5 Minutos (MusicStamp)|1|

É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha mãe.

Mas é uma história, e não um romance.

Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me a Rascunhosfera para pegar o ônibus de Musictale.

Sabe que sou o esqueleto menos pontual que há neste mundo; entre meus imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto com a pontualidade, essa virtude dos reis e esse mau costume dos humanos.

Entusiasta da música e da liberdade, não posso admitir de modo algum que um ser se escravize ao seu relógio e regule suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de uma pêndula.

Tudo isto quer dizer que, chegando a Rascunhosfera, não vi mais ônibus algum; o monstro a quem me dirigi respondeu:

- Partiu há cinco minutos. Nenhum movimento.

Resignei-me e esperei pelo ônibus das sete horas. Anoiteceu. Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas.

À hora mascada, chegou o ônibus e apressei-me a ir tomar meu lugar. Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas monótonas dos Jerrys, que de ordinários têm sempre uma anedota insípida a contar uma e outra queixa sobre tudo do estado de sua vida.

O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou ascapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.

Sentei-me; não me importa muito o contato da seda, da casimira ou do pano à vizinhança.

O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.

Era impossível. Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança.

Resignei-me e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa.

Já o meu pensamento tinha se lançado a galope por um mundo de letras e partituras, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem simples.

Senti no meu braço o contato suave de um outro braço, que me parecia frágil e delicado como uma pétala de rosa murcha.

Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma posição e cismei que estava sentado perto de um ser, masculino ou feminino, (o corpo tinha suaves curvas como de uma mulher, mas desprovido de seios, por isso minha dúvida, minha mãe.) que me amava e que se apoiava sobre mim.

Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou falanges de uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo.

Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por esse contato voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.

Ele soltou um grito, (sim, ele. Por mais afinada que fosse sua voz, com toda certeza era de um homem. Minha mãe, foi como a doce melodia de uma harpa, me tornei necessitado de sua deliciosa voz.) que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do ônibus, e refugiou-se no canto.

Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do carro, e , aproximando-me, disse-lhe quase onde estaria seu ouvido:

- Perdão!

Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto. Tomei uma resolução heroica.

- Vou descer, não o incomodarei mais.

Ditas estas palavras rapidamente, inclinei-me para mandar parar. Mas senti outra vez sua mãozinha, que apertava docemente a minha, como para impedir-me de sair.

Está entendido que não resisti e que me deixei ficar; ele conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado a mão, que eu beijava respeitosamente.

De repente me veio uma ideia. Se fosse de Horrotale! Se fosse uma armadilha! Se fosse uma e outra coisa! Fiquei muito frio e comecei a refletir. Este rapaz, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao ser que ama, não podia deixar com eleito de ser uma armadilha, uma ardilosa armadilha.

Não lhe sendo fácil achar uma presa de dia, se agarrava a esta, que iludia para dar o bote. É verdade que essas falanges delicadas, esse mistério a cerca de seu rosto....Ilusão! Era a disposição em que eu estava!

A imaginação é capaz de maiores esforços ainda. Nesta marcha, o meu espírito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção inabalável sobre as intenções de meu vizinho.

Para adquirir a certeza, renovei o exame que tentara a princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvido no seu mantelete e no seu véu, que nem um traço de rosto traía seu incógnito.

Mais uma prova! Ele não queria que seu olhar esfomeado e sedento de sangue acabasse com seu plano, o mantendo escondido como uma pérola dentro da sua ostra. Decididamente eu seria seu jantar!

Nisto ele fez um movimento, entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de lírio selvagem exalou-se.

Aspirei voluptosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um perfume celeste.

Não se admire, minha mãe; tenho uma teoria a respeito dos perfumes. O ser, humano ou monstro, é como uma partitura que se estuda, como as notas de cada verso, pelo seu timbre, pela sua duração e sobretudo, pela suavidade de seu tom.

Dada a cor predileta de um rapaz desconhecido, o seu modo de se vestir e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico, de que bairro da cidade ele é.

Com todos esses indícios, porém, o mais seguro é o seu perfume, é provável de que ele seja de Farmtale; e isto, por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei explicar.

Já senti perfumes de flores silvestres neste bairro, como uma mínima característica de seus habitantes, junto aos costumes de plantio. Suas pequenas e simples coisinhas da vida cotidiana, os fazem ser os mais pacíficos de toda a cidade.

Já vê, minha mãe, porque esse odor de lírio selvagem foi para mim, como uma revelação. Apenas um simples ser, acostumado com os costumes do campo e da lavoura, deve compreender a delicadeza desse perfume, que nos embala nos sonhos brilhantes da fazenda.

Também é o perfume dos grandes pintores de Inktale, que embelezam suas obras com este odor tão suave e distinto. Calculei que seus pais eram desses bairros diferentes, formando assim aquela figura mimosa e delicada, que meus olhos não deixavam de observar.

Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco a pouco desvanecendo-se. Não era armadilha! Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e inabalável.

Com efeito, um rapaz de classe, que sabia como se portar verdadeiramente com os seus vizinhos. Minha grande vontade de observar seu rosto aumentou mais ainda. Mas não podia ver, por mais esforços que fizesse. O ônibus parou; um outro esqueleto ergueu-se e saiu. Senti sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar diante de meus olhos, no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei por mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.

Ressoava-me ainda na mente uma palavra murmurada, ou antes, suspirada quase imperceptivelmente:

-Non ti scordar di me!...

Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda,andei como um louco até nove horas da noite. Nada!

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Adaptação da obra de José de Alencar. Capítulo em homenagem à NeutraTune , criadora do Stamp, fanchild InkxFarm. Music é um Sans sem um criador oficial. Obviamente vai ter continuação. 1315 palavras.

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