29 de Setembro, 2018 - Sábado (7h46)
Você sabia que existem alguns segredos para a criação dos personagens de uma história?
Depois que ler este capítulo, dá uma olhada na dica que deixei lá no final 😍
29 de Setembro, 2018 – Sábado (7h46)
De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: A maturidade é uma ilusão
Bom dia, amiga! Era para eu ter escrito este e-mail para você ontem à noite, mas cheguei em casa cansado e com a cabeça girando por tudo o que aconteceu. Então deitei na cama com o notebook ao lado (para te escrever) mas acabei capotando no sono.
Mas agora que acordei quero contar devidamente todas as coisas, antes que os detalhes se percam.
Para começar, este final de semana o Lucas novamente não veio para ficar conosco. Dessa vez por conta daquela determinação idiota do juiz, que ainda precisa verificar as acusações que aquela mulher endemoniada fez sobre eu e o Nicolas. O pinguinho ainda está na casa da tia-avó e, pelo que o Claus contou, o coitado está confuso com a situação toda. Afinal, já não vê o pai há umas três semanas, e agora está longe da mãe. E ninguém sabe explicar isso a uma criança tão pequena.
Tudo bem que a Sônia é uma serva do Tinhoso, mas o Lucas não entende isso, e acaba estranhando o fato de ter que ficar em um lugar que mal conhece com o argumento de que "a mamãe está dodói". Ao menos a irmã da Dona Rosa é uma mulher decente, e está cuidando bem do Pinguinho.
Ah, amiga... Estou com saudades dele. Aquele menino sempre teve um riso fácil comigo e com os Belson, e sempre tinha os comentários mais inocentes do mundo, fazendo a gente rachar de rir. Estar há tanto tempo sem a visita dele deixa tudo meio cinzento, sabe? Estou torcendo com todas as minhas forças para que a próxima audiência seja a última, e para que tudo saia como planejamos. Ou seja: final feliz. Ou algo próximo disso, já que finais felizes são coisas de contos de fadas.
Quem nos tem deixado informados é o Claus. Sei que já te falei isso, amiga, mas... Estou realmente impressionado com aquele cara. Achei que fosse dar uma puta dor de cabeça para nós, principalmente por ser quem ficava me espionando, mas pelo jeito o destino resolveu não ser tão cruel. O problema é que ele ainda fica meio chapado às vezes, o que é bem chato. Acho que não tem como mudar de hábitos de uma hora para outra (sou exemplo disso – não que eu me orgulhe).
Anteontem, na quinta, voltei a abrir a floricultura com a Jack e o Jonas. Num momento em que não havia ninguém ela comentou sobre o livro que dei de presente: pelo jeito acertei em cheio. O aniversário dos gêmeos pode ter sido péssimo por conta do que fiz, mas minha cunhada me garantiu que mesmo se eu não tivesse viajado teria sido um dia triste, porque o Lucas não estaria junto para comemorarmos. Os únicos contatos dele com o pai tem sido por vídeo-chamadas (a Jack tem providenciado isso ao buscá-lo da escolinha, antes de deixá-lo com a tia-avó). De início parecia que isso ajudaria a acalmar a saudade, mas na última vídeo-chamada, ontem, vi o Nicolas se afastar com lágrimas nos olhos depois de falar com o Lucas.
Ou seja: pode até ajudar um pouco, mas no fim das contas a dor pela distância acaba se intensificando, e machucando ainda mais.
Bom, agora vou falar sobre eu e o Nicolas. Para começar, é importante que saiba que na quinta-feira a gente sequer se viu. Quando ele voltou da faculdade, no fim da tarde, foi direto para a casa dele. O único contato foi essa mensagem:
Nick: Hoje na faculdade foi puxado, Zak. Vou descansar em casa, mas amanhã a gente se fala à noite com mais calma, pode ser?
ZakRod: Ok.
Eu mostrei a mensagem para a Jack, que estava ao meu lado, e ela deu um suspiro. "É, ele ainda está balançado com tudo. Mas não é só com você, Dáki... Se amanhã ele não cumprir com a palavra de conversarem, eu mesma vou lá puxar a orelha dele".
O jeito como ela falou fez com que eu desse um risinho, daqueles bem fracos com o canto da boca. Não tinha como evitar achar graça da forma como ela falou, mas também não havia força o suficiente para uma gargalhada... Ainda doía bastante (não que agora eu esteja 100%, mas nesse dia estava bem pior). E na sexta-feira à tarde (ontem), enquanto o Nicolas ainda estava na faculdade, recebi o seguinte:
Nick: Quer dar uma volta perto da prainha lá pelas 18h? Hoje tem feira de artesanato, então pode ser interessante.
ZakRod: Ok.
Não sei se você reparou, mas nas duas vezes minha resposta foi curta. Não pense que era charme dramático, amiga, porque não era. Acontece que receber uma mensagem dele, depois de tudo o que rolou (depois de toda a merda que fiz), fez meu coração disparar e eu simplesmente não sabia o que dizer. E também, ficar imaginando o que se passava na cabeça do Nick também não ajudou muito. A dor da culpa por tudo ainda parecia um monstro impossível de superar.
Quando saí de casa, para o encontro, me despedi da Jack e Jonas (que já estavam fechando a Belson's Flora em meu quintal) e fui até o carro dele, que aguardava. Amiga, não sei se por pura coincidência ou por ironia do destino, mas ambos estávamos de preto. Eu escolhi essa cor porque é praticamente um padrão para mim, além do vermelho. Mas o Nicolas não usa muito preto. Ele fica lindo com essa cor (dolorosamente gato), mas não é algo frequente. E estava com a jaqueta jeans por cima, também. Parece que queria terminar de esmagar meu coração, porque vê-lo tão lindo faz minha consciência gritar ainda mais comigo. Algo do tipo: Como você foi capaz, Isaac? Olha para o homem à sua frente! Como você foi capaz de ser tão filho da puta com esse deus grego? Seu lixo!
Acho que você está cansada de saber, mas... Minha consciência não costuma pegar leve.
Entrei no carro e disse um "oi" sem jeito, quase sem olhar para o Nicolas. Ele acenou com a cabeça e começou a dirigir.
A gente ficou um tempo em silêncio... Claro que ficaríamos! Não é como se tudo estivesse maravilhoso e eu quisesse jogar conversa fora com ele. Mas ao menos a prainha (represa do rio) é bem perto, então esse constrangimento não durou muito. E nem me pergunte que cara ele estava fazendo ao volante, porque não fiquei espiando-o dirigir, como de costume. Fiz questão de ficar olhando para o outro lado, para fora da janela.
Não sei... Era como se eu não tivesse o direito de cruzar olhares com meu próprio namorado. Como se eu estivesse abaixo disso, e não merecesse.
Assim que ele estacionou, ficou um tempo ainda dentro do carro. Senti uma tensão desagradável no ar, e achei que ele fosse me dar algum tipo de sentença. Mas alguns segundos depois ele saiu do carro e esperou que eu fizesse o mesmo antes de trancar.
A prainha estava com bastante gente, como de costume. Principalmente porque naquela hora o pessoal se junta para ver o pôr-do-sol, então não havia exatamente um local íntimo para ficarmos. Andamos pela feira de artesanato, e uma coisa que me chamou a atenção é que numa das barracas, com bijuterias naturais, o Nicolas prestou mais atenção que o normal em uns anéis. No fim, ele sequer perguntou sobre eles, mas notei essa atenção extra. Me pergunto se era alguma intenção de termos alianças de compromisso... Mas como não perguntei, ficou por isso mesmo.
Continuamos a andar lado a lado, mas sem dar as mãos, como eu gostaria de ter feito. Passou pela minha cabeça que, se nos olhassem de longe, pareceríamos apenas dois colegas, e não um casal. Eu não fico muito à vontade com demonstrações públicas de relacionamento (sinto que todos estão me encarando, e odeio essa sensação), mas naquele momento eu não teria me importado com um beijo em público, porque o significado por trás do ato teria sido maior que meu desconforto social.
Quando chegou a hora do pôr-do-sol escolhemos um lugar na areia da represa para nos sentarmos. Como eu disse, tinha bastante gente (principalmente por ser uma sexta-feira) então não estávamos à sós como eu gostaria. Mas mesmo assim, mesmo com pessoas em volta e em silêncio, ficar perto do Nicolas foi bom.
Aliás, eu falo isso agora, mas... Naquela hora eu estava tenso. Dei uma ou duas espiadas nele, para tentar sondar os pensamentos de meu namorado, mas ele estava sério. Não um sério bravo, mas um sério neutro. E isso faz com que ele fique ainda mais indecifrável.
O sol estava vermelho, já tocando o horizonte, quando ele disse, bem baixo: "Eu só queria entender...". E suspirou, olhando para baixo.
Ouvir ele dizer isso deu uma agulhada na alma. Como se o próprio demônio esticasse as mãos e beliscasse meu coração.
"Nick, eu..."
"Aqui não"
Olhei para ele, e notei que estava verificando as pessoas em volta. É claro... Ter uma discussão de relacionamento em meio a uma multidão que aplaudia o sol se pondo era bem anti-climático. Então o Nicolas se levantou e andou pela areia, se afastando da prainha onde estava a feira e o povo. Fomos para perto de uma espécie de parque botânico que tem por lá, onde as pessoas não vão muito (a prainha é mais chamativa para visitantes do que um gramado com árvores).
De onde estávamos já não tinha como ver o sol se pondo, o que significava que também não seria possível ser visto – ou ouvido – pelas pessoas.
Adentramos uns dez metros na parte arborizada e nos acomodamos como dava em um tronco enorme que fazia as vezes de banco. O Nick sentou nele com uma perna de cada lado, como quem monta um cavalo, então fiz o mesmo, de forma que ficássemos um de frente para o outro.
Amiga, normalmente ficar assim teria sido ótimo, pois facilitaria para nos beijarmos e talz... Mas não estávamos ali para namorar, e sim para salvar o namoro. E sentar diante dele foi meio que desconfortável. Nem quanto tirei as roupas para ele assistir, no motel, fiquei tão constrangido. Porque o Nicolas ficou me encarando com aqueles olhos que sempre parecem que estão enxergando mais do que eu quero mostrar.
Muito mais.
"O que você ia dizer?", ele perguntou. Mas a verdade é que antes, quando estávamos sentados na areia, eu não tinha a menor ideia do que diria. Aliás, provavelmente eu pediria desculpas novamente, o que seria inútil.
Em vez disso, falei: "Quero saber o que você está pensando, de verdade. Quero que solte de uma vez o que está segurando, porque não aguento mais isso"
E era verdade, amiga. Eu estava a ponto de explodir com aquele suspense todo. Você sabe... É horrível quando alguém fica quieto por tempo demais. Eu preferia que ele me xingasse de tudo quanto é nome do que aquele silêncio horrível. E diante do que falei, o Nicolas suspirou e abaixou o olhar que, até aquele momento, estava pousado (dolorosamente) em mim.
"O que eu tinha pra falar era, basicamente, aquilo que falei no dia que você voltou"
"Certeza? Não tem mais nada que queira dizer? Porque pra mim parece que ainda tem muita coisa engasgada aí"
"Tem. Mas não é nada que preste", ele respondeu. "Nada que vá resolver o problema ou fazer com que a situação melhore de alguma forma"
"E daí, Nick? É por isso que você me deixou confuso, sabia? Esse teu excesso de cavalheirismo às vezes é péssimo!". Eu tentei falar isso bravo, mas minha voz embargou. Em vez de gritar com ele, como eu queria, comecei a chorar. Pois se o Nicolas não tinha nada a me dizer, eu tinha coisas a dizer para ele. "Você tem alguma ideia de como tem sido pra mim esses dias? Ótimo, eu sei que você está com problemas sérios por causa da Sônia, mas em algum momento você chegou a pensar em como eu estava me sentindo no meio dessa merda toda? Porra, Nick, você simplesmente se fechava, e não queria falar comigo!"
Ele parecia meio chocado com o que falei, e antes que eu continuasse, ele se defendeu: "Eu tenho meus problemas, Zak, e não queria te envolver mais do que já estava. Foi para te proteger! Ou já se esqueceu que a Sônia foi até sua casa enquanto estava sozinho, te arranhou e bateu sua cabeça no portão?"
"Não esqueci! Droga, é claro que não esqueci! E exatamente por causa disso é que acabei me sentindo horrível quando você simplesmente não quis mais falar comigo, porra!". Nessa hora eu já estava chorando abertamente, com o nariz escorrendo e os olhos vermelhos. Mas não importava, porque finalmente aquela bola horrível em minha garganta estava saindo. "Nick, consegue imaginar o que é tentar me aproximar do meu namorado, e ser rejeitado? Consegue sentir a dor de ser usado para alívio de estresse, com um sexo frio, pelo único homem que disse me amar? Nick, eu sei que não tenho sido o melhor namorado do mundo, sei que fiz uma merda gigante por acompanhar a Hellen ao levá-la embora, mas eu só me afastei porque senti que estava sendo um estorvo na sua vida. Será que você não entende que sua 'gentileza' ao me deixar de fora dos seus problemas fez com que eu não me sentisse digno de participar da sua vida? Puta que pariu, Nick! Eu não sabia mais o que fazer!"
Eu não estava mais olhando para ele enquanto falava. Olhava para o tronco onde estávamos sentados (mal enxergando, porque a imagem estava retorcida pelas lágrimas), e limpava o catarro que escorria com a manga da camiseta preta. Sei que minha aparência estava repugnante, mas mesmo assim senti a mão quente dele em meu rosto. Foi um susto, porque eu não estava esperando por isso. E quando levantei o olhar, senti que algo dentro dele tinha finalmente me compreendido. Não necessariamente me perdoado, mas... Me compreendido.
Não sei explicar o alívio que me deu ver aqueles olhos verdes com um brilho novamente. Talvez ele estivesse com pena, não sei, mas sinceramente não me importo. Naquele momento eu precisava fazê-lo entender o quanto aquele afastamento me machucou.
"Nick, eu estava tão confuso, tão perdido... Nunca fui bom em ajudar as pessoas, então não sabia o que fazer além de pedir desculpas... Sei que isso não adianta, mas eu não sabia como agir ao te ver daquele jeito. E quando você praticamente me expulsou, achei que ficar longe seria melhor"
Ele abriu a boca para dizer algo, mas calou-se. Balançou a cabeça, dando a impressão que estava descartando um pensamento. Provavelmente iria dizer que, no fim das contas, me afastar não foi melhor. Posso estar errado em minha suposição mas, se for isso mesmo, faz sentido ele ter ficado quieto. Afinal, já estava claro que foi uma péssima ideia – e o que estava em pauta era outra coisa, não teria sentido retrucar.
Eu ainda chorava, e a porcaria do nariz ainda escorria, mas o que eu precisava dizer havia saído. Era como tirar um espinho do pé que que estava me machucando há tempos.
"Zak, eu... Não sabia", ele disse com a voz tão baixa que quase foi sobreposta pela algazarra das cigarras. "Você devia ter me dito isso antes de tomar essa decisão louca de sair de casa"
"Não dava! Você tem alguma noção do quão cabeça-dura você é? Estava difícil entrar na sua bolha, Nick... E eu não tenho exatamente experiência com situações desse tipo, então eu fiz o que achei certo. O problema foi que, para eu perceber que estava errado, custou caro. Minha virgindade de ativo foi para o ralo..."
Quando falei isso, ouvi o que eu menos imaginava possível: um riso do Nicolas. "O que? Virgindade de ativo? E isso por acaso existe?"
Desta vez os olhos dele brilharam ainda mais. Foi uma segunda explosão de alívio naquela noite, tão grande que nem sei se já senti antes na vida. O Nicolas sorriu e, o mais importante: o motivo do sorriso era algo que que remetia diretamente a uma coisa que deveria ser ruim. Sei que parece contraditório e até confuso eu te dizer isso, amiga. Mas quando falei aquilo achei que o clima ficaria estranho (não que eu tivesse intenção de deixar o clima assim, mas era algo que precisava ser dito). Em vez disso fui presenteado com um sorriso e em seguida com uma cara cômica do Nicolas me perguntando se aquilo existia. Foi incrível.
Eu sinceramente não achava que aquele era o melhor momento para tocar no assunto mas, como ele estava perguntando, expliquei:
"Sim, existe... Você, por exemplo, ainda tem a virgindade de passivo... Já eu pretendia perder a minha de ativo com você, mas... Enfim, não quero lembrar disso"
"Nem eu"
O riso do Nicolas diminuiu um pouco, mas não foi completamente embora. Ele respirou fundo, o peito subindo devagar e depois descendo, e fiz o mesmo. Nos encaramos, em silêncio, e desta vez não me senti tão mal por ser escaneado pelo olhar Belson. Eu queria que ele me enxergasse, entende? Aliás, não apenas queria, mas precisava que ele visse tudo em mim, desde o lado que fez com que ele gostasse de estar comigo, até meu lado mais sinistro e podre.
"Esse sou eu, Nick... Um cara depressivo, todo torto e com uns parafusos soltos. Quero melhorar, mas não vou conseguir fazer isso de uma hora para outra."
"Eu sei... Mas comece por não se machucar mais. Ainda dá pra ver alguns arranhões que você fez em seu rosto"
"Tá... Vou tentar"
"Não apenas tentar. Você vai conseguir", ele disse, pegando em minha mão.
Ah, amiga... Eu parecia uma criança boba da quinta série, porque o mero toque da mão dele na minha causou um êxtase no peito. E meu namorado continuou segurando minha mão enquanto as primeiras estrelas surgiam. Pareceu que o semblante do Nicolas escurecia junto com o céu pois ele abaixou a cabeça e, com a mão que não segurava a minha, secou os olhos – estava escuro o bastante para que eu sequer tivesse notado que ele estava chorando.
"Ah, Zak... No fim das contas, eu também não soube como agir", foi o que o Nicolas sussurrou. Eu devia estar com uma interrogação enorme na cara, porque ele explicou: "Sobre tudo o que você me contou... Acabei não percebendo que o que fiz estava tendo o efeito oposto do que eu queria. Minha intenção era evitar te arrastar ainda mais para meus problemas, te proteger, mas em vez de isso funcionar, acabou criando um problema diferente."
"Entenda uma coisa, Nick... Eu prefiro que me arrastasse para seus problemas, do que sentir que não sou importante o bastante para fazer parte deles"
Quando falei isso, ele apertou mais minha mão.
"Exatamente por você ser importante é que não queria te arrastar para a fossa comigo. Mas sim, eu entendi seu lado..."
"Que bom. Então não vai mais me afastar quando estiver com problemas, não é?"
Em vez de responder minha pergunta, o Nicolas abaixou a cabeça, e comentou algo que pensei que ele estivesse evitando: "E ainda por cima, fiz aquilo com você..."
"Aquilo?"
"Meio que te usei... Na hora eu não estava pensando direito, Zak. Fui um escroto..."
"Ah, aquilo..."
Pensei em dizer que não, que ele não tinha sido isso. Pensei em lembrá-lo de que ele era um excelente namorado (e de fato é), mas fiquei quieto. Confesso que uma parte em mim estava comemorando o fato de ele ter notado que me fez mal.
Admitir isso neste e-mail para você faz eu me sentir quase um vilão, amiga. Mas eu preciso exorcizar essa frase de mim: Sim, o Nicolas me fez muito mal, e eu senti muita raiva dele por isso, e me senti vingado quando vi a culpa tomando conta dele. Pronto, falei.
Mas ao mesmo tempo, sei que também já fiz muito mal ao Nicolas, não apenas por minha partida e minha traição, mas em outras vezes. Imagino que não seja muito fácil lidar comigo, pois eu mesmo não me suporto às vezes.
"Me desculpa, Zak... Por aquilo, e também por ter te afastado tantas vezes nesses dias"
Por algum motivo, o pedido de desculpas dele me atingiu de uma forma dolorosa, quase como se eu não merecesse. Sei que acabei de dizer que me senti meio que "vingado" pelo sentimento de culpa do Nicolas, mas vê-lo pedindo desculpas a mim, o lado mais sujo de nós dois, foi um pouco desconcertante. Dei uma risada sem graça, quase que debochando de mim mesmo. Minha consciência gritou: "Era isso que queria, babaca? Se sente melhor agora, seu inútil?". Balancei a cabeça.
"Eu é que tenho que pedir desculpas, Nick... Sei que já pedi várias vezes, a ponto de te irritar até, mas isso é importante, então me ouça...", e olhei nos olhos dele com mais intensidade: "Fiz um monte de coisas das quais não me orgulho, e não quero fazer de novo... Não quero voltar a perder o controle daquele jeito. Sei que é difícil me perdoar, mas... Preciso ao menos que tente. Não tem que ser agora, mas no seu tempo."
Ele continuou me olhando, como se estivesse avaliando tudo o que falei. Uma coisa que sempre amo no Nicolas é que ele ouve de verdade o que eu falo. Aliás, não é só comigo, mas com todos. Até quando eu estava contando a merda que fiz com a Hellen ele ficou prestando atenção sem me interromper, mesmo que fosse doloroso. Me sinto o cara mais privilegiado do mundo por estar namorando alguém assim, por isso às vezes acho que não mereço tanto.
"É difícil te perdoar", ele começou, "Mas eu seria um idiota se não percebesse que tenho parte dessa culpa nas minhas costas também. Você me fez perceber isso hoje"
"Nick, eu não falei aquilo tudo pra aliviar pro meu lado... Eu só queria que você entendesse o que eu estava sentindo, e não que pegasse parte da culpa pra você"
"Eu sei, e não estou aliviando a responsabilidade que você tem sobre o que fez aquela noite. Você se descontrolou, Zak, e isso é grave. O que eu quis dizer é que também tenho coisas para pensar sobre o que aconteceu. E que também te devo um pedido de desculpas por tudo"
"Ok..."
"E também quero dizer que, por mais difícil que seja, eu te perdôo. Não significa que vou me esquecer do que fez, mas eu te perdôo, porque também quero que me perdoe pelo que fiz, e pelo que deixei de fazer... Me perdoa?"
"É claro que sim..."
A essa altura eu já estava chorando de novo. E o Nicolas não estava como eu, mas notei que os olhos verdes estavam molhados. Ele chegou um pouco mais perto e colocou as mãos em meu rosto. Por um momento, achei que ele fosse me beijar, mas ele encostou a testa na minha, e fechou os olhos. "Precisamos aprender a lidar com essas situações, para que não aconteça novamente, Zak"
"Uhum... Então, voltamos a ser como éramos antes de tudo?"
"Como antes? Não... Temos que ser melhores do que ontem. E amanhã melhores do que hoje. Senão os erros se repetem, e eu não quero isso"
"Nem eu"
"Ah, Zak...", ele sussurrou. Como eu estava com a testa colada na dele, de olhos fechados, não reparei de imediato, mas naquela hora o Nick começou a chorar de novo.
Amiga, eu tinha acabado de dizer que iria melhorar... Tinha me comprometido a ser um apoio para ele, e havia reclamado por ele não se abrir comigo. Mas quando o Nick finalmente começou a se soltar, não tive absolutamente a menor ideia do que fazer. Então, em vez de fazer como nos dias passados (perguntando "o que foi" como uma matraca), apenas o abracei e disse: "Estou aqui".
Como para mim não é comum vê-lo dessa forma, me senti mal em não ter nada além de meu ombro para oferecer. E com o tempo comecei a notar que o lugar onde ele estava com a cabeça encostada ficava mais e mais úmida. O Nicolas não chora como eu, mas sim de uma forma mais silenciosa e contida. Fiz o possível para segurar minhas próprias lágrimas e ser o apoio que ele precisava, mas não foi fácil. E ficou ainda mais difícil quando ele disse: "Não aguento mais".
Por um momento pensei que tinha a ver comigo. Mas então a consciência me deu aquele tapa na cara para eu largar de ser besta e egoísta.
Tratava-se do Lucas. O Nicolas não abraça o próprio filho há semanas por causa daquela desgraçada (mesmo agora, enquanto escrevo este e-mail, ele ainda não viu o Lucas pessoalmente), e isso tem se acumulado no Nicolas. Era isso que ele não aguentava mais. Tive certeza disso quando ele continuou: "É tão injusto, Zak... Eu sempre me esforcei pra ser o melhor pai possível, para que as pessoas não me olhassem como o canalha que engravidou a moça e fugiu das responsabilidades... Sempre paguei a pensão e tentei ter uma conduta respeitável aos olhos de todos... Mas a desgraçada faz isso tudo! Eu não tinha ideia de como as coisas estavam na casa dela... Não sabia o que o Lucas estava passando... Meu próprio filho, e eu não fiz nada para ajudar! E agora estou sendo acusado de fazer coisas erradas na frente dele, Zak..."
A carga foi forte. O Nicolas estava com o rosto oculto, apoiado em meu ombro, e agarrava os lados de minha camiseta. Ouvi tudo quieto, chorando o mais silenciosamente possível, e fiquei acariciando os cabelos dele.
Este é um lado do Nicolas que eu não conhecia, e foi doloroso de ver. Entendo o que ele disse, sobre querer me proteger e não me arrastar para a fossa dele, mas... Sinceramente? Entre ser afastado ou entrar na lama com ele, pode ter certeza de que prefiro a segunda opção. Se o Nicolas precisar ir até o inferno, quero que ele peça minha companhia. Não importa se vai ser triste ou se vai doer. Não importa se vou ver um lado frágil dele... Quero o Nicolas por inteiro, e sei que é egoísta pra caralho dizer isso. Mas somente assim sei que faço parte da vida dele de verdade. Não quero que ele compartilhe apenas as alegrias comigo. Afinal, eu sou o rei de compartilhar minhas desgraças, não sou? Compartilho coisas boas e ruins com você nesses e-mails, e sempre compartilho coisas ruins com ele, mesmo sem querer (porra, o Nicolas já limpou meu vômito e cuidou de mim quando sequer namorávamos). Então quero que ele também comece a compartilhar mais dessas tristezas comigo. E ontem, sentados naquele tronco, foi o primeiro passo.
Ele continuou: "As acusações dela são tão injustas! Eu nunca senti tanta raiva de alguém na vida! Nunca quis tanto machucar alguém! Pelo amor de Deus, nunca fizemos nada de mais na frente dele... Eu sabia que... Ah, nada, esquece"
"Fala"
"Melhor não"
"Nicolas, eu não vou te deixar em paz enquanto não falar o que estava pensando. Pode ser pior se eu tirar minhas próprias conclusões e ficar imaginando coisas"
"É que... Quando comecei a ficar com você, sabia que enfrentaria algum tipo de dificuldade, por ser um relacionamento homossexual. Mas não achei que isso atingiria o Lucas. Agora pensando, fui ingênuo demais ao acreditar que ele não seria envolvido de alguma forma"
"E... Você se arrepende?"
"Ah, Zak, é por isso que eu não queria falar... Imaginei que você acabaria tendo uma ideia errada do que falei."
"É que... Às vezes tenho medo que você... Ah, enfim, esquece... Me desculpe. Falei merda"
"Para a sua informação, eu não me arrependo de estar com você, Isaac! Se tenho um arrependimento na vida, é o de não ter pedido a guarda do Lucas antes!"
"Entendi", falei, sabendo que realmente eu tinha começado a desviar o assunto pro meu lado sombrio e egoísta novamente. Preciso mesmo parar com isso... Mas meu cérebro se envereda pra esses cantos sozinho.
O Nicolas secou os olhos e respirou fundo (aliás, nunca respiramos fundo tantas vezes quanto nesta noite). Olhou para o céu, que estava bem estrelado – muito lindo –, e depois para a prainha, ainda cheia de gente andando na feirinha e nos quiosques de comida.
"Está com fome?", ele perguntou. Com toda aquela conversa, eu sequer havia notado, mas meu estômago já estava se contorcendo (não havia comido antes de sair – estava nervoso demais para isso). O Nicolas se levantou do tronco e estendeu a mão para mim. Achei que fosse demorar para ele querer voltar a fazer isso, mas... Ele entrelaçou os dedos nos meus, e fomos assim até uma barraca de pastéis. Comemos em silêncio, andando pela prainha movimentada. Em alguns pontos as pessoas colocavam músicas nos carros, e dançavam. Ninguém estava nem aí para nada. Ninguém notou dois homens andando de mãos dadas na areia em meio a todos.
Mas tem outra coisa que ninguém notou, apenas o Nicolas: "É impressão minha ou aquele cara está roubando aquelas bolsas?"
Perto de um grupo de pessoas, havia vários objetos pessoais amontoados. Os donos das coisas estavam – como eu disse – dançando sem olhar em volta, então não viram que um cara remexia tudo, encontrando carteiras e escondendo-as na jaqueta.
Quando forcei melhor a vista, notei algo que fez meu estômago embrulhar: "Nick... Foi ele..."
"Quê?"
"O cara que me deu a canivetada aquele dia, na Parada do Vale... É ele! Vamos sair daqui, Nick... Eu tô com medo, vamos embora"
Amiga, eu quase não acreditei na coincidência de vê-lo na prainha. De repente todo o medo que senti naquele dia voltou. Lembrei da dor do corte, de ver meu sangue escorrendo, e o desgraçado sumindo em meio à multidão. Pensei que o Nicolas me tiraria dali imediatamente, entendendo o pânico que começou a se instalar em mim, mas para meu horror ele fez exatamente o contrário.
O Nicolas começou a correr na direção do cara. Não disse nada, não deu nenhum sinal de alerta a respeito do roubo de carteiras. Foi até ele como um tiro, saltou como um lobo dando o bote, e começou a meter socos na cara do desconhecido. E o cara começou a gritar desculpas, dizendo que não estava roubando (mentiroso!) e que era apenas um grande mal entendido.
Ele não havia reconhecido o Nicolas, que continuava batendo nele. O cara tentou se esquivar, tentou fugir, mas o Nicolas estava louco. Amiga, ele estava simplesmente louco... Xingava-o, tirava as mãos do homem da frente e socava a cara dele. Quando percebi que o outro estava começando a sangrar no nariz, fui até meu namorado para tentar impedir aquilo antes que desse alguma (outra) merda.
Deus do céu, eu não imaginei que o Nicolas fosse capaz de fazer aquilo em meio a tanta gente. E o cara, que estava deitado na areia com o Nicolas sentado sobre ele, gritava "Desculpa, mano! Eu precisava da grana!". A essa altura é óbvio que o pessoal distraído já havia se ligado e recolhido tudo, formando uma rodinha curiosa em volta da gente enquanto reclamavam pela falta de alguns pertences. E o Nicolas continuou batendo enquanto eu tentava pará-lo inutilmente.
Sabe uma coisa que eu pensei? Parecia que o Nicolas estava descarregando. A impressão que tive é que ele estava imaginando a Sônia ali, e soltando a raiva em cima do ladrão, mas com a Sônia em mente (e talvez até a mim, mas prefiro nem pensar nisso).
O pessoal que estava em volta não me ajudou a segurar o Nick. Parecia que estava gostando de ver o ladrão apanhando, mas eu não estava gostando nem um pouco, pois era o meu namorado ali, machucando outra pessoa e correndo o risco de ser detido. Tentei segurar os ombros dele, mas eu não tenho nem metade daquela força. E o cara gritou: "Misericórdia, eu devolvo, mano! Eu devolvo tudo!"
"Não é por isso que você tá apanhando!", o Nick gritou, sem parar de bater. "Não tá lembrando dele, não? Não lembra o que você fez na Parada, seu desgraçado? Ele ficou uma semana no hospital por sua culpa!"
Enquanto eu tentava segurar o Nicolas, o cara olhou para mim, e arregalou um dos olhos (o que não estava inchado). Só ouvi ele falando "Caralho", antes de meu namorado enlouquecido acertar outro soco na boca dele.
"Nick, pelo amor de Deus, pensa no Lucas! Olha suas mãos, estão cheias de sangue! Para com isso, e se você matar o cara?"
Foi a única coisa que o parou, amiga. Mas o Nicolas não soltou o ladrão, que agora olhava para mim como se eu fosse o próprio demônio.
"Aí, mano... Aquilo não foi intenção, não". De início não entendi o que o ladrão estava dizendo. Até que ele falou, ainda encolhido e com sangue escorrendo do nariz e da boca: "Foi um cabra aê que me pagou, tá ligado? Era apenas pra assustar um loiro lá na Parada... Vish, acho que era esse doido aqui! Cacete, era mesmo! Mas aí veio esse outro louco e pulou em cima de mim! Aê, me deixa vazar... Não tenho nada a ver com isso! Fui pago pra zoar o loiro, mas o gótico aí pulou na frente e melou pra mim! Aí eu só me defendi, tá ligado? Não era pra cortar ninguém, só para assustar! Foi mal, mesmo, mano!"
O que me deixou sem chão foi a coisa sobre alguém pagar ele para ameaçar meu namorado durante a Parada LGBT daqui de Vale do Ocaso. Eu me lembrava muito bem daquele dia: eu havia saído do banheiro, e vi o ladrão com canivete, mirando no Nicolas, que ainda estava longe numa fila de cerveja. Foi por isso que agi sem pensar (pra variar) e fui pra cima dele. E acabei tomando uma canivetada na cara e outra pior na barriga. Ainda tenho as duas cicatrizes.
O Nicolas ainda estava sentado sobre ele, para que não fugisse. "Quem mandou você me dar um susto naquele dia?"
"Me solta, mano, por favor! Sou da paz..."
"Quem te mandou?"
"Ah... Um cabra aê, da floricultura"
Por um momento minha mente congelou. Pensei no Jonas, que trabalha com a gente na Belson's Flora, mas aquilo não teria sentido. Naquele dia o Jonas estava na fila de cerveja com o Nicolas, e na época não tínhamos aberto o negócio ainda.
"Quem?", o Nicolas perguntou de novo, dessa vez puxando os cabelos do cara.
"Um parrudão mal encarado... Esqueci o nome"
"O Marcus?"
"Isso! Era esse o nome do cabra! Lá da floricultura que faliu em Eloporto! Ele pediu pra eu te assustar... Não era pra fazer mal, não... Disse que era pra te ensinar a largar de ser boiola, mas sem ofensa, mano! Sem ofensa! Foi ele que falou, não foi eu, não! Só me deixa ir, por misericórdia..."
As pessoas estavam começando a cochichar à nossa volta. Eu pensei em pegar o celular e falar com a Lílian, advogada dos gêmeos, mas algo em mim disse para deixar quieto, pois já estávamos envolvidos num processo doloroso, e eu não queria criar ainda mais dor de cabeça para ninguém por causa de algo que já ficou no passado – apesar das cicatrizes.
Quando olhei para o Nicolas, ele parecia em choque. Ainda prendi o cara, então puxei-o pela mão.
"Nick, por favor, deixa pra lá... Não quero desenterrar isso. Já estou bem, e minhas cicatrizes nem doem mais. Por favor, vamos deixar isso pra lá"
"Ele podia ter te matado..."
"Eu tô aqui, Nick. Não morri ainda"
"Ainda? Não fala assim, Zak..."
O Nicolas estava desolado. Me olhou da forma mais triste do mundo, e puxei-o novamente para que se levantasse. O ladrão correu, e nem vi para onde. Deixou as coisas roubadas na areia, e sumiu.
Para falar a verdade, não estou ligando mais para isso. Principalmente agora, que sei o que aconteceu de verdade. E o culpado disso está na cadeia por estupro, assédio e desacato à autoridade.
Não sei se o pessoal bêbado, donos das coisas que quase foram roubadas, entendeu a situação verdadeira. Recolheram as coisas jogadas na areia e nem olharam na cara do Nicolas. Eram uns palermas lerdos e ingratos. Devíamos ter deixado levar as coisas deles.
Antes que juntasse mais gente, puxei o Nicolas para longe dali, e voltamos para perto das árvores onde estávamos. Mas, antes de chegarmos no tronco onde ficamos sentados, o Nicolas se apoiou numa árvore e vomitou. O pouco que ele havia comido voltou, e ele pareceu nem se importar com isso. Começou a socar a árvore, limpando a boca com a manga da camisa preta, e por um tempo não fez nada além de rogar pragas. Xingou a Sonia, xingou o ladrão, o Marcus, e mandou todos para a puta que pariu. E mais uma vez eu estava que nem uma estátua inútil, apenas vendo meu namorado em uma mistura de tristeza e raiva que parecia não ter fim.
Depois de um tempo quieto, onde o Nicolas parecia se concentrar apenas em respirar, chamei-o para irmos embora. Em resposta, ele disse: "Você devia ter chamado a polícia... Aquele homem te atacou com um canivete, Zak..."
"E entrar em mais um processo? Não, valeu... Já basta esse em que estamos com a Sônia!"
E parece que ele entendeu. Limpou o nariz e a boca na camisa novamente (que já estava mais nojenta que a minha) e ficou de frente para mim.
"Estou tão cansado, Zak... Tudo isso... Tudo o que está acontecendo... Queria só dormir e fingir que foi tudo um sonho ruim"
Ele colocou as mãos em meu rosto, e pela segunda vez naquela noite achei que fosse me beijar, mas ele não fez nada. Pegou as chaves e me puxou pela mão até o carro. O caminho de volta foi silencioso, mas o clima estava bem menos pesado que antes. Dessa vez não era o gelo entre nós que causava o desconforto, mas a situação como um todo.
Ao chegarmos na Casa das Flores, perguntei: "Quer conversar?", mas eu já sabia da resposta, pois estava estampada nos olhos dele.
"Preciso descansar. Se importa se eu ficar em minha casa essa noite? Sei que já nos acertamos, mas quero ficar um pouco sozinho"
"Claro..."
Ah, olha só, amiga: apesar de eu ter dado essa resposta serena e compreensiva, aquilo doeu um pouco. Eu tive esperanças de que ele fosse pedir para eu entrar junto e dividirmos o sofá (que é extensível e grande o bastante para um casal), mas engoli meu desagrado e cedi esse pedido a ele. Em troca, recebi um selinho rápido, e logo ele entrou, me deixando sozinho na calçada.
A noite estava estrelada e morna, mas dentro de mim ainda estava nublado e frio. Não havia como ignorar o que eu tinha acabado de presenciar. A única vez em que vi o Nicolas se descontrolar daquele jeito foi quanto descobriu o que o Marcus havia feito comigo na boate. Foi muito parecido com ontem: sentou sobre ele e começou a socá-lo. E dessa vez as mãos do Nick ficaram machucadas. Fico só imaginando o quão forte foram os golpes (acho que a Jack vai ter que esconder isso com maquiagem na segunda-feira).
Realmente acho que, se não fosse por toda essa tensão do processo a respeito da guarda do Lucas, o Nicolas não teria sido tão violento. Acredito que ele usou o cara para aliviar a tensão, da mesma forma como havia feito comigo no sexo.
No fim das contas, existe um Nicolas que não conheço, e que também se descontrola às vezes. A diferença é que ele tem muito mais poder sobre as próprias atitudes do que eu. Afinal, pense comigo: em cinco meses que o conheço, o Nicolas quase nunca fez isso. Já eu, perdi a conta da quantidade de merdas que fiz o Nicolas aguentar de minha parte.
Quando voltei para meu casarão, as paredes pareciam mais acolhedoras do que quando saí. O Nick não veio dormir comigo, mas ter conversado com ele e tê-lo feito entender meu lado (e ver que ele sentiu certa culpa também) ajudou a melhorar meu humor.
Eu realmente não queria ter que carregar toda a culpa sozinho e, como te falei, me senti um pouco vingado na hora que ele disse que também tinha responsabilidade sobre tudo. Mas agora, com minha cabeça mais fresca, me dói lembrar de como a mesma culpa que me vingou machucou meu namorado. No fim das contas, tudo o que quero é que ele fique bem, que o Lucas fique bem e... Também quero ficar bem. Sem que, para isso, eu precise me "sentir vingado" por alguma coisa.
Eu te disse, amiga. Não sou uma pessoa que presta. Esse meu lado escuro ainda sente-se revigorado ao ver as pessoas pagando pelas coisas que fizeram.
Ver o Nicolas me pedindo desculpas... Ver a Sônia perdendo a guarda do Lucas... Ver o ladrão apanhando até a boca sangrar... São coisas que esse meu lado de "Isaac sombrio" olha e diz de boca cheia: Bem feito.
Não sei se todas as pessoas têm isso. Vejo muitos pagando de santo e depois fazendo pior quando não são vistos. Também vejo muitos desejando morte de bandido, ou aplaudindo pessoas que fazem a justiça com as próprias mãos.
Por isso, amiga, acho que não sou o único humano podre na Terra que se faz de santo na frente dos outros. Se todos desejam se vingar às vezes, se todos sentem prazer em ver gente ruim se ferrando, então a humanidade como um todo é podre e vingativa. E eu sou apenas mais um no meio deles. Nem melhor, nem pior.
Ter visto o Nicolas daquele jeito ontem à noite fez eu perceber uma coisa: não estou sozinho no clube das sombras. Porque eu me achava, sim, uma aberração por querer ver as pessoas pagarem pelo que fizeram. Não que eu pense que tenho razão em desejar que as pessoas percam a guarda dos filhos ou sintam remorso. Não que eu ache que o Nicolas deva sofrer mais por ter me afastado e me usado. Mas... Sou normal em querer que sofram, pelo menos um pouco, por terem me causado alguma dor antes.
Egoísta, eu sei. Ando percebendo isso já faz um tempo. E sinto certa culpa por admitir tudo isso. Olhar para minha sombra faz eu querer me castigar, porque o lado que sente o prazer da vingança briga com o lado da empatia.
É uma mistura de sentimentos confusos, amiga. E por isso eu me sentia tão horrível. Principalmente em meio aos Belson, que não costumam demonstrar esse tipo de coisa.
Mas o Nicolas me mostrou que sou normal. E ver esse lado dele foi bom para mim.
Nós temos o livre arbítrio, e podemos fazer tudo o que der na telha: posso me afastar de meu namorado, traí-lo com uma doida, posso me arranhar... Enfim, posso fazer tudo o que eu tiver vontade na hora. E eu realmente sempre fiz o que me desse na telha. Um moleque irresponsável que, só por ter vinte anos, se achava "adulto".
Mas... Adulto o caralho. Agora sei disso. Eu até posso fazer tudo o que quiser (como uma criança ou um adolescente pensam), mas tenho que arcar com as consequências depois, sem a ajuda de ninguém. Sem ter minha mãe ou minha avó de escudos para me proteger. Eu pago pelas cagadas, ninguém mais.
Talvez isso seja o que significa ser adulto. Eu ter plena liberdade para plantar o que quiser, mas a responsabilidade de colher depois. E eu tenho colhido muita merda, amiga. Muita... E eu não aguento pagar pelas minhas merdas, essa é que é a verdade. Não aguento ver os resultados do que eu mesmo planto com essas impulsividades. E a onda que me atinge depois é sempre dolorosa, e demora para passar. Acabo me afogando, procurando alguém para responsabilizar, sendo que eu é que sou o responsável.
Sei que o problema do Nicolas com a Sônia não é diretamente minha culpa, mas muitas das coisas que estão acontecendo agora eu poderia ter evitado se não fosse tão imaturo.
Pff... É muito fácil escrever isso quando estou de cabeça fresca. É simples agir com consciência quando estou vivendo meu "lado iluminado".
O problema é conseguir ter essa consciência quando minha sombra desperta. Quando tudo o que me resta é a loucura. É por isso que muitas vezes falo que me odeio.
Ontem à noite, quando voltei para casa, tentei te escrever, amiga. Mas eu estava tão exausto e imundo que tudo o que fiz foi tomar banho e desabar em cima do notebook. Sim, em cima dele, porque minha intenção até era escrever para você, mas não consegui.
Talvez, se eu tivesse escrito este e-mail ontem, as coisas teriam ficado mais tensas. E isso porque, antes de dormir, meu lado ruim ainda estava gritando por conta de toda a dor que vi no Nicolas, e pela culpa de saber que tenho responsabilidade nisso (ao mesmo tempo em que sentia prazer em saber que ele também sentia culpa – sim, sou desprezível, mas um desprezível sincero).
Foi bom ter dormido e escrito isso somente neste sábado pela manhã. Afinal, quando o sol vem, nosso lado iluminado aflora com mais facilidade, e minha consciência também.
Bom, agora vou parar por aqui. Sinto como se minha cabeça estivesse girando por conta dos pensamentos, que não param. Daqui a pouco o Jonas e os gêmeos chegam para abrir a floricultura, e eu quero estar bem para o Nicolas.
Quero consertar, aos poucos, todas as coisas que meu lado sombra quebrou e estragou.
A começar por: eu mesmo.
Bye, amiga-irmã!
OS SEGREDOS DA CRIAÇÃO DOS PERSONAGENS:
bit.ly/Vilto-CriarPersonagens
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Só mais uma coisinha... Poderia responder as perguntas abaixo? Isso me ajuda a melhorar o trabalho...
1) Qual foi o sentimento predominante que sentiu ao ler este capítulo?
2) Como posso deixar este capítulo melhor?
3) Votaria neste capítulo? ^_^
Muito obrigada por acompanhar meu trabalho!
K I S S E S ~ K I S S E S
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