25 de dezembro, 2018 - Terça (22h39) → (parte 2 de 2)
Gente, desculpem eu não estar respondendo comentários... Dias corridos.
Boa leitura! =D
(continuação)
Doeu ver aquele descaso. Doeu de verdade. Parecia que eu estava vendo um replay maldito de minha infância, na época que eu ainda tinha a ilusão de ser amado por minha família.
A Dona Rosa falou algo no ouvido dela, e certamente foi algo carinhoso, porque a Sônia abaixou a cabeça e concordou, voltando para o quarto purulento de onde saiu. Não tem como eu saber o que a megera ouviu da mãe, mas creio ter sido algum tipo de mimo materno, pois quando deu as costas para nós parecia uma criança crescida em meio a um drama besta de quem teve um pedido egoísta atendido.
O Lucas a espiava nos braços do Nicolas, com os olhinhos molhados de chorar. Eu quis chorar junto com ele. De verdade.
Ver o Pinguinho chorar por ter recebido bronca de quem o ama é uma coisa bem diferente – chega quase a ser cômico às vezes. Mas ver aquela cena realmente fisgou um treco antigo e limboso dentro de mim, trazendo-o para a superfície onde o mal cheio chegava às narinas de meu eu consciente.
Toda a beleza física da Sônia, toda a recuperação por ela estar isenta de drogas há um tempo, foi afogada por aquele espírito nojento. Todos os traços que poderiam fazer dela uma mulher incrível foram relegados a uma lata de lixo. Nessa hora, enquanto a Dona Rosa levava um prato de comida para ela, soltei minha língua sem querer e murmurei, olhando para o Lucas encolhido.
"Ainda acho difícil imaginar como isso aconteceu..."
O Nicolas sabia do que eu estava falando, e pareceu um pouco constrangido. Por sorte, ninguém mais ouviu, e nosso Natal foi voltando a melhorar aos poucos. Não demorou muito para que o lucas estivesse distraído, brincando com o Claus num canto de terra.
Ele tem me impressionado. Parece que depois que começou a trabalhar no cemitério, teve só umas duas recaídas. De acordo com ele:
"Aquele lugar é siniiistro, mano... Me lembra a cada minuuuto pra onde eu vou se não tomar jeeeito, tá ligaaado? Não quero ir cedo nããão, brother... Quero ver o Lu aqui cresceeendo, tá ligado? Quero ensinar ele a andar de skaaate, mano... Viajar juuunto..."
Talvez eu esteja precisando fazer uma visita ao cemitério também, para lembrar que não vou estar aqui para sempre. A sorte é que o Marcus não foi enterrado em Vale do Ocaso, onde trabalhei, mas sim em Eloporto, onde os pais dele moram.
É estranho falar sobre isso sabendo que eu fui o responsável. É estranho demais. Mas acho que o mais estranho é meu sentimento com isso ser mais de alívio do que culpa. A única coisa negativa que sinto sobre o que fiz é medo. Medo de eu ter criado mais uma carga pra pagar na próxima encarnação, e não dar conta de tanta merda. Aliás, às vezes fico me perguntando o que fiz de tão ruim na vida passada para que a de agora tenha sido assim.
Meus pensamentos estavam mais ou menos nesse ritmo quando a Dona Rosa pediu:
"Vocês poderiam deixar o Lucas aqui na noite da virada de ano? É que nós sempre vamos a pé na rua de cima para ver os fogos que eles soltam na prainha..."
"Dá pra ver daqui?", perguntei, na ignorância. Só depois descobri que aquele ponto do bairro, onde ela mora, é alto e bem próximo da represa do centro de Vale do Ocaso. Por isso a rua acima da que ela mora é um ponto onde alguns moradores se reúnem para assistir à queima de fogos durante o réveillon.
Imaginar o Lucas passando a virada de ano com a Dona Rosa era perfeitamente normal. Mas o que me preocupou foi imaginar a megera por perto o tempo todo. Mesmo que ela se tranque no quarto para não lembrar que tem um filho, ainda me dá medo. Vai que a louca resolve ter uma recaída e volta àquela antiga violência? E se ela resolve descontar no Pinguinho? Eu não suportaria. Não suportaria.
Pelo jeito esse era um receio dos gêmeos também, pois se entreolharam com aquela cara de "humm, não sei". A Dona Rosa não é idiota, e percebeu. Ela sabe o histórico da própria filha.
"Não se preocupem... Ela está realmente melhor. E se voltar a acontecer aquelas cenas, eu faço o de sempre... Deixo o Lucas no meu quarto até ela se acalmar".
"Ééé, e vou estar aqui tambééém, belê? Não vou deixar nada acontecer ao Luquiiinha aqui!", acrescentou o Claus, do canto onde estava com o Pinguinho. Eles construíam montinhos de barro e finalizavam com pedrinhas, e Lucas garantiu que as formigas fariam daquilo suas moradas quando eles terminassem.
"Se vocês vão ficar de olho nela, tudo bem. Mas eu vou ligar a cada meia hora pra saber se não aconteceu nada estranho", respondeu o Nick.
"Não te culpo pela desconfiança", falou Dona Rosa, com um sorriso que só consigo descrever como: conformado. "Mas eu dou conta, não se preocupem. Afinal ele viveu aqui a vida toda até poucas semanas atrás, não é? Só quero passar a virada com meu neto..."
Não havia como contestar. Por isso, o Nicolas deixou combinado que na noite do dia trinta e um vamos levá-lo para ficar com a avó.
Era quase fim de tarde quando voltamos. A Sônia não voltou a dar as caras, ficando o tempo todo enfurnada no quarto para nos evitar. Prefiro assim. Já em casa, depois do banho peguei meu notebook e vim escrever debaixo de uma árvore, aqui no quintal. Estou usando a mesa de madeira que fica aqui, assim não preciso ficar com um computador quente no colo.
De onde estou dá para ver os pisca-pisca da árvore de Natal através das cortinas. É realmente muito bonito à noite. Daqui também consigo ver o Nicolas sentado na varanda, brincando com o Lucas. Não dá para ouvir o que estão conversando, mas parecem animados. Acho que ele escolheu ficar lá para ficar mais ou menos de olho em mim, porque eu sou um doido desequilibrado talvez tão psicótico quanto a Sônia (confesso que espero não ser tão ruim assim na visão dos gêmeos). Outra coisa que consigo ver daqui é uma aranha reconstruindo a teia. Essa hora elas são mais ativas, e é quando a gente descobre que não acabou com todas. Essa que estou vendo é particularmente grande. Acho que se eu a colocasse em minha mão, ocuparia toda a palma. Bicho do tinhoso, odeio aquelas oito patas.
Mas está longe o bastante. Enfim... Essas últimas horas do Natal me lembra que o ano está no fim. E a sensação deste fim de ano está diferente de todos os outros que já vivi. É estranho... Não sei se com você é assim, amiga, mas para mim os finais de ano sempre foram irrelevantes. Chegava o Natal e, como eu comentei, a religiosidade doentia de minha avó nos fazia ter horas a fio de orações enfadonhas – e dolorosas, porque meus joelhos gritavam naquele chão duro. Passávamos as viradas em nossas casas, sem festanças, apenas desejando roboticamente um bom ano, e vendo os fogos na televisão – coisa mais deprimente não há.
Mas agora estou entre pessoas tão diferentes de meus parentes que chega a ser desconcertante. Tem uma árvore toda decorada piscando em minha sala... Tem um homem gato e gostoso na minha varanda que, por acaso, é meu namorado... Tem o Lucas e a Jack... E o Jonas, único parente que me trata como ser humano.
E tem esse fim de ano. Agora. Esta virada que se aproxima enquanto converso com você, amiga. Um final de ano diferente de todos os que já vivi porque, além da boa companhia, desta vez tem uma coisa brotando aqui dentro... E juro para você que não é vontade de vomitar. Essa queimação no peito está germinando uma vontade de fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não seja apenas esperar a vida passar, como eu tenho feito nesses vinte anos de minha vidinha monótona e sombria.
Droga, eu não sei explicar o que é. Nem para o Nicolas falei ainda, amiga. E não sei bem quando isso surgiu. Acho que foi naquele dia que fomos no hospital, com a cena da menina agradecendo a psiquiatra...
Não, espera. Não foi isso.
Foi você.
Ah, como não lembrei disso antes? Aquele sonho em que você tira a pedra vermelha de meu peito e a transforma em cristal, lembra? Depois disso, a pedra se desmanchou em borboletas, que voaram até as pessoas. E as pessoas sorriram.
Quando lhe contei pela primeira vez, eu achava que estavam rindo de mim por deboche. Mas aquela cena no hospital ficou na minha cabeça, e acho que sei por que. Inclusive, naquele mesmo dia eu vi uma borboleta e fui burro o bastante para não me ligar. As pessoas do sonho, que receberam as borboletas, não estavam rindo de minha cara. Elas estavam felizes. Não é isso?
Desde aquele dia estou com essa coisa dentro de mim que não sei bem como definir. É como se tivesse algo bom dentro de uma caixa, e eu quisesse abrir para descobrir o que é, só que não consigo. Mas sei que tem algo bom lá dentro.
Aaahhh, que difícil de explicar!
E a aranha maldita resolveu se balançar na teia. Espera, vou mudar de lugar. Coisa horrorosa do Capiroto.
Pronto, estou na outra ponta da mesa. Longe da desgraça aranhesca. Tenho que fazer outra expedição de matança desses bichos. Deve ter sobrado um monte ainda, nas outras árvores.
Ok, respira.
Enfim! Interrupções à parte, preciso dizer que essa coisa dentro de mim não é vontade de fazer terapia, ok? Eu vou fazer, já aceitei que sou um doente da cabeça e vou fazer a porra da terapia. Mas ainda não é isso. Não é essa a coisa que está me causando essa sensação de euforia.
Nossa, que vontade de dar um grito! E não por causa da aranha, mas para tentar arrancar essa coisa daqui de dentro para enxergar qual formato tem. Me dá raiva não entender o que estou sentindo! É como se eu fosse capaz de escalar uma montanha num ímpeto só, de tanta energia acumulada. Isso faz algum sentido? É como se eu sentisse que você, naquele sonho, estivesse me mostrando algum tipo de senso de propósito. Não sei...
Propósito. Tem a ver com isso, não tem? Espera, vou procurar essa coisa no dicionário.
Substantivo masculino, blá, blá, blá... Isso não me interessa.
Aqui, achei: Grande vontade de realizar ou de alcançar alguma coisa. Desígnio.
É isso. Aquele sonho que tive com você, somado àquela cena da menina que agradeceu a psiquiatra, deve estar me despertando essa coisa. Essa grande vontade de realizar alguma coisa que possa fazer as pessoas se sentirem daquele jeito.
Eu não quero ser apenas "o Isaac" para sempre. Não quero ser apenas esse moleque gótico e depressivo buscando ficar em paz num canto. Você deve estar me achando um idiota, agora. Aliás, vou reformular a frase: você deve estar me achando um idiota outra vez.
Ah, que euforia estranha! Não sei se é o êxtase por ter enxergado a ponta de um iceberg, ou se é de frustração por não saber do que se trata o resto que está abaixo d'água. Você tem noção do que é passar sua vida toda achando que a existência vai ser um marasmo de infelicidade até seus ossos virarem pó? Tem noção do que é olhar para as pessoas que fazem "algo da vida" e me sentir um merda por sequer saber se presto para alguma coisa?
Pois eu me senti assim sempre! Sempre, sempre! E eu estava acostumado com isso!
Até agora.
Desculpe, amiga. Estou vomitando esse monte de coisa neste e-mail só porque estou tendo uma epifania das mais loucas. E não tomei nada alcoólico, nem usei nenhuma porcaria. Eu só... Ah, sei lá. Tenho que me acalmar.
Eu não sabia que as epifanias davam essa sensação esquisita. Não tinha a menor ideia. E o mais frustrante é enxergar apenas uma ponta da coisa toda.
Preciso pesquisar, amiga. Vou me despedir, e ler tudo o que eu conseguir sobre interpretação de sonhos. Talvez eu até fale com a Jaqueline, mas eu realmente quero algo menos místico, e mais pé no chão. Tenho que entender aquelas borboletinhas, caralho! Aaahhh, alguém me tira deste notebook antes que eu esgote a paciência da única irmã de alma que me suporta!
Boa noite (eu estou bem, juro)!
KISSES~KISSES
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