19.08.18 - Domingo


De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: Um "eu" endemoniado... Um encontro marcado!


Boa noite, amiga! Você não adivinharia nem em dez chances quem foi que acabou de me ligar... =/

Eu estava terminando de arrumar a cozinha, e o Nicolas estava lá em cima, em meu quarto, estudando para algumas provas que vai ter nessa terceira semana de aulas. Quando o telefone tocou, vi que era minha avó. Mãe de meu pai...

Sabe quando dá um embrulho no estômago antes de fazer algo? Bom, eu tinha lá meu pressentimento... E quer saber qual é meu problema com minha avó, e que torna tudo mais difícil? É que apesar dos conceitos retrógrados, ela realmente tem boas intenções comigo... Não é como meu pai, que preferiria me ver morto e que odeia abertamente o fato de eu ter nascido.

Respirei fundo, e atendi.

Ela me cumprimentou carinhosamente e perguntou como eu estava... Começou a falar um pouco sobre ela, que a vida está difícil, de como ela tem que penar para ir sozinha às consultas no posto de saúde porque não tem quem a leve (mas cá entre nós: eu a conheço o bastante para dizer que ela é orgulhosa demais para pedir ajuda, também), e outras fofocas de parentes que não vejo há mais de dois anos, e cujas rotinas não me interessam nem um pouco.

E depois veio o assunto que minha avó realmente queria. O verdadeiro motivo de ela ter me ligado. Ela deve ter pego alguma pista aqui e ali com minha mãe, pois descobriu que eu fui "contaminado pelo capeta". Começou a me perguntar se eu tenho ido à igreja (isso é essencial para ela) e ficou decepcionada quando eu disse que não. E ela começou a me dizer que é importante, porque eu preciso salvar minha alma, e que "essas coisas" que aconteceram comigo são sinais de que o mal está perto. E quando eu perguntei "Do que a senhora está falando, vó?", ela disse: "Essa coisa de homossexualismo, que eu fiquei sabendo que você pegou".

Pois é, ela usou o sufixo "ISMO", como se a homossexualidade fosse uma doença.

E ela começou a chorar no telefone. Nossa... Minha vontade era de desligar o celular e jogar meu chip na fogueira para nunca mais ser encontrado. Mas fiquei um tempo quieto, ouvindo... Ela implorou para que eu voltasse. Disse que liberaria o quartinho dos fundos da casa dela para que eu ficasse lá (ela sabe que eu não me dou bem com meus pais).

Se essa oferta tivesse sido há uns quatro meses (antes de eu tomar a decisão de me mudar para cá), eu talvez tivesse aceitado. Nessa época eu ainda estava encurralado pelos meus próprios receios sobre ser gay, sobre não ter onde cair morto, sobre não ter mais amigos no mundo, e todo o resto.

Mas agora? Hahahaha ← riso sarcástico.

Bom, não que agora eu seja um cara resolvido, rico e popular, mas... As coisas mudaram para mim. E mudaram bastante.

Eu tentei explicar para ela que "essa coisa" não era ruim, que eu estava feliz, que não era do demônio, mas não adiantou. Ela tem uma crença forte e enraizada demais. Não serei eu, um "pivete" de 20 anos, que vai fazer a cabeça de uma senhora mudar. E parecia que quanto mais eu tentava explicar (com a voz mais afável que consegui fazer ao telefone), mais ela achava que eu era o anticristo encarnado. E mais ela chorava, na certeza de que minha alma já foi consumida pelo Satanás.

Em meio a essa conversa dolorosa (pois ela é a única pessoa de minha familia com quem eu me dava bem), o Nicolas parou na metade da escada e se apoiou no corrimão, me olhando preocupado. Acho que ele notou, pela minha voz, que eu estava prestes a chorar (mas segurei). Fiz sinal para ele de que estava "tudo bem", mas ele continuou descendo os degraus, e parou na minha frente enquanto eu ouvia as ultimas palavras de minha avó, pedindo para que eu fosse até a casa dela. No fim, falei: "Se a senhora quisesse apenas me ver, eu iria essa semana mesmo, vó... Mas eu não vou aí para que me leve num exorcismo".

Agora essa frase pode até parecer engraçada. Mas na hora aquilo doía como se tivesse um ferro em chamas entrando em meu coração. Eu desliguei (com ela chorando, dizendo que o neto dela estava perdido para o caminho errado), e desabei na cadeira.

O Nicolas veio rápido e se agachou ao meu lado. Ficamos nos olhando por um tempo. Foram alguns segundos bem longos, em silêncio. Ele tirou uma mecha de cabelo de cima de meu olho. "Quer conversar?", perguntou. Fiz que "não" com a cabeça. Pelas coisas que eu havia falado ao telefone, ele já havia compreendido o teor da conversa. E não falamos mais nada. Ele pegou minha mão, e deu um beijo em meus dedos. "Vou pegar meus cadernos, e estudar aqui... Pode ser?".

O sorriso que dei foi bem murcho, mas consegui expressar nele minha gratidão. Eu não queria atrapalhá-lo, mas saber que se preocupa dessa maneira é realmente como uma cura para essa dor ruim que o telefonema trouxe. E assim que ele veio com o material de estudo, peguei meu notebook e me sentei próximo (de forma que ele não pudesse ver o monitor), e comecei a escrever...

E aqui estou.

De vez em quando ele me olha, e depois volta sua atenção para os estudos. Como se estivesse me checando: "Ele está bem? Ah, sim, então voltarei a estudar..."; "E agora, como ele está? Ah, parece concentrado em escrever... Bom, que bom". Relaxa, isso são só ideias mirabolantes de minha cabeça – mas é o que as espiadas dele dão a entender.

...

Ufa. Agora que falei sobre o que me incomodava, vou contar a respeito daquilo que você deve estar aguardando... O cupom.

Bem, ontem pela manhã era o prazo para o Nicolas abrir o envelope que dei na sexta-feira, lembra? O que aconteceu foi o seguinte: eu demorei para dormir (fiquei rolando na cama, ansioso, e acabei jogando StarCraft para distrair... e isso durou até umas 4h da madrugada), e o que me acordou foi a voz do Nicolas dizendo "Bom dia, dorminhoco".

É verdade que ele não havia dormido comigo... Então você se pergunta: "Então o que ele estava fazendo em seu quarto, sentado em sua cama?". Acontece que, como ele tem as cópias das chaves, veio para cá assim que abriu o envelope. E como eu dormi com a porta aberta, ele entrou.

Abrir os olhos e vê-lo me olhando foi, ao mesmo tempo, maravilhoso e constrangedor. Quando a gente acorda junto é diferente, porque estamos ambos amassados, despenteados, com os olhos sujos e sonolentos (e com aquele hálito matinal básico). Mas ele já tinha tomado banho, escovado os dentes, e estava com uma aura simplesmente... magnífica. Mas não era só isso: ele estava balançando o cupom e o bilhete em uma das mãos... Com aquele riso de "ahá, eu descobri".

Sei lá, algo assim.

Como eu fiquei meio sem fala (queria entrar num buraco, naquele momento ← sem trocadilhos!), ele fez a pergunta retórica: "Então... isso é um convite?". Eu dei de ombros e respondi: "Só se você quiser"... Meu rosto parecia estar pegando fogo (e, àquela altura, não somente o rosto), e eu ouvi apenas "É claro que quero!".

Depois disso, senti o nariz dele em meu pescoço. O Nicolas começou a deslizá-lo em mim para sentir meu cheiro. Ele diz que gosta do cheiro que tenho pela manhã... De acordo com ele, é uma mistura de cabelo lavado e suor. Ah, eu sei... É estranho quando eu falo desse jeito. Mas eu meio que entendo, sabe... É que também amo o cheiro dele. O cheiro de Nicolas, sem perfumes. É tipo um afrodisíaco...

Mas aquilo não durou muito. Ouvimos, do meu quarto, a Jack mexendo nas coisas lá em baixo. Ele se afastou de meu pescoço, mas ainda manteve contato quando cochichou: "Eu estava com receio de entrar no assunto, por causa de todas as coisas que aconteceram... Quando abri e vi seu bilhete junto de um cupom de motel fiquei realmente surpreso". Eu mordi o lábio e perguntei "Hum... E isso é bom?". O Nicolas riu e também mordeu o meu lábio: "O que você acha?".

O que eu achava? Bem... Tudo o que consigo dizer é que estou aéreo e flutuante até agora.

Em seguida, ouvimos a Jack gritando, lá de baixo: "Nick, cadê você?", e ele foi na sacada ver o que ela queria. Era só um pedido de ajuda para mover uma prancha pesada de madeira, que acabou sendo usada para amostragem de plantas "exóticas" (arranjamos algumas daquelas carnívoras, tipo papa-mosca). O Nick desceu, e assim que eu escovei os dentes e lavei o rosto, fui até lá também. Num certo momento, quando fiquei sozinho com a Jaqueline, ela veio falar baixinho: "Desculpa, Dáqui... Se eu soubesse que ele estava em seu quarto, não teria chamado". Eu brinquei, dizendo que ela era uma estraga-prazeres, e ela respondeu explicando que, se queríamos um momento sem interrupções, era melhor irmos a um motel.

... Que mulher assustadora. De início, eu achei que ela soubesse do meu "presente". Mas depois, pelo rumo das conversas entendi que era apenas um modo de falar.

E logo o Lucas apareceu para me cumprimentar (ele tinha vindo junto com a Jack). Perguntei se havia se divertido com o pai na noite anterior (uma forma de sondar se o pinguinho ainda estava emburrado), e ele contou que brincaram de escolinha. Ele está aprendendo as letras, e de vez em quando pede para "corrigirmos a lição" dele, ou seja, ele aponta as letras dizendo quais são, e espera que digamos se está correto ou não. Raramente ele erra. Com isso, comecei a ensinar algumas palavras curtas também: céu, sol, lua, pai... Essas coisas.

Como aos sábados a Belson Flora fecha mais cedo, fomos os três (Nick, Lucas e eu) comer lanche num carrinho perto da galeria de artes, em uma pracinha aqui de Vale do Ocaso. Eu já tinha andado por ali há um tempo, quando me mudei. Foi até estranho lembrar desse dia, quando eu ainda me sentia um estranho na nova cidade, procurando por emprego. Eu comentei isso com o Nicolas, falando do dia em que ele me cumprimentou pela primeira vez, no mercado, e eu travei.

"Eu me lembro disso. Você destoava de todas as pessoas que eu já tinha visto", ele disse. E continuou: "Parece que faz tanto tempo".

"Vai fazer quatro meses no dia 24", respondi, enquanto o Lucas me mostrava a flor que ele tinha feito com canudos (vários deles amarrados entre si, hehe).

"Hum, e se a gente comemorar?".

No momento em que ele disse isso, o Lucas gritou "Yeah! Festa pro tio Dáqui", mas eu não consegui ter muita reação, porque a cara do Nicolas estava me dizendo que a tal comemoração não tinha o tom inocente que filho dele pensou. Ele se estava se referindo ao motel... "Sexta-feira... Pode ser?".

Preciso dizer que eu gelei? Bom, na verdade foi uma mistura de muitas temperaturas e sensações. Quase um choque paralisante... Mas não por muito tempo. Recobrei os sentidos e concordei com a cabeça deixando escapar aquele riso besta de "Oh, vai acontecer".

Ele respirou fundo, parecendo ansioso. E, para não deixar o Lucas falando sozinho, garantimos que no sábado faríamos alguma coisa, o que acabou se provando verdade quando conversamos com a Jaqueline, mais tarde. Ela não ficou sabendo de nossa comemoração particular (o motel, nessa sexta), mas comentamos sobre os quatro meses de "Tio Dáqui" em Vale do Ocaso. Ela disse que isso não poderia passar em branco (não que quatro meses seja algo comemorável, mas para ela qualquer coisa é motivo de reunir pessoas, comida, e música – uma característica que gosto nela).

Acontece que eu não conheço muita gente, aqui... Não acho que dá para fazer uma festa para mim, ou coisa do tipo. E foi exatamente isso que falei para ela... Não teria nada a ver convidar as pessoas que eu conheci em Vale do Ocaso. Um deles é um escroto que está preso. O outro, é o ex-patrão de um emprego temporário no cemitério. A Mariana e Samuel são amigos da Jack, e não meus (nem os conheço direito). E tem os amigos do Nick, mas não sinto "aquela conexão" com eles, embora sejam legais. E tem a Dona Maionese, o Jonas (com quem quase não converso) e a Sônia (fora de questão!)...

Definitivamente, meus únicos amigos aqui são os Belson e o pinguinho.

Por esse motivo, dei uma ideia que fez a Jack gritar de empolgação: vamos dar uma Festa à Fantasia para promover a floricultura.

Tipo, somente entre a gente saberemos que é tipo uma festinha de "4 meses de minha mudança". Mas para o resto do mundo será a "1ª Festa à Fantasia de Vale do Ocaso". A ideia do nome é da Jack, e ela já garantiu que vai conversar com as pessoas certas para alugar um salão bem grande (por mais que meu quintal tenha um tamanho avantajado, não será grande para o que minha cunhada está planejando). E como ela tem contatos para dar e vender, tenho certeza de que vai conseguir uma porção de coisas a um preço interessante.

Nossa, é muita coisa pra minha cabeça. Motel, festa à fantasia...

Ok, ok... São poucas coisas, mas... São relevantes o bastante para me deixar nervoso.

...

Só sei que essa semana vai passar se arrastando. É o que geralmente acontece quando estou ansioso para algo.

... >_<

Fora isso, o domingo hoje foi tranquilo. Novamente a Jack teve que levar o Lucas, porque a Sônia parece estar boicotando a tarefa. Não sei se é para evitar ver o Nicolas ou a mim (ou por qualquer outro motivo). Mas acho melhor assim.

...

O Nick fechou o livro e foi para a cozinha. Ele fica falando em voz baixa umas sentenças que precisa decorar para as provas da semana (fofo de ver... amo o Nick concentrado). Ele está colocando pães de queijo no forno (daqueles congelados).

Vou até lá, ajudá-lo =)

Ahh, queria que você pudesse vir até aqui, na festa à fantasia... Todos provavelmente a confundiriam com um anjo de verdade.

Oh, falando nisso... Não sei qual será minha fantasia. Talvez um "Isaácula"? Do que você se fantasiaria, se viesse?

Bem, boa noite, amiga-irmã. Que tenhamos uma semana boa (e, de minha parte, que seja rápida).




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