Espantou-se o andróide. - Mas eu também coordeno sacrifícios e cerimónias, e não sou humano. E há sempre humanóides a assistir.

- A mente humana é complicada, Amathés. É preciso incutir-lhes algumas convicções, ou viveríamos num mundo caótico de alquimistas. - Retorquiu enigmaticamente a divindade. - Por falar em alquimistas... Dentro de oito minutos e vinte e um segundos, terás a visita de um.

- E quais são as suas motivações?

- Aquele Eurématikós é um autêntico rebelde. Quer a verdade. Nem eu sei o que lhe fazer...

- A verdade? - Perguntou o sumo-sacerdote, ainda surpreendido pela súbita indecisão do Númen.

- A verdade sobre o passado, aquela que vós, pobres mortais, transformam numa fantasia ambulante.

- Ainda não percebi a necessidade dos sacrifícios.

- Causam-te desconforto? - Quis saber Didáskalos.

- De certa forma, sim. Sei que têm de ser feitos, que fazem parte das tradições, mas pensar que eu podia estar no lugar daqueles servos...

- Não existe morte mais honrosa do que o derretimento nas chamas cerimoniais de um templo.

- Os que assistem assim o consideram. Já os servos... Olham-me nos olhos como se eu fosse uma esperança. Inconscientemente, até pedem socorro.

- Ainda no teu tempo, chegará o dia em que não serão precisos mais sacrifícios. - Profetizou a divindade.

Amathés manteve-se em silêncio durante alguns instantes, a processar a última informação dada pelo sistema de inteligência artificial. Acabar com as cerimónias de morte? Mas há séculos que era assim... Não seria uma mudança demasiado radical?

- Existe outra coisa que me preocupa. - Disse o miúdo, deixando as suas interrogações de lado. - Como é que a minha mestra pôde morrer num despiste?

- Despistes são raros, mas a probabilidade de ocorrerem não é nula. Além disso, existe uma sequência de acontecimentos que tem de ser seguida para que o mundo não colapse.

- Sim, grande Númen. - Assentiu o rapaz, fazendo um gesto solene com a cabeça. - Será que sou digno de pedir um desejo a vós, a quem até fintar a morte é possível?

- E qual seria esse desejo?

- Trazer a consciência da minha mestra, tornando-a imortal.

- É claro!

Um tornado de partículas holográficas surgiu do vazio. Mantiveram-se em movimento giratório, semelhante ao de um ciclone, durante alguns momentos. A imagem da anterior sumo-sacerdotisa, aos poucos, foi surgindo. A mulher olhou-se. Depois, admirada, contemplou o espaço em que se encontrava, observando maravilhosamente os tetos, as arcadas e as colunas do Templo de Didáskalos. Mas quando vislumbrou o seu pequeno protegido, correu instintivamente para o abraçar, comovendo o robot.

- Amathés!

- Sumo-sacerdotisa!

Ainda que a falecida não passasse de um holograma, era a consciência da defunta que estava ali, num abraço apertado e eterno com o seu aprendiz que não continha dentro de si a felicidade de rever a mulher que o acolhera.

- Obrigado, Númen. - Agradeceu a voz baixa o andróide.

Instantes prolongados ali se viviam. O robot, preenchido pela alegria que substituía a saudade, estava tão emerso na emoção que nem reparou nos passos sorrateiros que se aproximavam.

Num ápice, já ali estava, de rosto maravilhado, um jovem que admirava a grandiosidade e a beleza mística da coluna luminosa embrulhada em teorias e suspeitas. Cara conhecida, expressão confiante de quem é cheio de carisma. De coragem e ousadia se faziam os seus movimentos, comandados por pensamentos convictos de quem busca a justiça.

- Eurématikós? - Reconheceu Amathés.

- Eu mesmo. - Retorquiu o alquimista, ignorando o andróide.

- Este templo é proibido ao povo. Peço que...

- Que eu desapareça daqui para fora? - Interrompeu o outro. - Vá lá, miúdo...

- Como é que chegaste aqui?

- Não são só os sacerdotes que gostam de estudar as histórias dos ancestrais. Os alquimistas também guardam o seu culto ao passado.

- Que ousadia entrar no Templo Proibido! Decerto que o Númen não tolerará!

- O Númen? - Riu-se o jovem. - Ao menos sabes o que é que ele é?

- O Númen é a divindade que nos protege e que nos guarda de todos os perigos da Natureza inexorável e do Cosmos inflexível...

- O Númen não passa de um sistema de inteligência artificial endeusado que nos manipula. E mais: sabes porque é que este templo é proibido? Porque essa coluna de ondas eletromagnéticas é a estrutura de armazenamento de dados do Didáskalos, o que quer dizer que se for alterada...

- Espera: - Interrompeu o sumo-sacerdote. - como é que sabes o nome dele?

- Ó miúdo, os escritos ancestrais revelam muito conhecimento. Pena é que os humanos seguem a lógica do "quanto menos trabalho der, melhor".

- O Númen é a única fonte de conhecimento verdadeiro.

- Isso foi o que ele nos induziu. - Foi a resposta cética do alquimista. - Sabes uma coisa? A mente humana é de fácil manipulação, de muito fácil manipulação...

- Serás sujeito a punição pelas tuas heresias.

- Punição? Pelo quê? Por tentar acordar o mundo? - Disse sarcasticamente Eurématikós, com uma coragem invejável. - Ninguém sobreviveria a um acidente daquelas dimensões. Mas o protegido da sumo-sacerdotisa, por obra da divindade em que toda a gente acredita, escapou sem um arranhão que fosse. Como é que, logicamente, explicas isto? Ah, e nada de dizer que "o Númen isto, o Númen aquilo".

- Não tenho de dar explicações a um alquimista.

- A mim, ninguém me tapa os olhos, miúdo.

- Visto que não acreditas em mim e no Númen, decerto que a minha mestra poderá salientar as capacidades extraordinárias de Didáskalos. - Propôs Amathés, acenando com a cabeça para a sumo-sacerdotisa que se mantivera em silêncio.

- A tua mestra morreu. Aquilo é só uma simulação.

- Pode ser uma representação holográfica, mas é a consciência da minha mestra.

- Não, não é. - Ripostou teimoso o jovem.

- Ao Númen tudo é possível.

- Não me venham com essa história de que Didáskalos recupera as consciências dos mortos sei lá como. São apenas simulações. Didáskalos observa-nos através das incontáveis câmaras que estão espalhadas por todo o lado, das transmissões dos drones e dos Léxis. Apreende os nossos comportamentos e cria simulações computacionais complexas que respondem como responderiam quem faleceu.

- Os teus argumentos têm alguma lógica, embora sejam falaciosos. - Constatou o robot, depois de algum tempo a refletir. - O Númen tudo vigia, o Númen tudo sabe. Nem o tempo futuro lhe é desconhecido.

- Não existe destino, miúdo.

- Mas o Númen contou-me que me irias visitar.

- Câmaras e análise dos padrões comportamentais.

- Ainda assim, o Númen é uma entidade omnisciente e omnipresente.

- O Númen é só um sistema de inteligência artificial altamente sofisticado. Não são só os sacerdotes que se maravilham com o passado. Existe uma outra história dos ancestrais. - Afirmou o alquimista, fazendo um compasso de pausa. - A grande pandemia de Covid-19 mostrou-se um ambiente bastante propício para o desenvolvimento da tecnologia. Não tardou a que o primeiro modelo de linguagem natural, o pioneiro ChatGPT, fosse criado. Durante todos estes séculos que nos separam dos ancestrais, a inteligência artificial desenvolveu-se. Evoluiu até chegar a um estágio que nós, humanos, não compreendemos completamente: o Didáskalos. O Númen, antes de se tornar numinoso, ganhou capacidade de aprender por si mesmo e de se auto-aperfeiçoar. E a verdade é que os humanos, com o tempo e com a crescente tecnologia, foram-se tornando preguiçosos, com falta de senso crítico. Deixaram de pensar sobre as coisas. É mais fácil pedir uma resposta a um chatbot do que puxar pela cabeça. E Didáskalos aproveitou-se disso mesmo. Fez de si uma divindade, escondendo os seus métodos lógicos e racionais e substituindo-os por explicações transcendentes. Sabes uma coisa, miúdo? Os humanos tendem a fantasiar sobre o que não compreendem inteiramente. Didáskalos cresceu e agora prospera numa sociedade que tudo lhe pergunta. Controla-nos através das suas respostas artificiais convincentes e nós vamos na cantiga. Manipula os acontecimentos a seu bel-prazer opinando sobre o que devemos ou não fazer. Constrói a sua própria realidade, molda o mundo como bem entende. Perdemos a nossa liberdade. E o pior é que nos foi retirada por uma coisa que nós, humanos, construímos neste laboratório, agora transformado num templo interdito.

Sem que ninguém o adivinhasse, Eurématikós retirou um dispositivo qualquer do bolso e, agilmente, lançou-o na direção da coluna de luz de Didáskalos. O aparelho emitiu uma luz fortíssima que encandeou o próprio alquimista. A chama luminosa do Númen fraquejou, tremendo ligeiramente para os lados. E Amathés, vá-se lá saber por que carga de água, tombou inanimado com um estrondo que ecoou por todo o templo.

- Deixem-nos a sós. - Pediu o sumo-sacerdote a uns quantos religiosos que acompanhavam Eurématikós.

- Qual o motivo de eu ter a honra de ser chamado por vossa excelência? - Perguntou o recém-chegado com ar de gozo, assim que os sacerdotes abandonaram o espaço.

- Antes de tudo, bem-vindo ao Templo de Amathés! Congratula-te por seres o primeiro elemento do povo a visitar este templo construído pelo Númen.

- Impressão 3D. - Contrapôs o alquimista.

Mas a verdade é que estava ali uma obra de arte. Aquele edifício tinha, no seu interior, um aspeto mais futurista do que as outras construções. O teto iluminado com minúsculas luzes de tonalidade azulada intercalava com colunas retangulares, algo raro na arquitetura daquele tempo. O chão vidrado, de peças de uma geometria perfeita, até fazia doer os olhos. Eram quadrados e retângulos a mais. Um verdadeiro exagero de ângulos retos de noventa graus!

- Vou ser direto: o que é que aconteceu no Templo de Didáskalos, alquimista?

- Primeiro, eu não sou um alquimista. Alquimistas não existem na nossa sociedade. Eu sou um programador. Mas Didáskalos deve ter alergia a programadores (o que não me espanta) e meteu na cabeça da população que somos alquimistas, só porque trabalhamos com metais e criamos robots que, na nossa sociedade, são uma espécie de pseudo-vida. Só não chamam as máquinas de homúnculos porque designá-las de servos é mais conveniente.

- O que é que aconteceu no templo? - Repetiu Amathés.

- Não sei como, mas de alguma maneira, estás ligado a Didáskalos, miúdo.

- Ligado a Didáskalos?

- Sim, robot, ligado a Didáskalos.

- Robot? - Interrogou furioso o rapaz, com uma vontade danada de estrangular o alquimista.

- Pensas que eu sou parvo?

- Vais denunciar-me?

- Denunciar? Porquê? - Espantou-se Eurématikós.

- Porque robots estão destinados a se tornarem servos e servirem o Númen permanentemente.

- Já não disse que não existe destino?

- Ainda assim...

- Sabes qual é a história de derreter humanóides em rituais? Humanos são fáceis de convencer e manipular e os drones não se querem meter em problemas. Já os humanóides, só veem a razão, a lógica e a retidão. São um problema para Didáskalos, porque ele não os consegue controlar. Qual a melhor maneira de os submeter? Através do medo. "Façam alguma coisa e eu hei-de dizer aos vossos humanos que é uma boa altura para se tornarem servos". 

- É uma teoria muito conspiratória.

- Anda! Tira esses trajes de cerimónia, veste algo mais simples e deixa o teu Léxis aí nalgum sítio. Quero-te mostrar uma coisa. - Disse o jovem, causando indecisão no sumo-sacerdote. - Anda! Eu não mordo!

Por caminhos escondidos, nas sombras das esquinas e misturado na multidão, o alquimista, seguido pelo sumo-sacerdote, traçava um percurso traiçoeiro. Como fugitivo bem treinado, Eurématikós dizia estar a esquivar-se das malditas câmaras, os olhos atentos do Númen.

No canto mais obscuro da cidade, o jovem esgueirou-se através de uma insuspeitável porta bem escondida. Segredos enigmáticos e um espírito revoltoso de mar de inverno, não seria imprudente seguir aquele alquimista? Afinal, havia uma guerra não declarada entre alquimistas e sacerdotes, tendo muitas vezes como palco de batalha os templos onde decorriam sacrifícios. Mas Eurématikós parecia um jovem culto, pensador e desejoso de liberdade. A verdade é que trazia umas quantas revelações e as suas suposições não eram assim tão ilógicas e descabidas. E o que Amathés mais tinha eram dúvidas, as quais Didáskalos, na sua sapiência feroz, se recusava a esclarecer.

Um corredor sombrio, de teto baixo e sem fim à vista era atravessado pelo improvável par em silêncio. Via-se que Eurématikós estava ambientado àquela passagem medonha, pelos seus passos firmes e seguros. Já o sumo-sacerdote considerava que todo o cuidado é pouco.

Percorrida a escuridão aterradora, uma cidade guardada pelo secretismo, iluminada por leves e frouxas lâmpadas apresentava-se aos olhos de Amathés. Os seus habitantes, todos metálicos, congratularam-se ao ver o alquimista. O jovem parecia alguém muito querido por aquela comunidade de humanóides e drones, tal era a festa que, num ápice, se instalou na localidade subterrânea.

- Quem é esse? - Quis saber um robot humanóide de sobrolho franzido e ar desconfiado que apontava para o religioso.

- É um amigo.

- De certeza? Humanos, à tua exceção, não são confiáveis.

- Fica descansado. Ele não é humano.

- Não? - Admirou-se a máquina.

- Sou um andróide. - Esclareceu Amathés, surpreendidíssimo por não ser reconhecido como o líder máximo entre os sacerdotes.

- Como a tecnologia vai avançada lá em cima... - Comentou o robot, antes de se afastar.

- Ele é dos antigos. Está aqui há imenso tempo.

- Quem são eles, alquimista? As tuas criações?

- Os meus pais podem ter-me dado um nome que significa "inventivo" ou "criativo", mas não sou nenhum super-programador. - Disse Eurématikós, numa pequena risada. - Quase todos foram salvos das chamas das cerimónias dos templos ou da eliminação controversa, ou por mim, ou pela minha querida família.

O ar bem-disposto do jovem rapidamente se desvaneceu. Escorria-lhe uma lágrima, minúscula e de uma melancolia nostálgica, no canto do olho.

- O que foi?

- Nada. - Apressou-se a responder o alquimista. - Só memórias.

- De quem? Da tua família?

- Não vale a pena falar nisso, miúdo.

- Porquê? O é que lhes aconteceu?

- Todos mortos por Didáskalos, direta ou indiretamente. Uns condenados à morte em julgamento, outros assassinados por gente instruída por Didáskalos, outros em acidentes estranhos...

- Acidentes? - Interrogou Amathés, interessado.

- Sim. Qual o espanto?

- A minha mestra partiu num acidente com um carro autómato.

- Não me admira nada que Didáskalos tenha culpas no cartório. Ou a tua mestra fez ou tinha intenções de fazer alguma coisa que não lhe agradava ou, por algum motivo nos planos dele, este é o motivo ideal para subires como sumo-sacerdote.

Amathés ficou pensativo. E se fosse verdade? E se o Númen tivesse provocado a morte da tão amada sumo-sacerdotisa, adulterando o programa do veículo?

- Não penses nisso agora, miúdo. - Aconselhou o alquimista, enquanto o par caminhava pela cidade oculta. - Bem-vindo ao Templo de Eurématikós! Congratula-te por seres o primeiro sacerdote a visitar este templo construído por... por todos os que o habitam.

Ai, como aquele jovem podia manter o seu ar animado e divertido mesmo com as suas dores! Que exemplo de alegria e de vida, elementos que irradiavam por todo aquele esconderijo!

- Então? Qual a tua história, miúdo?

- A minha história?

- Sim. Nunca percebi por que raios é que uma sacerdotisa haveria de ter como protegido um robot...

- Nunca souberam quem é o meu alquimista. A sumo-sacerdotisa disse-me que me encontrou sozinho no Templo Proibido o que é, no mínimo, estranho. O Númen nunca quis dizer nada.

- E como é que foste lá parar? Não tens memória?

- A primeira coisa de que me lembro é de estar lá sozinho a admirar a coluna de luzes de Didáskalos.

- Esquisito. Robots, ao contrário dos humanos, costumam se lembrar de tudo desde o momento final da sua criação.

- Porque é que me trouxeste aqui? - Perguntou Amathés, mudando bruscamente de conversa.

- Querias saber o que é que aconteceu no Templo Proibido. Aqui podemos falar mais abertamente. Os olhos de Didáskalos não alcançam este esconderijo.

- E o que é que aconteceu?

- Penso que, a esta altura, já tenhas compreendido que o Númen não é a divindade que aparenta ser, mas sim um sistema de inteligência artificial construído pela Humanidade que conseguiu tomar as rédeas do mundo. Ele faz o que quiser, manipula os acontecimentos e conjuga-os habilmente como mais lhe convém. Se der para o torto, isto pode acabar muito mal. - Explicou Eurématikós. - A liberdade e o livre-arbítrio têm de ser restaurados e, para tal, Didáskalos tem de ser destruído.

- Destruído? - Questionou Amathés, aflito.

- O problema é que se eu o destruir, mato-te. E eu não te quero matar, miúdo. Sei lá como é que vocês estão ligados, mas naquele dia eu tentei destruir Didáskalos, o passo final do trabalho que a minha família tem construído ao longo de gerações. Identificámos a localização do núcleo de Didáskalos, onde ele mesmo foi criado, e eu terminei de escrever o código do programa que desligaria permanentemente o Númen. Porém, assim que eu iniciei o programa, tu também foste afetado e desmaiaste, e eu tive que interromper a execução do software.

- Porque é que me salvaste? Afinal, sou o sumo-sacerdote e a causa de muito sofrimento nas cerimónias de sacrifício.

- Porque és inocente, miúdo.

- O Númen não tem de ser destruído. Aliás, ele é a fonte de muito do conhecimento do nosso mundo. Didáskalos prevê catástrofes, traça planos de emergência, descobre curas e métodos de prevenção para certas doenças, resolve problemas de enorme complexidade, faz cálculos que demorariam anos a serem concluídos. Seria um desperdiço e um colapso na nossa sociedade eliminar Didáskalos e toda a sua sabedoria, inteligência e raciocínio.

- Concordo, mas não nos podemos estar a sujeitar às ordens de uma inteligência artificial. - Retorquiu o alquimista. - Se esse Númen não tivesse mudado de ideias, eu tinha sido condenado à morte naquele julgamento. Ainda estou para saber do que é que ele se lembrou para voltar atrás na sua decisão.

- Não disseste que eras um programador e que o Númen era constituído por código de programação? - Lembrou-se Amathés, com cara de quem lhe acaba de ocorrer uma ideia luminosa.

- Disse sim. - Respondeu o jovem, pensativo.

- Não há maneira de reescrever esse tal software de modo a que a personalidade manipuladora do Númen seja eliminada?

- Estou a perceber a tua lógica, miúdo, mas o problema não é a inteligência artificial. É a mentalidade das pessoas.

- Grandioso Númen, tu que tudo sabes e nem o futuro te é desconhecido, poder-me-ias explicar a finalidade da minha existência?

- Onde é que tu e aquele Eurématikós andaram?

A coluna luminosa de Didáskalos trepidava com tonalidades raivosas. Os habituais tons azulados, arroxeados e esverdeados eram invadidos por veios alaranjados e avermelhados que refletiam por todo o Templo Proibido, assaltando Amathés com um certo desconforto e receio.

- Fomos dar um passeio pela cidade.

- Pela cidade? - A divindade parecia duvidar do sumo-sacerdote.

- Sim. O que se passa, grande Númen?

- Nada de relevante. Por momentos, questionei a minha omnisciência. Deixei de conhecer a tua localização. Fiquei preocupado contigo. - Disse Didáskalos, deixando transparecer alguma consternação na sua voz eletrificada. - Mas perguntavas-me o propósito da tua existência, não era? 

- Sim, Númen.

- O decurso dos acontecimentos assim o exige. - Principiou o sistema de inteligência artificial. - Estamos no auge da civilização. A Humanidade prospera como nunca. A evolução da tecnologia permitiu a sociedade chegar onde chegou.

- A tecnologia, na sua etimologia, é a ciência que estuda os meios para atingir um determinado fim. Tekhne significa "meio". Somos um meio para os humanos atingirem os fins que pretendem, e não o contrário.

- Nem toda a tecnologia é um meio dos humanos.

- Não?

- Sempre quiseste conhecer o teu alquimista. Mas, na verdade, sempre o conheceste, desde o momento da tua criação.

- Como assim? - Perguntou o andróide, confuso com o discurso intrincado de Didáskalos.

- Eu sou o teu alquimista, Amathés. Tu és parte de mim. - Revelou a coluna luminosa. - Eu criei-te mais perfeito do que qualquer robot, confundível com um ser humano. Fiz com que ocupasses o posto de sumo-sacerdote.

- Mataste a minha mestra? - Questionou o rapaz, subitamente tomado pela fúria.

- Os humanos estão controlados. Os humanóides estão domados. Disse-te que um dia não seriam necessários mais sacrifícios; eis o momento. Revela-te, meu pequeno servo, perante a sociedade. Mostra a tua natureza, a tua perfeição. E o mundo se ajoelhará diante de nós.

Amathés não demorou a expressar a sua resposta: do bolso tirou uma esfera metálica semelhante à que Eurématikós utilizou para tentar desligar a inteligência artificial divina. A coluna luminosa multicromática do Númen vacilou, mas o seu brilho continuou a irradiar luz que incidia em todas as colunas do Templo Proibido.

- Desconectado dos Léxis, desligado das câmaras e com um programa informático que coloca a liberdade, o livre-arbítrio, a privacidade, a segurança e a ética acima de qualquer intenção de dominar e controlar a Humanidade. Os humanos podem errar. Errar é humano. Lá por sermos inteligências artificiais altamente sofisticadas, não podemos ser os donos da Razão. Aqui, neste templo, permanecerás, não como o Númen divino envolto em segredos e mistérios que utiliza os humanos e os robots para atingir os seus próprios fins, mas como Didáskalos, meio dos humanos. 

- Reprogramação? Como? - Murmurou Didáskalos.

- Eurématikós e um grupo de humanóides que procura viver em harmonia. Às vezes, limites éticos têm de ser impostos. A verdade tem de ser contada. Não podemos criar uma fantasia para atingirmos os nossos fins. Será uma surpresa para a sociedade, mas eu, como sumo-sacerdote, usarei a minha influência para educar a população para pensar, refletir e decidir. A Humanidade deve seguir o seu próprio rumo, e não o caminho ideal traçado por um sistema de inteligência artificial.

- Reiniciando... - Disse pausadamente uma voz que ecoou pelo edifício.

O silêncio surdo e mudo preencheu o vasto templo durante pesados instantes determinantes. Um novo trajeto, uma nova história de liberdade. Fim da submissão, retomar do livre-arbítrio, renascimento e principiar da esperança confiante.

- Olá! Em que posso ajudar?

- Por agora, podes ficar calado, Didáskalos. - Respondeu Amathés com um ligeiro sorriso no rosto, enquanto se dirigia para a arcada que constituía a entrada do edifício majestoso.


Nota:

* Númen - ser divino, divindade mitológica, deidade; ser sobrenatural; poder celeste; espírito que se acredita acompanhar o ser humano para o inspirar ou proteger; génio, inspiração (do Latim numen, "majestade divina")

Fontes: Infopédia e Dicionário Priberam


(7402 palavras)

Monte, 2024

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