Salsa, salvia, alecrim e tomilho
Você está indo à Feira de Scarborough?
Mande lembranças àquele que vive lá
Ele outrora foi o meu verdadeiro amor
(Scarborough Fair, Aurora)
SOB A SOMBRA DUMA FIGUEIRA do jardim do palácio, descansava o jovem príncipe em um silêncio fúnebre. Os olhos, frios como as geleiras do Alasca, estavam fixos na cidade à sua frente, mesmo que tudo que conseguisse ver dali eram pequenos cubos do que seriam casas. Não conseguia deixar de observar aquele povo ao longe, não era capaz de esquecer todas as memórias da estação passada, do adeus que nunca foi dito, dos beijos no escuro, dos risos sob a luz da lua. Ele não era capaz de esquecê-lo, mesmo que estivesse prometido a uma desconhecida, mesmo que soubesse o quanto o camponês lhe odiava depois do anúncio do noivado.
Sunghoon jamais se esqueceria do menino de Scarborough.
Portanto, enquanto observava a pequena civilização ao longe, se perguntava se Riki também pensava em sua alteza com tanta frequência. Se perguntava se, por um obséquio, o menino artista seria capaz de encará-lo nos olhos outra vez. Sunghoon não gostaria de ter respostas para essa pergunta, temia a verdade.
Ah, como o príncipe daria tudo para ir correndo até a feira de Scarborough, observar aqueles dedos delicados pincelando rostos desconhecidos por algumas moedas. Gostaria tanto de vê-lo pintar mais uma vez, mesmo que soubesse que jamais o faria novamente. Sunghoon desejava ver a tela inacabada do seu corpo nu que o rapaz nunca lhe mostrou, mas prometeu que enviaria ao palácio quando a tinta secasse. Ela nunca veio, e o príncipe nunca voltou para procurar o artista.
O vento frio açoitava os fios castanhos do rapaz, assim como fazia com as folhas das árvores, enquanto tudo o que ele desejava era ter a coragem de seguir o seu coração. Sunghoon conheceu o amor, na sua forma mais bela e pura. O amor tinha um sorriso doce, cabelo cor de trigo, e um cheiro almiscarado. E este amor era lindo, colorido e único. Pintava telas de paisagens na vida, enquanto o Príncipe do Gelo exibia sua amargura com tudo e todos. Eles eram opostos, como o sol e lua, mas, por algum motivo, encontraram acalento nos olhos um do outro. Eles se amavam, se amaram tão profundamente, que os deuses aplaudiram de pé aquele sentimento tão singelo. E o príncipe não havia superado a sensação de ter Riki em seus braços, não havia apagado seu nome do coração, não havia como esquecer aquele rapaz.
Sunghoon ainda o amava com todas as suas forças.
No entanto, o príncipe herdeiro não tinha coragem de ir contra tudo e todos por amor. Não conseguia contrariar seu pai, se rebelar contra um reino inteiro, tampouco fugir para além da segurança que aquelas muralhas tinham. Ele tinha obrigações como filho único, e não iria ser irresponsável por um camponês qualquer, por desejos pecadores que assombravam suas noites. Não podia, mesmo que tudo fosse difícil suportar, mesmo que sua noiva fosse a pior das mulheres do reino, mesmo que seu coração sangrasse em nome dele, mesmo que chorasse todas as noites pelo resto da sua vida. Mesmo que Riki Nishimura não fosse um camponês qualquer, mas sim o mais lindo e gentil de toda Scarborough. Mesmo assim, Sunghoon não desistiria daquela aliança.
Pelo seu país, pelo seu povo. Era o seu dever.
E também.. ele tinha medo. Do seu pai, do mundo, de andar na rua e ser apedrejado, de ser trancafiado em isolamento por não ser como os outros, por amar quem não deveria. Sunghoon tinha medo de não suportar os olhares de julgamento, de ser infeliz por viver em fuga. Pensar em ser descoberto fazia seu coração acelerar, suas mãos tremerem. Ele não estava pronto para ser exposto, talvez nunca estivesse.
Riki não entendia isso, pois no dia seguinte ao anúncio do noivado, apareceu nos portões do castelo gritando nomes feios. Ele não entendia o medo de Sunghoon, pois era um romântico incurável, seria capaz de qualquer coisa insana por amor. Inclusive se embebedar de vinho e xingar o príncipe herdeiro na frente do palácio. Por pouco não perdeu a cabeça naquela noite, mas Sunghoon fingiu ser misericordioso com aquela pobre alma. Riki foi escoltado até em casa por um guarda a mando do príncipe, e tinha lágrimas nos olhos ao xingar o herdeiro do trono em japonês.
Sunghoon jamais se esqueceria daquele último olhar, carregado de dor e amargura. Talvez por isso andasse tão melancólico pelo castelo. Ser o responsável por ferir quem ama não é uma sensação muito agradável. O príncipe às vezes sentia vontade de socar espelhos quando encarava aquele menino medroso preso dentro de roupas granfinas e um sorriso falso.
— Alteza? — uma voz soou, despertando o jovem de seus devaneios. Ele encarou a moça de pé ao lado da árvore que lhe servia de apoio e suspirou. Quanto tempo havia se passado desde que sentou ali?
— Sim?
— O rapaz deixou isto para o senhor agora pouco. — a criada disse, ao estender um pedaço de papel rasgado e dobrado. O coração do príncipe acelerou. — Não se preocupe, ninguém além de mim o viu ou leu o conteúdo.
Lily era uma garota esperta, a única que sabia o segredo do príncipe e não parecia se importar com isso. Sunghoon a apreciava, era o mais próximo de uma amiga que já teve. Ele estendeu a mão para pegar o bilhete, temendo ser xingado entre cartas também e agradeceu a moça com um sorriso. Desdobrou o papel com cuidado, como se entre cada dobra estivesse um pedaço do seu coração. Seus olhos brilharam em lágrimas quando leu a única frase escrita à mão com uma letra retorcida. Riki estava tremendo quando escreveu aquilo.
"Tu dissestes que fui seu verdadeiro e único amor"
Sunghoon amassou o papel, fechando o punho com força. Seus olhos ardiam e ele os fechou com dor. Seu coração doía como se tivesse sido esmagado junto aquele bilhete, sua alma estava incompleta, sua mente apenas conseguia materializar a imagem do garoto de cabelo dourado sorrindo, dos dedos longos e delicados segurando um pincel, dos olhos afiados, da pinta no queixo.
O príncipe o amava tanto que doía.
— Alteza? — Lily chamou com suavidade. — Está tudo bem?
Sunghoon abriu os olhos, exibindo-os brilhantes e sofridos. Então suspirou, longa e profundamente; desejando que alguma força mágica invadisse seu corpo pelas narinas e lhe desse forças para continuar o planejado. Precisava ser muito forte para não ir correndo até Riki e gritar a plenos pulmões que o amava com toda sua alma.
— Sim — respondeu, exibindo sua mentira. Os olhos do príncipe voaram até a cidade novamente, observando a civilização com o peito doendo. — Você está indo à feira de Scarborough?
A moça piscou os olhos confusa, parecendo surpresa com a indagação de sua alteza. Sunghoon sabia os horários que Lily saia para comprar mantimentos para o jantar, pois já havia ficado tantos dias observando todos a sua volta, enquanto sofria em seu próprio luto. Então, aquela foi uma pergunta retórica, casual.
— Sim... — a criada respondeu, incerta. — O senhor deseja algo?
— Mande lembranças à aquele que vive lá... — Sunghoon sussurrou, sentindo cada letra dessa frase lhe perfurando como agulhas na pele. Seus olhos se encheram de lágrimas novamente, ele suspirou. — Pois outrora, ele foi o meu verdadeiro amor...
— Ah, alteza...
Sunghoon chorava, seus olhos transmitiam toda a dor de um coração partido, esmagado, sofrido. Sua boca amargava feito fel, seu peito doía como se uma manada de búfalos tivesse passado por cima de si. O príncipe desejou cavar um buraco no chão com as unhas para se enterrar vivo, para não ter que lidar com suas responsabilidades. Ao menos uma vez, estava sendo um garotinho assustado.
— Diga a ele para me fazer uma camisa de cambraia, sem nenhuma costura ou trabalho de agulha. — o príncipe pediu agoniado, com a voz fanha e os olhos inundados. — Diga para ele conseguir-me um acre de terra entre o mar e praia, para semear com uma única semente de pimenta, e fazer a colheita das safras com uma foice de couro... — um soluço escapou dos lábios do rapaz.
— Mas, senhor... — a moça começou, incerta. — Todas essas tarefas são-
— E então — Sunghoon a cortou, com o tom de voz e o olhar frios. —, quando assim fizer, ele será o meu verdadeiro e único amor.
Lily se calou, sentindo-se compadecida pelo jovem príncipe. Seus pedidos fizeram sentido após sua última fala, aquelas eram tarefas impossíveis de se realizar. Não havia como fazer qualquer peça de cambraia sem uso de uma agulha, não havia terra entre o mar e a praia, não havia como plantar, muito menos colher. Sunghoon não aceitaria o jovem camponês em sua vida novamente, não iria contra seus princípios e seu reino por alguém. Entretanto, ao constatar isso em voz alta, o rapaz chorou copiosamente como uma criança.
Pois amava Riki, com todo seu coração, corpo e alma.
— Sinto muito, alteza. — a moça exclamou, nitidamente compadecida. Sunghoon a encarou com um olhar distante, tentou forçar um sorriso como forma de agradecimento, mas não funcionou. Mais lágrimas caíram.
— Lily, me traga algumas ervas também...
[...]
Ao chegar na feira, a criada procurou pelas ervas, enquanto seus olhos também vagavam pelo lugar à procura do rapaz artista. Mesmo que fosse dolorido, ela iria passar o recado. Sentia que sua alteza merecia isso, assim como o pintor. Ambos necessitavam seguir suas vidas, Sunghoon tinha um país para governar futuramente. A moça suspirou cansada, já segurando os ramos, mas nada de encontrar o menino que tanto ocupava os pensamentos do príncipe herdeiro. Estava quase desistindo, pois a noite vinha com tudo e com ela, suas obrigações no castelo. Até que ela finalmente o viu, sentado em um canto solitário, pintando a silhueta de um homem nu às margens de um rio.
Lily suspirou, sabia muito bem quem era aquele homem.
O garoto de cabelo dourado tinha olheiras abaixo dos olhos e um olhar cansado, mal olhou para a moça quando ela se aproximou e destrinchou a lista de tarefas do príncipe para com ele. Riki continuou pincelando a tela, com a diferença que agora tinha lágrimas nos olhos. Quando Lily finalizou seu recado, ele soltou um riso amargo, desprovido de qualquer humor.
— Ele disse tudo isso apenas para dizer que não me ama? — inquiriu com amargura. A criada desviou os olhos, sem saber o que responder.
— Sou apenas uma mensageira, meu jovem.
— Sei bem... — Riki desviou os olhos da tela, abandonando seu trabalho e fitou a moça com mágoa. — Sua alteza é tão covarde que nem mesmo tem a decência de me dizer tais palavras olhando em meus olhos. Sei bem, Lily...
— Não acho que seja apropriado ofender o príncipe.
Riki soltou outro riso amargo.
— E eu não acho... — o jovem se interrompeu ao notar as ervas nas mãos da moça. Intrigado com a escolha da união de todas elas, perguntou: — Para que são?
Lily surpreendeu-se com a pergunta inesperada do rapaz, e encarou os ramos na sua mão.
— Oh — exclamou sem jeito. — São um pedido do príncipe, ele disse que quer um chá.
O pincel escorregou da mão do artista e caiu no chão, a moça franziu o cenho em confusão.
— De todas elas? — o rapaz inquiriu, com os olhos salientados.
— Sim... Se bem que eu achei esses ingredientes estranhos para ser unidos em... Você está bem?
Riki tinha lágrimas no rosto e um olhar quebrado tal qual o príncipe outrora no jardim. Suas dores eram espelhadas e não era para menos, afinal, compartilhavam do mesmo sentimento, mesmo coração. Eram almas gêmeas separadas, a dor da perda era um luto sem fim. O pintor encarava os ramos das ervas nas mãos da criada em choque, dor, vontade de gritar.
Salsa, salvia, alecrim e tomilho.
Eram ingredientes fundamentais para poções do amor, ou simpatias para reconquistar a pessoa amada.
Sunghoon ainda o amava sim, era um grande covarde que não iria contra seu pai, mas ainda sim... ele o amava. E Riki não sabia o que fazer com essa informação. Incerto se deveria correr até o castelo ou se contentar com o fato que jamais ficariam juntos, o rapaz apenas chorou alto, chamando atenção de muitas pessoas na feira que o olhavam espantados.
— Lily — ele chamou em meio às lágrimas. A moça o encarava tão surpresa quanto o restante das pessoas que passavam por ali.
— Sim?
— Diga a ele para vir buscar sua camisa de cambraia daqui duas luas.
Lily não estava entendendo nada, e começara a cogitar a possibilidade dos rapazes terem enlouquecido. Suspirou de modo penoso, sentia-se compadecida por aquele romance impossível, amor verdadeiro que jamais mostraria suas cores verdadeiras ao mundo por medo. A moça assentiu, mas antes de se afastar, olhou para trás uma última vez, e viu o jovem de cabelos dourados passar as pontas dos dedos na tinta fresca do quadro inacabado em um gesto melancólico. Os dedos sujaram de tinta, a pintura borrou, e o menino se debulhou em lágrimas novamente.
Assim como o romance do príncipe herdeiro, aquele quadro estava arruinado.
[...]
— Ele é tão meigo... É difícil não amá-lo tanto. — foi a primeira coisa que Sunghoon disse assim que Lily passou-lhe o recado do jovem pintor.
— O que quer dizer?
O príncipe desviou os olhos da janela, fitando a moça, inexpressivo. Lily não tinha feito nada de errado, pelo contrário, estava ajudando-o e sendo uma ouvinte excelente. No entanto, naquele momento quis gritar para que ela fosse embora para poder se jogar da sacada. Ele suspirou, não seria tão arrogante. Isso fugia de sua personalidade, seu coração bondoso jamais permitiria que fosse agressivo sem motivo. Sunghoon encarou novamente a janela, observando as folhas das árvores se moverem suavemente com a brisa.
— Você não entendeu, não é? Ele está sugerindo para fugirmos.
— Oh...
— Eu sei. Chega ser adorável da parte dele achar que conseguiria viver em fuga, que ficaria em paz sabendo que não fui homem o suficiente para assumir minhas responsabilidades.
Um pássaro amarelo pousou na sacada e começou a observar o interior do aposentado do príncipe com curiosidade. Sunghoon quis chorar.
— E sabe o que é o pior, Lily? — continuou o rapaz, sentindo o tom de voz falhar. — Meu desejo é ir correndo até ele, de ser irracional e agir feito um louco.
— Vossa alteza não seria capaz de conviver com isso? — a moça perguntou com sabedoria, atraindo os olhos de oceano para si por breves segundos. — Não seria capaz mesmo de desistir de tudo por amor?
— Eu tenho medo, Lily. O mundo é cruel e eu sou covarde.
— O que irá fazer, então?
— Viverei infeliz até o meu último suspiro e cumprirei com minhas responsabilidades como príncipe herdeiro. ㅡ a visão de Sunghoon embaçou, e ele já não conseguia mais ver o pequeno pássaro em sua janela e ponderou se algum dia deixaria de ver Riki em seus sonhos com tanta frequência, ou se seria capaz de apagar o sabor adocicado dos seus lábios da mente.
— E quanto ao jovem artista? — Lily questionou com cautela, e isso foi como uma facada no peito do príncipe. Ele suspirou, se esforçando ao máximo para não derramar nenhuma lágrima.
— Rezarei pela sua felicidade enquanto o amo incondicionalmente em segredo.
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