21 de Janeiro, 2019 - Segunda (17h43)


Obrigada por ainda acompanhar nosso amigo Isaac ^_^



21 de Janeiro, 2019 – Segunda (17h43)


De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: Inocente... Aos olhos dos humanos


Boa tarde, amiga. Ah, estou tão cansado... Não fisicamente, mas sim mentalmente. Minha vontade é de ter uma amnésia e esquecer a maior parte de tudo o que aconteceu nos últimos quatro meses...

Ter que ficar revisitando essas memórias, contando e repetindo tudo, suga minhas energias a ponto de eu querer apagar por meses.

É que hoje de manhã fui na polícia, contar o que realmente aconteceu naquela noite. Revelar que, depois daquilo, eu empurrei o Marcus sabendo que o caminhão estava passando.

Meu primo ficou cuidando da floricultura. O Lucas, que ainda está de férias da escolinha, deixamos com Dona Rosa, pois a Sônia estava passeando com um velho rico e não teria como encher o saco. Na delegacia foram comigo o Nicolas, a Jaqueline e, para meu azar, minha avó. Ela não sabia muito bem sobre essa história, e acabou pegando um detalhe aqui e ali durante minhas conversas com os Belson. Fez questão de ir, e jurou fazer um barraco na rua se não atendêssemos essa exigência dela. Me incomoda essa chantagem lembrar tanto de meu genitor. Afinal, o fruto não cai longe do pé (e isso me preocupa, já que tenho genes do desgraçado).

Fui no banco da frente, com o Nicolas. No banco de trás estava a Jack com minha avó, perguntando detalhes sobre o que aconteceu naquela noite, e no fim tive que falar que fui estuprado.

"Que? Você foi estrupado?", ela perguntou, trocando o local do R dessa palavra que já é abominável pronunciada corretamente. Se pronunciada errada então, piora. "Mas esse tipo de coisa só acontece com mulher", ela falou.

"Não, vó... Não é só com mulher..."

De canto de olho, percebi que o Nicolas estava com a cara fechada e sobrancelhas caídas. Tenho certeza de que ele estava lembrando do que viu naquela noite. A cena grotesca de um cara em cima de mim, com arma apontada para minha cabeça enquanto... Você sabe.

Tento respirar fundo várias vezes enquanto escrevo isso, mas não dá. Fico chorando que nem idiota. A sorte é que me tranquei no carro pra escrever esse e-mail para você. Não quero nenhum Belson (nem minha avó) me vendo assim, chorando.

Ok, onde parei? Ah, sim. Chegamos na delegacia e lá nos encontramos com a Lílian, advogada. Saber que ela estava lá para ajudar era um alívio. Falamos com uma policial que já estava à par do caso. Os gêmeos olharam para mim, querendo saber se eu falaria ou se deixaria a tarefa para eles ou para a Lílian. Minha avó parecia ainda tentar entender como é que um homem poderia ser abusado sexualmente. Não sei se chamo isso de inocência ou só de ignorância mesmo.

Dei um passo à frente, mas minhas mãos tremiam.

"Quero acrescentar uma coisa ao meu depoimento daquela noite..."

A policial, que sabia o que havia acontecido comigo, colocou a mão em meu ombro, quase com olhar de pena.

"Ok, venham comigo. Vou pegar os papéis e um gravador, tudo bem pra você?"

Concordei e a seguimos até um escritório da delegacia. Assim que entramos, junto com minha avó, os Belson e a advogada, a porta foi fechada.

O tempo em que ela mexia nos papéis para encontrar meu caso foi o bastante para que meu nervosismo aumentasse. Parecia uma eternidade... Abre armário, fecha armário, abre gaveta, mexe mas pastas, folheia processos... Ah, que ansiedade da porra! O Nicolas deve ter notado, porque pegou em minha mão e disse:

"Ei, a gente tá aqui com você... Vai ficar tudo bem"

Eu olhei para os olhos azuis. Havia tristeza ali, mas as mãos dele estavam firmes o bastante para me passarem segurança.

Assim que a policial sentou na cadeira dela, do outro lado da mesa, colocou um gravador sobre a mesa, e apertou o botão vermelho. Falou a data, hora, meu nome, e pediu que eu confirmasse essas informações. Me lembrei daquela frase que vejo em filmes, de que tudo o que o criminoso falar poderá ser usado contra ele. A policial disse que eu poderia começar quando quisesse.

"Eu... Eu... Ahh...". Minhas mãos tremiam, mesmo sendo seguradas pelo Nicolas. "Fui eu... Não foi um acidente... Fui... Eu..."

A cena voltou à minha mente. O Marcus à minha frente, a expressão assustadora na cara dele, lambendo os lábios. A calça abaixada, o membro nojento apontando para mim. Eu me aproximando dele e o empurrando antes que fosse agarrado e estuprado novamente.

Comecei a hiperventilar. Lembrar disso tudo, de forma tão nítida, não foi legal. Era pânico. Parecia que tudo iria acontecer novamente, mesmo que minha lógica gritasse que era impossível.

Abri os olhos, observei tudo à minha volta. Minha avó fez o sinal da cruz, e logo me perguntei por que raios deixaram que ela entrasse junto.

"Não fiz porque quis, eu juro! Eu não queria que tivesse acabado assim! Eu não sou um assassino, eu não sou..."

Ouvi a Lílian pedindo calma, pois eu provavelmente estava falando merda, daquelas que poderiam ser usadas contra mim. Fiquei zonzo e a vista começou a escurecer. Depois disso, perdi a consciência. Desmaiei na cadeira do escritório da delegacia.

Foi uma apagada rápida, mas a sensação foi estranha, como se minha alma tivesse viajado para outro mundo por dias. Quando voltei a mim, eu ainda estava na cadeira, com todos os rostos à minha volta enquanto a Lílian abanava meu rosto com os papéis do caso. Dessa vez tinha um policial idoso que antes não estava na sala. Ele estava medindo minha pressão, segurando meu pulso tão forte que minha mão estava começando a mudar de cor. Lembro de ele falar que eu estava normalizando.

"Tá bem, garoto?", ele perguntou. "Me contaram que você apagou quando começou o depoimento. Fica tranquilo, tá? Só bota pra fora o que tiver que botar... Ah, eu tô falando do depoimento. Se quiser vomitar, o banheiro é a segunda porta à esquerda."

Eu ri. Não sei se era a intenção daquele senhor policial fazer graça, mas dei uma risada fraca. Em seguida, quase como se minha represa emocional estourasse, comecei a chorar. Olhei para o gravador. O botão vermelho ainda estava aceso.

"Eu empurrei o Marcus... Naquela noite, eu achei que ele fosse fazer mais alguma coisa com a gente. Ele estava com uma arma, então eu empurrei ele pra estrada. Eu vi o caminhão vindo. Eu vi... E mesmo assim empurrei ele... Me desculpa!"

A Lílian colocou a mão em meu ombro, e tomei isso quase como um conselho para eu calar a boca. Tentei engolir o choro, mas foi difícil. Ela continuou a conversa com a policial, falando alguns termos de advogado que meu cérebro pastoso e lerdo não captou.

"O que meu cliente quer dizer é que..." começou ela, falando termos difíceis e falando em auto-defesa. De vez em quando ela pedia uma confirmação minha ou do Nicolas, e eventualmente a coisa chegou em minha avó.

"O Marcus foi até sua casa, então?"

Perguntou a policial, mostrando uma foto três por quatro dele.

"Foi, foi sim. Sujeito mal encarado. Foi falar com meu filho e saíram de carro. Certeza que foram pro bar do Capiró. Meu filho até sumiu uns dias, aquele miserável, nem pra tomar vergonha de me avisar. Por isso que eu falo pra esses vagabundos irem pra igreja... Meu filho imprestável se envolve com bandido, meu neto é possuído pelo capeta, se engraça com macho, e tem essa coisa de estrupo e assassinato, aí. Coisa do capeta, mesmo. E agora tem até policial mulher, onde já se viu? Esse mundo tá de cabeça pra baixo. Daqui a pouco vai ter macho querendo trabalhar de costureira, também..."

No fim das contas, meu depoimento se estendeu para minha avó, que destilou todos os preconceitos dela. A policial ouviu tudo com as sobrancelhas lá no alto, obviamente chocada. Pela cara que ela fazia, dava a impressão que ela fosse dar algum sermão sobre sexismo e fanatismo religioso, mas isso não aconteceu. A policial apenas perguntou mais detalhes sobre meu genitor, e pediu o endereço dele, para que eles fizessem novas perguntas para descobrir se ele era vítima ou cúmplice no caso.

Algumas assinaturas e formalidades depois, saímos da delegacia. A Lílian conseguiu fazer com que a coisa toda não passasse de legítima defesa feita num momento de vulnerabilidade psicológica de minha parte. No depoimento entrou não apenas relatos daquela noite horrenda, mas de outras vezes que o Marcus nos ameaçou, incluindo o ataque encomendado por ele que me fez apagar por dias num hospital, me deixando cicatrizes no rosto e na barriga.

Depois dessa habilidade toda de nossa advogada, até eu estou começando a me perdoar pelo que fiz.

Não sei, é estranho demais saber que isso tudo aconteceu. Lembrar do corpo dele deformado depois do atropelamento, cheio de sangue e tripas espalhadas. Foi tão grotesco e feio que me dá arrepios. Nunca em minha vida eu achei que veria um corpo humano daquela maneira em minha frente, e pior: tendo sido causado por mim.

Ah, que inferno! Isso é de zoar a mente de qualquer um...

Enfim. Fui considerado inocente, e meu estado naquele momento, de incapacidade racional (algo assim), ajudou na conclusão de minha inocência.

Ao menos, na justiça dos seres humanos. Porque ainda acho que Deus vai me cobrar um dia. E se Ele não o fizer, eu mesmo vou guardar essa culpa para sempre. Talvez um dia eu possa compensar, ajudando outras pessoas a ter um psicológico menos fodido que o meu.

Após nos despedirmos da Lílian, minha cunhada sugeriu de comermos algo diferente numa lanchonete, antes de voltarmos para casa. Fomos os quatro (gêmeos, eu e minha avó) num lugar perto da represa. Eu até que visitei a prainha várias vezes, mas naquela lanchonete nunca entrei.

Assim que escolhemos a mesa fui tomado de uma vertigem, mas não falei nada para ninguém.

"Zak... Tudo bem?"

Mas o Nicolas percebeu e colocou a mão em minha testa. Eu não estava com febre.

"Tô legal. Eu só... Ah, tem pensamentos demais na minha cabeça"

"Dáki, quer voltar pra casa? A gente vem aqui outro dia...", sugeriu a Jaqueline, segurando em minha mão.

Respirei fundo, olhei em volta. O lugar era bonito, e eu não queria voltar ainda... Minha avó parecia preocupada também, mas não sei dizer se era por amor ao neto, ou por medo do tinhoso que ela crê viver em mim. Mas, que seja. Foda-se.

"Não, vamos pedir", falei, pegando o cardápio e passando a vista pelas coisas mais baratas.

Optei por uma porção de batatas fritas, enquanto que a Jaqueline pediu – para todos – uma travessa de bife à parmegiana com arroz e salada de rúcula. Pela expressão de minha avó, sei que ela nunca ouviu falar nisso, mas às vezes ela fazia bifes empanados com queijo e molho em casa. Ela só não sabia que tinha esse nome.

Alguns segundos de silêncio depois que o garçom saiu com os pedidos anotados, e finalmente minha avó soltou o que devia estar guardando há horas:

"Vocês dois não têm vergonha de fazer isso em público?"

O Nicolas, que segurava minha mão, elevou as sobrancelhas.

"Isso o que?"

"Na delegacia, vocês se pegando. E agora aqui, na frente de todo mundo! Estou morrendo de vergonha! Me leva de volta, Jaqueline."

Eu estava com olhar de tédio. Nada naquele discurso foi surpresa para mim. Já o Nicolas olhou para nossas mãos, que estavam entrelaçadas até os dedos.

"Você fala disso aqui? Hãã, qual o problema? Ele é meu namorado". A palavra mágica, de um homem dizendo que outro homem é namorado dele, fez minha avó ter um rápido espasmo de arrepios. "E nós não estamos nos pegando. Só estou segurando a mão dele..."

"E onde já se viu dois macho fazendo isso na frente de todo mundo?"

Suspirei e olhei para ele. Havia rugas entre suas sobrancelhas. Sussurrei:

"Nick, não adianta argumentar com ela"

"Eu estive observando esses dias", continuou minha avó. "Você parece um bom moço, Nicolas. É um homem charmoso, e bom pai pro menino Lucas. É trabalhador e gentil... Devia arranjar uma boa moça pra casar, ter uma vida Cristã que possa orgulhar a Deus! E não ficar fazendo... Essas coisas com meu neto. E você também, Isaac. Devia estar atrás de rabo de saia nessa idade, pensando em ter seu próprio filho! A Hellen sempre gostou de você, sabe disso".

Sim, claro. Ela me ama como o principal alvo de todas as ofensas dela. Perfeita esposa. Mas não falei nada. Quem replicou foi meu namorado.

"Eu sou Cristão também", começo ele. "E Jesus nunca ensinou sobre preconceito. Olha... Eu realmente me sinto muito bem com o Isaac, e não consigo acreditar que Deus iria achar isso ruim. Ele é um Pai amoroso, não é? O único motivo de eu estar junto de seu neto é porque o amo de verdade".

Ouvir essa declaração repentina fez meu coração arder. Apertei ainda mais a mão de Nicolas, como uma forma de mostrar a ele, sem que ninguém mais notasse, que fiquei feliz de ouvir aquilo. Mas acho que meus olhos marejados entregaram esse sentimento. Ao menos para a Jack, que apenas assistia calada.

O fluxo da conversa foi momentaneamente cortado pela comida que chegou. Colocamos no prato em silêncio, e a primeira a falar foi a Jaqueline.

"Vó, eu e meu irmão crescemos numa família espírita, então temos umas ideias um pouco diferentes sobre a alma das pessoas. É um pouco complexo pra explicar aqui, mas... O que importa, é que somos todos filhos de Deus, não é? O meu irmão e o Dáki não estão fazendo nada errado se realmente se amam. É nisso que a gente acredita".

Minha avó olhou da Jack para o Nicolas, e depois para mim. Abaixou a cabeça, cutucou a carne com o garfo, e murmurou:

"Talvez eu esteja velha demais..."

E começou a comer. A sensação de dando garfadas na carne sem falar nada, com as mãos ligeiramente trêmulas, foi um pouco desconfortável de início. Tanto eu quanto os Belson sabemos que não adianta querer convencê-la de uma hora para outra de algo tão fora das crenças dela. Nunca conversei com minha avó sobre o passado ou a infância que ela teve, mas tenho certeza que deve ter sido algo cheio de regras dolorosas. Afinal, os cães mais agressivos são os que mais sofreram maus tratos.

Esse é o único motivo de eu apenas respirar fundo e deixar para lá as coisas que ela diz.

E nesse momento, enquanto o único som que se ouvia em nossa mesa era o som dos talheres no prato, ouvi algo inacreditável vindo dela:

"Ao menos, vocês parecem felizes..."

Eu ia colocar uma garfada de arroz na boca, mas não o fiz. Em vez disso, estiquei minha mão e toquei o braço de minha avó com a ponta dos dedos, fazendo um ligeiro carinho:

"A gente tá, vó... A gente tá, sim!"

Não tinha mais como esconder meus olhos marejados. Já ela, tinha olhar de quem se conformou e desistiu de enfrentar.

"Então para de chorar e come"

Fiz o que ela sugeriu, enquanto a Jaqueline emendou assuntos sobre a floricultura, e coisas que desviasse do assunto "relacionamentos". Ela está tentando convencê-la de abrir uma mini confecção num dos quartos vagos da Casa das Flores, onde ela mora agora. Tem várias lojas de roupas na região precisando de costureiras com experiência, e isso posso dizer que minha avó tem. Se ela aceitar isso, poderá ganhar uma renda extra, além de ocupar a mente com algo melhor que televisão e as fofocas maldosas de Dona Maionese.

É estranho ter minha avó morando tão perto de mim depois de eu ter me acostumado com a ideia de estar longe dela. O Pântano dos Mosquitos virou meu refúgio, e tê-la tão perto quase abalou essa minha segurança espiritual, mas a realidade está sendo menos ruim do que eu previa. Quando ela está longe de meu genitor parece que mesmo os preconceitos dela são mais facilmente diluíveis (se é que essa palavra existe). Não que eles desapareçam, mas ela fica mais maleável a coisas diferentes. O filho imprestável que ela deixou na outra casa parece trazer o pior dela à tona, não sei.

Se eu nunca mais ver o traste, está ótimo.

E por falar nele, pelo jeito o genitor vai receber uma visita da polícia. Agora que completei meu depoimento ele não tem mais nenhum elemento de chantagem contra mim. Ao menos, acho que não.

Aquele homem tem a cabeça muito fraca e está sempre bêbado. Por isso não deve ter sido nem um pouco difícil pro Marcus adentrar a cabeça do desgraçado e convencê-lo de que seria uma boa ideia manter meu namorado de refém para cobrar um dinheiro inexistente. O que ele não imaginava era que aquilo tudo ia acontecer.

Eu odeio o cara que me gerou, mas arrisco dizer que se ele soubesse da verdadeira intenção do Marcus, ele não teria ido junto.

Posso estar sendo otimista demais, mas a verdade é que quero acreditar que meu genitor não seria tão nojento a ponto de apoiar um estupro.

Ah, merda. Odeio escrever essa palavra. Odeio, odeio, odeio!

Vou ficar só aguardando alguma mensagem da Hellen, que ficou de avisar sobre qualquer novidade por lá.

Bom, de onde estou escrevendo esse e-mail, no carro do Nick, dá pra ver que o Lucas está me procurando. Eu avisei o Nicolas que viria aqui, por isso ele não está preocupado. Estou vendo-o sentado na escada da varanda.

Ah, ele acabou de apontar para cá. Deve estar dizendo ao Pinguinho onde estou.

Ok, hora de finalizar aqui. Voltarei para contar novidades, amiga.

O sol está perto de se por, então já vou dizer boa noite. Fique bem.






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KISSES KISSES

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