19 de janeiro, 2019 - Sábado (20h54) → PARTE 1 de 2


19 de janeiro, 2019 – Sábado (20h54)  Parte 1 de 2


De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: Operação resgate


A coisa toda aconteceu ontem, na sexta-feira. Fomos eu, os gêmeos e meu primo até minha cidade natal. O Lucas acabou ficando com a vizinha, Maria Onésia, pois a avó dele disse que a Sônia estava meio arisca aqueles dias, e que seria melhor o Pinguinho não ver isso.

A Jaqueline já conhecia lá, pois às vezes visitava os pais do noivo (meus tios com quem quase nem tenho contato). Mas para o Nicolas era novidade.

"Não tenha expectativas", falei, enquanto virávamos as esquinas cinzentas e com poucas árvores. "Não tem nada de mais nesse fim de mundo...".

As casas perto do bairro onde moro são todas bem antigas, com pinturas descascadas e cheias de rachaduras. Muitas sequer têm espaço para carros nas garagens, tendo somente varandas minúsculas que levam direto para uma porta de sala. A casa onde morei é ligeiramente melhor: tem portão alto e um espaço pequeno de quintal.

"É aqui?", ele perguntou, quando Jonas estacionou. Pela falta de expressão dele, não tenho certeza de qual foi sua primeira impressão. Mas duvido ter sido das melhores, já que a parede externa da casa tem rachaduras, e a umidade constante fazia com que um limbo subisse do chão até metade das paredes imundas.

Respirei fundo. A ultima vez que eu havia ido até lá foi quando eu estava fugindo de mim mesmo por ter feito besteira com a Hellen. E por falar nela, antes de chamar por minha avó dei uma rápida olhada na casa do outro lado da rua, onde a Hellen mora. Nenhum sinal de vida. "Melhor assim", pensei.

Meu primo, encarregado de agir como espião secreto de meu progenitor, despediu-se de nós e foi a pé até o bar mais próximo, onde certamente o traste estaria.

A Jack olhou no celular e falou baixinho: "Logo o cara da mudança estará aqui. Temos até lá para convencê-la".

"Ah, que ótimo" falei, tentando não parecer tão sarcástico.

Após chamar minha avó, ela veio dos fundos remexendo o molho de chaves. Percebi no olhar dela certo desconforto ao perceber que a visita não era somente eu e Jaqueline.

"Não sabia que ele ia vir também", disse, encarando-o enquanto abria o cadeado.

Minha cunhada entrou primeiro, cumprimentando minha avó, que a recebeu muito bem. Em seguida, quando fui entrar, ela pediu:

"Faça o sinal da cruz..."

Aquele fel de indignação ardeu em minhas veias, mas não discuti. Se eu oferecesse resistência, ou questionasse as superstições dela, nossa missão poderia falhar. Com o polegar direito, tracei uma cruz na testa, uma na boca e outra no peito, enquanto entoava para ela ouvir: "Pelo sinal da Santa Cruz, livra-me Deus, Nosso Senhor, de nossos inimigos". E pela forma como ela olhou para meu namorado ficou subentendido que ele deveria fazer também. Como ele cresceu em família espírita, não conhecia o gesto católico. Ensinei-o rapidamente, ele fez, e entramos enquanto minha avó fazia o próprio sinal da cruz, beijando o polegar ao final.

"Deus sabe que sou inocente", ela sussurrou.

A Jaqueline, que estava ao lado, ouviu e colocou uma das mãos no ombro dela.

"Ele sabe", ela disse. "Pode deixar que eu assumo qualquer bronca que Deus lhe der, ok?"

Puxei ar para os pulmões, enchendo-os ao máximo possível, e soltei devagar, sem fazer barulho. Se ela me ouvisse bufar, acharia que estou fazendo uma "reclamação velada". E teria toda a razão, pois era.

Os minutos seguintes foi de um teatro social mais artificial que chocolate glicerinado, onde todos fingem estar à vontade com a situação. Puxamos assuntos irrelevantes sobre notícias da televisão e falamos sobre os biscoitos que minha avó preparou – essa parte da conversa interessou particularmente ao Nicolas, que já pegou a receita e os macetes que apenas uma avó sabe.

"A gente perdeu nossa avó muito cedo", falou o Nicolas, terminando de anotar a receita no celular. "Não tive muitas chances de conversar com ela como estamos fazendo agora".

"Verdade", emendou a Jack. "Você bem que podia ser como uma avó pra gente, né?"

Eu olhei dos gêmeos para ela. Minha avó colocou uma mão no peito e a outra no ombro de minha cunhada.

"Oh, minha querida..."

Fiquei sinceramente em dúvida se essa era uma das muitas táticas dos Belson para conquistar corações, ou se ela de fato estava sendo emotiva. Pelo que conheço dos dois, eu diria que era um pouco de cada.

Em seguida, contaram um pouco sobre como perderam o pai e a mãe de uma só vez no acidente do raio, e de como foi difícil nos primeiros meses de luto. Estávamos sentados em roda numa mesinha pequena, o que facilitava para que minha avó pegasse nas mãos de minha cunhada, acariciando-as com delicadeza.

"A casa dos meus pais está vazia", continuou a Jack. "Como estamos na casa do Dáki, e como depois do casamento eu vou morar com o Jonas, não tem quem more na velha casa de meus pais. Eu conversei com meu irmão, e decidimos que queríamos alguém próximo morando lá. Alguém que poderia ser como uma parte de nossa família..."

O Nicolas não falava muito. Isso foi uma combinação prévia nossa, já que a afeição de minha avó é toda da Jack. Mas a todo o momento ele concordava com as palavras da irmã, enfatizando a verdade nas coisas que ela falava.

Em meu interior, eu estava quase rindo da situação, com certa pena de minha avó. Falar "não" para a Jaqueline, principalmente quando ela está decidida a convencer, é quase impossível. E com a chantagem emocional acoplada, a bomba foi forte.

"Ah, querida... Com você falando assim...", começou minha avó, visivelmente tocada pela história e pelas palavras de Jack. "Mas eu não posso deixar essa casa. Era de meu falecido marido, e se eu não cuidar das coisas aqui..."

"A casa continuará sendo sua, vó..."

Eu senti a ousaria da Jack ao chamá-la de "vó". Fiquei na minha, levantando bandeiras de torcida internamente e mantendo a cara de poker.

"E o seu filho vai continuar aqui pra cuidar do lugar", completou a Jack.

Nessa hora minha avó riu de leve.

"Ah, não. Ele não cuida. Infelizmente o diabo tentou ele pro lado da bebida, e é apenas nisso que aquele vagabundo pensa. Não vai cuidar da casa como eu".

"Como a senhora, realmente não. Mas ele precisa de uma chance. Dá esse voto de confiança pro seu filho. Sem falar que ele precisa aprender a se virar sozinho, né? Até quando ele vai depender da senhora, vó? Com a gente, poderemos ajudar você com as coisas da casa. E tem outra coisa... Seu filho tem estado fora de si nos últimos dias, não é? Não queremos que se machuque por causa do descontrole dele. E lá você pode levar suas máquinas de costura, talvez até abrir uma pequena confecçao pra fazer serviço pra loja de roupa... Essa casa aqui vai continuar sendo sua, vó. Faz de conta que você vai estar tirando umas férias, que tal?"

Aquela senhora teimosa e cheia de preconceitos deu um sorrisinho. Em algum lugar de meu ser consegui vislumbrar uma parcela do que ela seria se não fosse a mordaça da superstição religiosa e da opressão causada pelo próprio filho. Havia algo de belo naquele riso de esperança, e naquele milésimo de segundo tive essa certeza.

"Ah, minha filha... Essas coisas de mudança não é rápido assim, sabe? Leva tempo. Eu não tenho dinheiro pra pagar essas coisas, não".

Foi engraçado: tanto os Belson quanto eu respiramos fundo ao mesmo tempo. A Jack aproveitou a oportunidade para perguntar, quase como uma criança empolgada para ir ao parque:

"Mas se desse pra se mudar agora, como num passe de mágica... A senhora iria?"

Eu não sei se foi o brilho nos olhos da Jack, ou se foi a real vontade de minha avó, mas o fato é que ela abriu o sorriso antes tímido e falou:

"Ah, aí eu iria, né!"

E gargalhou, como se tivesse acabado de falar um absurdo. Mas nós sabíamos que não era absurdo. Nos entreolhamos com aquela sensação de vitória enquanto a Jack suspirava aliviada, encostando na cadeira. Com o maior sorriso do mundo, a Jack falou:

"Então vamos fazer as malas, porque você vai passear conosco, vó!"

A Jack levantou, puxou minha avó pela mão e começou a dançar sem música, fazendo minha avó rir enquanto tentava falar.

"Do que você está falando? Essas coisas custam caro!"

Em seguida foi explicado que o caminhão de mudança estava do lado de fora, aguardando. Isso fez com que minha avó perdesse aquela leveza inicial. Percebeu que era sério, então o medo se apossou dela.

"Não, não... Não posso fazer isso!", e olhou para o altar, cheio de pequenos santinhos e com a imagem de Jesus e Nossa Senhora.


(... continua).




Com todo o carinho,


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