18 de Novembro, 2018 - Domingo (5h28)



18 de Novembro, 2018 – Domingo (5h28)


De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: Irrealidade. Culpa pela ausência de culpa.


Acabei de voltar do hospital, amiga... E só não vou afirmar que vivi os momentos mais horríveis de minha vida porque tenho medo que o universo ouça e tire sarro de minha cara mostrando algo pior.

Estou com uma sensação estranha, como se eu estivesse vivendo uma irrealidade. Como se algum circuito dentro de mim não estivesse bem conectado. Um robô olhando para tudo de forma estranhamente fria, como se não fosse eu mesmo que estivesse vivendo minha vida.

É estranho. Estranho demais. Me pergunto qual foi esse botão interno que desligou minha realidade.

Bom, aposto que não é sobre botões que você queira saber, não é? Tentarei contar com a maior quantidade de detalhes que eu puder. Só não sei se você vai gostar tanto disso, porque os detalhes é que tornaram tudo ainda pior.

Ah... Minha pele está ardendo um pouco. Assim que cheguei do hospital tomei um banho fervendo, e talvez eu tenha friccionado demais a esponja. Essa dor me distrai um pouco da porquice que está meu corpo, então não vou dizer que está sendo de todo ruim...

A primeira coisa que fiz após mandar aquele e-mail para a Jaqueline (com cópia oculta para você) foi seguir com minha bicicleta até o endereço. Era um mapa, então não foi difícil de encontrar... E caso você esteja se perguntando que raio de lugar era esse onde o Marcus levou meu namorado para fazê-lo de isca, eu lhe conto: primeiro tive que sair da parte urbana de Vale do Ocaso, na direção oposta de Eloporto. Quanto mais eu pedalava, mais a vizinhança ia sumindo, e mais meu coração acelerava. E posso garantir que não era cansaço por estar pedalando mais rápido que nunca.

Não, não era esse o motivo. E tenho uma certeza enorme de que você sabe disso.

Quanto mais eu me afastava do centro, das luzes, de tudo, mais ermo ficava o lugar. Uma estradinha com asfalto quebrado e cheio de mato crescendo em volta – e entre as frestas – me levou até uma espécie de galpão no meio do nada. Era exatamente isso: um galpão não tão grande, mas sem nenhuma vizinhança. Apenas aquela construção e umas poucas árvores em volta. A escuridão da madrugada ajudava a fazer tudo parecer mais sinistro, e a falta de postes de luz fizeram com que a roda de minha bicicleta encontrasse uma pedra no caminho antes que meus olhos a notassem. Dei de cara no chão, rachei o lábio, e foi com ele sangrando que parei e observei os arredores.

Nenhum sinal do Nicolas, nem do Marcus. E vou contar somente para você que eu tinha uma estranha esperança de encontrar o cadáver de meu pai – sim, eu disse "esperança" de propósito, não foi um erro na minha escolha de palavras. Não gosto nem de pensar muito nesse meu desejo sombrio.

Mas não havia nada. Olhando no mapa, percebi que meu marcador de localização era o mesmo da marcação de destino. Era ali, mesmo que não aparentasse.

Liguei para o celular do Nicolas, pois foi de lá que veio a mensagem daquele porco nojento – o Marcus. Esperei, esperei, até que atenderam.

"Nick?"

Do outro lado da linha ouvi uma risada que não era de meu namorado. Era um escárnio de minha existência – e ingenuidade, por ter ido até lá sozinho – na voz de Marcus.

"Já chegou, princesa?"

"O que você quer, Marcus? Cadê o Nick? Solte-o, porque ele não tem nada a ver com isso!"

"Ah, estou te vendo daqui... Você realmente veio sozinho... Que bichinha obediente! Gostei disso!"

Um arrepio correu minha espinha por saber que ele conseguia me ver de onde estava. Olhei em volta, achando que o veria de imediato. Estaria atrás? Dos lados? Não havia nenhum lugar que ele pudesse se esconder além do galpão velho e sujo. Mas que lugar do galpão? Apertei os olhos sem desmontar a bicicleta, e notei uma janelinha muito suja num dos cantos. Quem estivesse dentro provavelmente conseguiria espiar o lado de fora, mas era impossível para alguém de fora enxergar qualquer coisa lá dentro.

Foi quando cheguei a essa conclusão que ouvi um ronco de veículo. Não era o som do carro do Nicolas, isso percebi na mesma hora. E do lado oculto do galpão saiu uma caminhonete, acelerando. Os pneus só não cantaram porque o terreno em volta da construção era pura terra vermelha batida. O veículo era grande, daqueles cujo som do motor denuncia o tamanho. Inicialmente vi o Marcus sentado no banco do passageiro. A aparência dele era outra, como se o tivessem arrancado do submundo e recolocado no planeta Terra através de algum ritual demoníaco. O rosto dele... A feição... A forma como me olhava. Era a de um maníaco demente.

Ele forçou uma gargalhada – sim, forçou, como se quisesse me causar horror com aquele som vindo do inferno –, e gritou:

"Que tal uma corrida, seu merdinha? Vamos deixar suas perninhas bem cansadas de pedalar antes de eu abri-las pra te foder! O que me diz, hã?"

Tentei espiar quem estava ao lado dele, dirigindo, e quase me surpreendi ao ver que era meu progenitor. Digo "quase" porque não deu tempo de eu ter de fato alguma reação. Quando eu começava a elevar minhas sobrancelhas, chocado, a caminhonete acelerou e ficou de costas para mim, dando a possibilidade de eu ver algo que varreu de minha mente o fato de meu pai ser cúmplice do criminoso: o Nicolas estava atrás da caminhonete, com as mãos amarradas e uma fita tapando a boca.

Ah, Deus... Meu coração levou um chute, e meu estômago despencou em gelo. O Nicolas me encarou com um desespero que nunca imaginei ser possível. Ele não conseguia falar, mas movia a cabeça com todas as forças em um "não" mudo. Tive medo que ele quebrasse o pescoço de tanto que o movia para os lados, provavelmente desaprovando o fato de eu ter começado a perseguir a caminhonete com minha bicicleta.

E antes que você diga ser impossível alcançar um veículo desse porte montado uma velha bike, eu explico: aqueles desgraçados fizeram questão de entrar na estradinha de asfalto rachado em uma velocidade baixa o bastante para que eu não os perdesse de vista, mas rápido o suficiente para que eu precisasse dar tudo de mim para continuar a perseguição.

A caminhonete seguiu, e quase não havia carros passando por lá. Os poucos que cruzaram nosso caminho não devem ter notado o que estava acontecendo. Não havia nada em volta além de mato alto, uns morros cheio de pedras, e algumas árvores perdidas no meio do nada.

Fico imaginando que o Marcus deve ter planejado isso há tempos, e provavelmente nos espionou durante dias até conhecer nossos hábitos – como, por exemplo, os horários do Nicolas na faculdade.

Não sei quanto tempo fiquei perseguindo-os na máxima velocidade que eu conseguia. Aliás, creio que seja seguro dizer que nunca em minha vida pedalei tão rápido, e por tanto tempo sem descansar. E a única coisa que me fazia ter esse empenho era vê-lo com as mãos amarradas e a boca tapada, esperneando para me dizer qualquer coisa – provavelmente me repreender por ter sido burro a ponto de morder a isca do Marcus. Eu me aproximei, pedalando sem nem sentar no banco da bicicleta, com uma certeza absurda de que eu conseguiria emparelhar com a caminhonete e pular atrás.

Mas eles aceleraram... Estavam claramente brincando comigo. Entraram numa estradinha de terra, perpendicular à que estávamos. O novo caminho era uma estradinha que adentrava um reflorestamento de eucaliptos. Uma placa denunciou que era uma área reservada de uma empresa de exportação madeireira. Em qualquer outra ocasião acho que eu teria admirado a simetria exata no emparelhamento das árvores, mas naquela hora tudo o que passou por minha cabeça foi que aquele lugar era perfeito para o Marcus fazer o que quisesse sem que ninguém nunca nos encontrasse a tempo. O lugar perfeito para... Sabe... Para matar alguém.

Naquela hora, essa ideia fez minha espinha toda sentir um arrepio. Um agouro estranho e uma certeza de que algo muito horrível estava prestes a acontecer. Agora, ao escrever esse e-mail, sinto este mesmo arrepio, mas por motivos diferentes que você logo vai entender.

Eu gritei. Gritei para que parassem, e tentei chamar meu pai, que estava ao volante. A esperança era de que alguma humanidade acordasse no interior dele, e eu conseguisse alcançá-los para ajudar o Nicolas. Minha garganta estava dolorida demais – não apenas pelos gritos, mas também por estar respirando com a boca –, mas mesmo assim continuei gritando o mais alto que podia para que parassem.

E se você acha que eu estava detonando minha garganta com isso, tenha a certeza de que minhas pernas estavam ainda piores.

Naquela hora eu não sabia, mas agora entendo que a intenção do Marcus era realmente me deixar exausto. Ele deixou isso claro ao saírem do galpão, antes da perseguição, mas eu não havia captado bem a mensagem.

O Marcus abriu uma janelinha na parte de trás da cabine, que dava para a caçamba da caminhonete, onde o Nicolas estava. Berrou para mim:

"Continua gritando! Ferra com sua garganta pra depois não me dar trabalho!"

E deu outra daquelas risadas forçadas de um maníaco descontrolado.

A mão dele apareceu através da janelinha, e ele arrancou a fita que tapava a boca do Nicolas. Deve ter considerado que já estavam longe o bastante de tudo para que alguém ouvisse os gritos dele, que obviamente seriam mais altos do que os meus precários chamados ofegantes. Ele mal teve a boca liberada, e já berrou:

"Zak, é uma armadilha! Dê meia volta e saia daqui, porra! Vai embora, ele quer cansar você!"

A intenção daquele sádico era óbvia para o Nicolas, que provavelmente ouviu os planos antes mesmo de eu ter saído de casa. Mas eu não conseguia pedalar e pensar ao mesmo tempo. Meu cérebro estava ocupado demais em dar a ordem para minhas pernas continuarem funcionando apesar da dor. Se eu parasse de pedalar, não conseguiria voltar no mesmo ritmo. Por isso era tão importante ignorar o pedido do Nicolas e continuar, mesmo que minhas panturrilhas derretessem pela queimação.

Ele continuou gritando:

"Zak, para! Quando você não aguentar mais ele vai..."

Não terminou a frase porque o Marcus enfiou novamente o braço pela janelinha traseira, e dessa vez agarrou o pescoço do Nick. Vi ele sussurrando alguma coisa no ouvido dele e, seja lá o que for, fez com que meu namorado se calasse com um olhar mortal de ódio. Eu tive a impressão de ter visto uma arma na mão do Marcus, e agora sei que meus olhos não me enganaram.

Mesmo eu dando tudo de mim, a caminhonete começou a se afastar. Não sei dizer se meu progenitor acelerou, ou se foram minhas pernas que estavam chegando ao limite. Não sei mesmo qual das opções, pois na hora tudo o que eu pensava era "continue, eles estão logo ali".

Meus olhos não estavam na estrada de terra, nem nos eucaliptos finos que se alinhavam a se perder de vista – provavelmente para o uso controlado da madeira por parte de alguma empresa. Meus olhos focavam apenas no Nicolas, que havia começado a se mexer vigorosamente. Os ombros dele se moviam como numa tentativa de afrouxar as cordas que lhe prendiam as mãos às costas. O olhar dele estava fixo em mim. Ele podia estar irritado com minha atitude irresponsável, mas eu sabia que aquele ódio todo era direcionado a outra pessoa.

"O que você tá tentando fazer?"

Foi a única coisa inteligível que ouvi do Marcus antes da sequência de acontecimentos que gelou meu estômago: o Nicolas conseguiu se virar o suficiente para encarar o Marcus através da abertura no vidro traseiro da caminhonete, e cuspiu nele – a única ofensiva que o alcançaria, visto que tinha as mãos imobilizadas. O Marcus começou a xingar, e fez o que pôde para colocar as mãos no pescoço do Nicolas, chacoalhando-o e ao mesmo tempo atrapalhando a direção do motorista que odeio chamar de "pai".

Ouvi meu progenitor gritar algo, ao mesmo tempo em que o Marcus também gritava, e a voz do Nicolas também tentava se sobrepor a tudo isso. A caminhonete não andava mais em linha reta, mas em zigue-zague, com o som do motor acelerando ainda mais enquanto a briga continuava.

O rosto do Nicolas estava ficando vermelho... Minha respiração começava a falhar, e eu não conseguia mais gritar. Minhas pernas continuaram, mas eu já estava zonzo.

Foi quando aconteceu: uma acelerada mais intensa somada a uma curva brusca fez a caminhonete capotar... Com o Nicolas lá atrás, amarrado, e sem poder sequer se proteger nem se segurar...

Ah, meu Deus... Que cena horrível... Que sensação desgraçada de impotência foi aquela! Eu parei de pedalar, vendo tudo acontecer em minha frente sem que pudesse fazer merda nenhuma para salvar da dor aquele que amo... O Nicolas estava girando junto com a caminhonete, e eu estava tão acabado que sequer consegui berrar de desespero. Minha voz não existia mais, e minhas pernas só não desmontaram porque meu ímpeto de correr até o local do acidente foi maior. A caminhonete deu somente um giro antes de colidir com duas árvores, ficando caída de lado, com a porta ao lado do Marcus voltada para o chão.

Cheguei lá com o que foram, provavelmente, as últimas forças de minhas pernas.

"Nick? Nick! Você está bem?". Minha pergunta meio que não era necessária. Assim que o vi, bateu o desespero. "Ah, não... Ah, meu Deus..."

A perna dele... Ah, minha nossa... A perna direita dele havia se partido na altura da canela. Um dos ossos - a fíbula – rasgou a panturrilha, por onde o sangue vertia devagar. O Nicolas me encarou com os olhos arregalados e respirando rápido com a boca, com os dentes cravados. Era óbvio que sentia muita dor. Ele estava em choque. Meu Nicolas estava em choque...

Me agachei e o toquei, sentindo o sangue quente em meus dedos, e tendo a certeza de que eu não poderia fazer nada para aliviá-lo naquele momento. Foi uma fratura exposta que eu nunca gostaria de ter visto... As mãos dele ainda estavam amarradas, então fui libertá-lo enquanto meu pai e o Marcus ainda tentavam sair da cabine tombada. A porta ao lado do motorista – única por onde poderiam ter saído – estava muito amassada e não queria abrir – fato que abençoei por alguns segundos. Se não fosse isso, não haveria tempo para eu soltar o Nicolas. Tive que usar os dentes na corda apertada, e acabei sentindo um gosto de graxa e podridão na língua, mas consegui libertar-lhe as mãos.

Assim que o fiz ele as levou para a perna direita, logo acima da fratura, apertando. Não sei se para estancar o sangramento – que surpreendentemente nem era tanto –, ou por causa da dor. Em meio à respiração ofegante, conseguiu falar:

"Celular! Chame a polícia, rápido!"

"Mas, sua perna..."

Minha voz estava rouca, e mal saía. Eu estava com uma ambulância em mente quando ouvi algo bater no vidro, evidenciando que os dois homens na cabine lutavam para sair.

"Polícia, Zak! Rápido!"

"Tá bom..."

Desde que houve o último encontro com o Marcus, com o roubo da tesoura de jardim, todos nós ficamos prevenidos com o número da polícia no celular. Mas, mesmo assim, meu cérebro parecia pastoso, e eu só conseguia ouvir sons de chutes no para-brisa da caminhonete ao mesmo tempo em que o Nicolas ofegava com a dor. Meus dedos tremiam e sujavam de vermelho a tela do celular, e quase não consegui encontrar o contato salvo. Mas encontrei.

Chamou... chamou... Ouvi as batidas no para-brisa surtindo efeito: ele cedeu. No terceiro toque, alguém com voz de tédio atendeu, e comecei a falar com desespero sobre o que tinha acontecido. Mas não devo ter sido claro, pois a voz falou:

"Calma, moço, assim não entendo!", disseram. "Respira e fale com mais calma senão não vou conseguir te ajudar".

Tomei fôlego, ignorando a dor que senti quando o ar frio da madrugada passou pela garganta já toda fodida.

"É o Marcus... Vocês pediram para eu ligar caso ele... Ah..."

O celular foi arrancado de minha mão tão facilmente como se estivesse besuntada em manteiga. E quando notei, estavam de fato sujas, mas com o sangue do Nicolas que eu havia tocado segundos atrás.

"Você não vai mais precisar disso, viadinho".

Quem falou foi o próprio Marcus, depois de ter desligado o telefone e o jogado entre as árvores. Era minha esperança, a única que eu tinha naquela hora, caindo por terra. Literalmente.

Olhei para o Nicolas, tentado a pedir desculpas por ter sido um inútil. Eu poderia ter corrido para longe e chamado a polícia antes de me aproximar e virar presa fácil, mas não... Fui otário o bastante para correr até eles e facilitar minha desgraça e a do Nicolas. Meu cérebro embotado simplesmente não funcionava.

Eu ainda estava decidindo se pediria desculpas por não ter sido esperto o bastante quando a gola de minha camiseta foi puxada por trás.

"Hoje é seu dia de pagar por tudo o que me fez passar, sua bicha nojenta".

Fui arrastado para longe do Nicolas, e ele começou a gritar para que o Marcus me largasse.

A cerca de cinco metros de meu namorado, ele me chutou para que eu virasse de barriga para baixo. Tentei me levantar, mas minhas pernas não responderam. Elas estavam simplesmente exaustas, mostrando que o plano do Marcus havia funcionado como ele queria, e que eu havia caído pateticamente nas mãos dele.

Foi nessa hora que vi outro par de pés se aproximando. Como eu ainda estava de bruços, foi difícil virar meu pescoço e olhar para cima mas, quando o fiz, dei de cara com a expressão feia de meu pai, cheia de pequenos cortes no rosto, olhando para o Marcus.

"Me prometeu a grana, mas olha só o que você me fez fazer! Agora a caminhonete tá toda ferrada! Eu quero a porra do meu dinheiro!".

"Tá, tá, eu já ouvi... Vou primeiro cuidar do teu filho boiola, depois você fala com ele sobre sua grana, belê?"

"Essa coisinha não é meu filho. Eu não tenho filho!"

Eu quase não acreditei em tudo o que estava ouvindo. Havia pensado que meu pai era outro refém, mas o desgraçado (que só não chamo de filho da puta por respeito a minha avó) era um cúmplice, e estava novamente falando em dinheiro. Não sei exatamente o que o Marcus prometeu a ele, mas pela conversa tinha a ver com a grana que usei para a mudança. Eu já havia deixado claro que o meu dinheiro não era de meu progenitor – e sequer sobrou algo – mas não há como colocar algo naquele cérebro de estrume.

O Marcus se ajoelhou ao meu lado, segurando minhas mãos para trás. Eu já havia experienciado a força dele antes, e dessa vez não foi diferente. Eu não conseguia me mover, principalmente com as pernas doloridas como estavam.

"Depois que eu brincar um pouco com você na frente do Nicão, vou fazer ele sofrer bem devagar para você se arrepender de ter nascido, falou bichinha?"

Nunca em minha vida senti tanta desolação. Nunca tive tanta certeza de que iria morrer, ou pior, que veria o Nicolas morrer. Não havia nada em volta além de uma infinidade de eucaliptos, próximos uns dos outros o suficiente para ocultar as estrelas com as folhagens das copas, e uma estrada deserta no meio da madrugada. O Nicolas gritava tantas coisas que nem consegui captar tudo. Começou com xingamentos, mas quando senti minha calça sendo abaixada, os gritos viraram súplicas.

Eu não estava entendendo bem o que estava acontecendo. Minha cabeça girava entre o ferimento do Nicolas, que precisava de cuidados, e a irrealidade de saber que o filho único de minha avó parecia estar de acordo com aquilo. O único protesto que ouvi da parte dele foi:

"Ah, que nojo... Pelo amor de Deus, você não vai fazer isso, vai?"

Ao que o Marcus respondeu:

"Se não gosta, vira a cara. Teu filho merece isso".

"Já disse que esse bostinha não é mais meu filho! Nah, isso não importa! Eu só não quero ser testemunha de um ritual sodomita do capeta! Não foi pra isso que eu concordei em te trazer aqui! Você disse que ia fazer ele me dar a grana que é de meu direito!"

"Cala a boca e espera! Velho irritante". Então ele girou meu corpo num ângulo diferente, mas ainda mantendo minha barriga para baixo, e minha cabeça prensada no chão. "Aê, Nicão, nessa posição vai dar pra você ver direitinho!"

Então aquele que não me considera um filho caminhou em minha direção. Eu só conseguia ver até certa altura – o suficiente para notar as mãos fechadas em punho.

"Não vou deixar você fazer isso na minha frente! Assim que eu ver minha grana você faz as porcarias que quiser com esse moleque ingrato!"

Eu tive esperanças naquele momento. Era uma chance de ganhar algum tempo e me livrar daquela situação.

Mas...

"Se der mais um passo, eu juro que puxo esse gatilho, seu bosta". O Marcus havia apontado a arma para meu pai. Isso foi o bastante para fazê-lo se afastar e calar a boca. Em seguida, senti algo metálico encostar em minha nuca. "E você, Nicolas, fica quieto senão sua putinha vai pagar".

O Nicolas parou de gritar, e começou a chorar. De início eu não entendi bem o motivo, porque minhas pernas doloridas eram a única sensação física que eu notava. Estava sendo um alívio não ter que pedalar mais... Mas com o tempo entendi que o Marcus finalmente conseguiu o intento dele. Finalmente entendi por que o Nicolas chorava, e por que a cara de meu pai era a de repulsa.

Ser estuprado por alguém que odeio é uma sensação impossível de explicar. Da outra vez ele não conseguiu entrar em mim, pois estava bêbado e frouxo. Mas dessa vez ele estava sóbrio, e eu fraco demais para resistir. Os movimentos do monstro fizeram meu corpo todo se friccionar contra o solo, esfolando meu rosto na terra batida. Mesmo assim, tudo o que eu pensava era somente: "Ah, o Nicolas está sentindo dor... Está chorando enquanto olha para mim... Não quer vê-lo assim... Assim que isso acabar eu chamo uma ambulância para ele..."

Eu não consigo imaginar a cena que o Nicolas viu, mesmo que eu force minha imaginação ao máximo. Eu sentia a penetração como um pedaço de carne purulento que injetava em mim somas consideráveis de ódio em meu peito.

Uma estocada, um ódio.

Na segunda estocada, dois ódios multiplicando o primeiro. E assim na terceira, na quarta...

Na décima...

Sinceramente, não sei quanto tempo durou aquilo. Em certo momento, o Nicolas parou de chorar. Eu não conseguia vê-lo porque minha visão estava turva, mas ouvia a respiração dele. Devia estar doendo... A perna dele estava quebrada, com uma ponta de osso para fora, e ele não tinha o conforto de saber que o socorro se aproximava.

E meu ódio cresceu. Minhas mãos não tinham como alcançar o Marcus, montado atrás de mim, para que eu o estrangulasse. E mesmo que alcançassem, eu não conseguiria fazer nada com aquela arma ora apontada para o Nicolas, ora para meu pai, e na maior parte do tempo encostada em minha nuca. Meu desejo era fazê-lo sentir o quíntuplo da dor que o Nicolas estava sentindo, e o triplo de humilhação que estava me fazendo passar.

"Eu te odeio...", falei. "Eu te odeio mais do que nunca odiei alguém na vida, Marcus..."

"Isso, fala mais... Quero ver você chorando mais, porque é assim que eu gosto"

Nessa hora, me calei. Foi só por causa dessas palavras dele que notei que de fato eu estava num pranto quase silencioso.

Sempre achei impossível alguém chorar sem perceber, mas acabei fazendo isso. Eu havia bloqueado tanto as sensações de meu corpo, que sequer notei as lágrimas que escorriam junto com a coriza em meu nariz.

Nojento, foi o que pensei. Tanto ele quanto meu corpo naquele momento.

Nojento. Repulsivo.

E o cara responsável pelo meu nascimento estava de costas. Eu queria que eles morressem. Mais especificamente, eu queria que o Marcus morresse. Não estava mais me importando com o que era feito com meu corpo. Tudo o que eu pensava era em maneiras de fazer o Marcus sofrer depois que tudo acabasse.

Meu maior desejo era que ele não puxasse o gatilho sem querer, e destruísse a primeira felicidade que encontrei no mundo.

O Nicolas voltou a chorar baixinho. Já não sei dizer se foi pela dor, ou pelo desgosto do que estava vendo. Meu peito ardia com o som da tristeza dele. Queria dizer que estava tudo bem, mas eu não conseguia nem respirar sem que tudo em mim doesse.

A impressão que tive era de que o Marcus estava demorando de propósito, urrando de propósito como um ogro demarcando um território diante do rival derrotado. Mais animalesco que aquilo, impossível. E provavelmente por conta desse êxtase repulsivo a arma foi momentaneamente esquecida ao meu lado.

Talvez esse descuido tenha encorajado o-homem-que-não-é-meu-pai a se aproximar e chutá-la para longe:

"Chega! Eu nem sabia que você também era a porra dum viado nojento! Não suporto mais ouvir isso!", e pela primeira vez em vinte anos de minha vida concordei com o homem que detesto chamar de pai. "Quero meu dinheiro agora! Chega desse circo de sodomitas do capeta!", e pela enésima vez em vinte anos de minha vida eu odiei o homem que detesto chamar de pai.

O Marcus parou de se movimentar, e em seguida ouvi um soco que fez o peso em cima de mim desaparecer. O Marcus não esperava a agressão de meu pai, e caiu de lado com o membro pegajoso balançando no ar de forma vergonhosa.

"Seu desgraçado!"

Sem se preocupar em recolocar as calças, o Marcus se levantou para revidar. Eu aproveitei a oportunidade para me vestir novamente. A briga dos dois seguiu, e com essa distração me aproximei do Nicolas, que tinha no rosto a maior tristeza que já vi na vida. As lágrimas não escorriam mais, porém ele ainda carregava a expressão de choro.

"Me desculpa, Nick..."

Ele tirou a mão suja de sangue que segurava a perna ferida e a levou até meu rosto esfolado.

"Por favor, não fala isso, Zak... Acha seu celular. Caiu em algum lugar por ali. Manda nossa localização pra Jack, porque você não vai conseguir falar com a polícia. Ela saberá o que fazer".

Olhei para os dois, ainda brigando. Meu pai estava deitado, tentando se livrar das mãos do Marcus no pescoço dele.

"Se matem logo", falei baixinho enquanto ia até meu celular.

Com as mãos tremendo – de pavor, de tristeza, de cansaço –, consegui mandar nossa localização para a Jaqueline. Na mensagem, a única coisa que escrevi foi: "polícia e ambulância". Não expliquei mais nada.

Poucos segundos depois, a sinalização de que ela visualizou.

Alívio. Alívio. Alívio!

Olhei para o Nicolas, e consegui dar um sorriso precário e nada convincente.

"Vai ficar tudo bem", sussurrei da forma que minha garganta permitiu. O Nicolas ficava me olhando de um canto a outro como se buscasse uma peça quebrada dentro de mim.

Naquele momento eu estava apenas trincado. Não havia nada quebrado. Ainda.

Os dois homens voltaram a rolar pelo chão, e meu "pai" conseguiu se levantar, procurando algo no chão – provavelmente a arma, que eu já havia chutado para mais longe ainda.

Ao longe ouvi um som de motor, e por um momento achei que fosse o resgate já próximo. A lógica do meu cérebro não estava ativa. Se estivesse, eu entenderia que um resgate não chega em menos de dois minutos num local tão afastado. Sem contar que o som não era de um carro pequeno como o de uma van. Era maior.

Eu estava perto do Nicolas, com as pernas dormentes e trêmulas, assistindo ao show ridículo do homem que queria o dinheiro de volta versus o homem que reclamava por ter sido interrompido "antes do auge".

Não sei dizer qual deles eu odiava mais naquele momento.

O som de motor ficou mais alto, e ao longe consegui ver um caminhão fazendo a curva em meio aos eucaliptos. Ele vinha até onde estávamos numa velocidade relativamente alta para um veículo daquele tamanho.

Forcei minhas pernas mais uma vez, e me levantei. Não sei se era esperança de conseguir que levassem o Nicolas para um hospital, ou se era apenas para sentir o conforto de ter outra pessoa ali e inibir a ação dos cúmplices que ainda se socavam.

Meu progenitor deve ter percebido que não venceria o Marcus no punho, então se afastou com a respiração falha típica de um desgraçado sedentário frequentador de bares imundos.

À medida em que meu não-pai dava passos para trás, se afastando da estradinha e do Marcus, eu me aproximei. Não havia nada em minhas mãos que pudesse feri-lo, então eu não era visto como ameaça.

O Marcus me encarou com um riso demente no rosto:

"Ahh, quer continuar de onde parou? Eu sabia que você era um puto nojento!"

O caminhão estava perto, mas ia rápido demais para ouvir um grito de um garoto que sequer estava com a garganta apta a isso. O caminhoneiro não conseguiria frear a tempo de ver meus braços balançando em súplica por socorro. De nada adiantaria, e o Marcus conseguiria machucar o Nicolas ainda mais. Ele encontraria a arma, e iria matar o Nicolas. O faria na minha frente, para que eu sofresse mais antes de ter minha própria morte.

"Marcus... Você sabia que te odeio desde que te conheci?"

Falei num sussurro tão contido que minha voz deve ter parecido um ronronar meigo para ele. Não havia expressão alguma em meu rosto, apenas um vazio na mente e a sensação horrível de gelo nas mãos por causa do que eu já sabia que iria fazer.

Ele estava com as calças arriadas até os pés, sem um pingo de vergonha, e usou uma das mãos para balançar o membro asqueroso que havia usado para me violar.

"Ahh, que princesa malvada... Quer mais disso aqui?"

Apoiei minha mãos nos ombros enormes do ogro e o encarei. Minha voz rouca não saía direito quando respondi:

"Não... Eu nunca na vida quis tanto que alguém morresse, sabia?"

"Isso! Assim... Fala mansinho com essa carinha de raiva que eu gamo... Aê, Nicão, seu putinho curtiu minha rola!"

Não vi a cara que o Nicolas estava fazendo, pois eu estava de costas para ele. Apenas ouvi uma voz incrédula e tensa:

"Zak, para com isso... O que vai fazer?"

O caminhão estava perto, e a boca do Marcus também. Perto demais, a ponto de eu sentir o hálito podre. Ele me beijou. Mantive minha boca fechada, mas senti a língua. Era uma lesma viscosa andando em meus lábios. Por dois segundos não o impedi. Depois virei o rosto para sussurrar, apenas para ele:

"Some da minha vida de uma vez..."

Como eu já estava com as mãos nos ombros dele, só precisei dar um empurrão para que ele se desequilibrasse, tropeçando nas calças arriadas. Em circunstâncias normais eu não teria forças para derrubá-lo, mas a guarda dele estava baixa.

O que fiz não foi acidental.

Ouvi o caminhão buzinando, e o Marcus só teve tempo de arregalar os olhos, esticar as mãos em minha direção e dizer: "Viadinho filho da..."

Não deu tempo de terminar a frase.

As mãos dele, que buscavam apoio, não me alcançaram. Se tivessem alcançado, eu não estaria escrevendo isso para você. Porque o caminhão não parou. Não havia como parar, mesmo se quisesse.

O Marcus havia cambaleado e caído no exato local onde, segundos depois, a roda enorme passou.

A buzina soava quase explodindo meus tímpanos, e o caminhão freou, derrapando com um chiado forte. A carga de troncos de eucalipto era tão pesada que o caminhão só foi parar de fato muitos metros depois.

Eu me aproximei sentindo o peito doer, de tão rápido que meu coração batia. Se eu abrisse a boca, vomitaria o coração no meio da estrada.

Minhas mãos estavam suadas, e depois começaram a formigar. Formigar e tremer. Logo meus lábios também começaram a sentir o mesmo, junto a uma vertigem. Minha visão escureceu por um momento, mas mantive a consciência. Não desmaiei.

Ajoelhei a poucos metros do Marcus, que me encarava com espanto. Esperei ele me xingar. Esperei ele estender o braço e agarrar meu pescoço, mas ele continuou com aquela cara petrificada de pânico. Me movi para o lado, e notei que ele não estava olhando para mim. Seu olhar estava estático, situado em um nada que somente ele enxergava.

Ouvi a porta do caminhão bater. Alguém – que não era meu "não-pai" nem o Nicolas – parou ao meu lado. E uma voz desconhecida falou:

"Jesus Cristo... O que foi que eu fiz..."

Havia uma espécie de névoa escura em volta de minha visão. Eu me segurava à consciência por um fio muito tênue. O caminhoneiro andava de um lado a outro, e nem consegui mais prestar atenção nas palavras dele. Acho que ouvi ele pedir perdão a Deus, mas demorei para entender o porquê. Meus olhos pareciam se recusar a transmitir ao meu cérebro as imagens logo a frente.

Foi apenas quando ouvi meu progenitor acalmar o motorista que entendi que algo muito ruim havia acontecido.

Eu estava ainda encarando a expressão de espanto do Marcus, mas resolvi olhar mais para baixo. Foi quando compreendi... Não havia pernas. Elas estavam do outro lado da estrada, enroladas numa posição impossível para um ser humano. Todo o sangue que intumescia o membro asqueroso que havia me estuprado estava escorrendo por baixo do caminhão.

Havia sangue. Muito sangue. E entranhas. Senti um cheiro diferente. Um cheiro que me deixou enjoado. Não sei se era de sangue fresco, ou o cheiro do interior do intestino do que minutos antes fora o Marcus. A questão é que aquele cheiro junto da imagem grotesca fez meu estômago rejeitar a própria existência.

Engatinhei para longe, pois não queria mais ver. Usei a pouca força restante para me arrastar para o mais distante que consegui do corpo destroçado, até que vomitei apenas suco gástrico, pois havia horas que eu não comia.

Demorou um pouco para eu ouvir o Nicolas.

"Zak... Deus do céu... Deus do céu..."

Eu olhei para o Nicolas, ainda no mesmo lugar. Meu corpo inerte e imundo estava no exato meio caminho entre meu namorado ferido e a metade do cadáver do Marcus.

Eu fiquei sentado lá, olhando as coisas acontecerem à minha volta.

Não chorei. Não consegui mais chorar. A única coisa que passava por minha cabeça foi essa: ele não sofreu. Foi rápido demais.

Rápido demais para meu gosto.

Comecei a ficar com medo de meus próprios pensamentos quando percebi que estava lamentando o fato de não tê-lo feito sofrer como eu queria.

Era exatamente isso: eu estava decepcionado.

Dei risada. Sozinho.

Meu pai consolava o caminhoneiro – uma cena que nunca imaginei ser possível. O Nicolas continuava a intercalar entre meu nome e o de Deus, com uma fratura exposta na perna já sem sangramento. Os restos do Marcus estavam expostos como uma pintura feia na estrada de terra, com excesso de vermelho da tinta que cheirava a ferro e fezes.

E eu, no meio de tudo, permanecia sentado no chão, dando risada. Um louco, completamente fora de mim.

Não pense que não compreendo o quadro todo. Sei o que fiz. Sei que fui o responsável direto por um atropelamento que resultou em morte instantânea.

Sei que agora sou um assassino. Sei disso. Não sou burro.

E tem uma dor estranha dentro de mim crescendo por causa disso. Uma culpa andando pelas sombras de meus pensamentos, me encarando. E antes que você me entenda errado, preciso esclarecer uma coisa: a culpa que estou sentindo não é pelo fato de eu ter empurrado o Marcus para a morte.

Não. É mais complicado que isso.

O que sinto é a culpa por não estar sentindo culpa.

Espero que isso faça algum sentido, pois não sei outra forma de explicar esse pensamento que tem me rodeado nas últimas horas.

É uma irrealidade sutil, que faz com que tudo pareça fantasia de minha mente por um lado, ao mesmo tempo em que é real demais para deixar passar batido.

Minha alma parece estar em suspensão acima de meu corpo, e enquanto escrevo é como se o notebook estivesse a dezenas de metros distante de mim, ao mesmo tempo em que é a única coisa que consigo enxergar diante dos olhos.

Sei que não estou normal. É como se uma droga estivesse me impedindo de sentir as coisas que eu deveria sentir. Tipo a culpa por ter tirado propositalmente a vida de alguém. Mas o que estou sentindo é somente o alívio de saber que não vou precisar mais ter medo de alguém invadir minha casa para me matar. Ou para machucar as pessoas que amo.

Eu matei alguém, e sei que isso não tem volta. Não tem como fingir que não aconteceu. Ao menos, não para minha consciência, que ainda está em guerra com os próprios princípios.

Pela lógica de qualquer ser humano decente que pise na face da terra, suponho que eu deveria me sentir mal por ter desencadeado aquele acidente que resultou na morte de um ser humano. Mas não consigo sentir um pingo de culpa. Apenas decepção por eu não ter podido causar nele tanta dor quanto causou em mim e ao Nicolas. Eu queria que ele tivesse sofrido para compreender o tamanho do ódio em mim. Queria os braços dele amarrados para poder cortar o pinto asqueroso, e em seguida fazê-lo engolir até se engasgar. Depois eu enfiaria o cano da arma no cu dele até ele implorar perdão por ter ousado fazer aquilo com meu corpo na frente do Nicolas. Em seguida eu pegaria um dos galhos de eucalipto no chão e o empalaria, para que ele sangrasse vagarosamente por dentro. Até secar.

Mas foi rápido. Rápido e grotesco, cheio de entranhas e sangue na estrada. E o odor. Ah, aquele odor nauseante que não largava minhas narinas por nada...

Até agora parece que sinto o cheiro que não me larga mesmo depois de três banhos. Minha pele está esfolada, de tanto esfregar... Tudo em mim arde. Mas, que seja... Isso realmente não importa agora.

Enquanto eu ria no meio da estrada, sem entender a real dimensão de tudo, o motorista do caminhão tentava se explicar ao meu pai, dizendo que não conseguiu desviar nem frear a tempo. Pobre coitado. O caminhoneiro estava péssimo.

Se tem uma culpa que me assolou naquele momento (e me fez parar de rir como um doente mental) foi isso. Percebi que o caminhoneiro estava pegando para ele uma responsabilidade que era toda minha. Me virei para trás, e o vi enquanto conversava aos prantos com meu pai, dizendo que pagaria o funeral e a caralhada toda.

Ele devia pensar que éramos um grupo de amigos, ou uma família. Talvez achasse que o Marcus fosse filho de meu progenitor. Eu não sei, e pouco me interessa.

Quando os encarei, parece que meu olhar atingiu as costas de meu pai, que se virou e me encarou. Eu ainda estava sentado no chão. Minhas pernas não se moviam. Meus braços estavam moles. As mãos tremiam. O rosto ardia, esfolado. E meu ânus latejava de dor pela invasão bruta de alguém que sequer receberia uma punição à altura.

O homem-que-não-é-meu-pai se aproximou como se eu fosse uma criatura perigosa e incompreensível. Os passos eram cautelosos, e quando ficou perto o bastante para que apenas eu o ouvisse, falou:

"É um demônio que vive aí dentro! Você nunca foi meu filho, e nunca vai ser. Fique com aquele dinheiro amaldiçoado por Satã. Não quero mais nada que tenha passado por suas mãos... Se ficar de boca fechada sobre mim, eu também não conto nada sobre o que fez... Demônio assassino!"

Como eu disse, eu sabia o que eu tinha feito. Mas ser chamado daquilo em voz alta parecia irreal. Irreal demais. Tão irreal que comecei a rir novamente, na frente de meu não-pai.

Não era um riso de divertimento, se é o que está pensando. Era um riso demente, de quem está com o juízo fora do lugar. E aquele riso virou gargalhada. A gargalhada virou lágrimas... Mas continuei a rir como louco enquanto chorava desnorteado. Lembra que eu falei que antes o Nick havia me olhado como se procurasse uma peça quebrada? Bem, naquela hora eu finalmente quebrei.

Ouvi sirene. Sons de carros acelerando na estrada de terra, ao longe. Pensei: "Ah... Vão atropelar meu pai, agora... E depois vão me jogar na cadeia, porque sou um assassino... Hahaha... Um assassino... Hahaha!"

Estava escuro, mas vi as luzes se aproximando. O caminhoneiro estava ajoelhado ao lado do corpo destruído do Marcus. Olhos fechados, e lábios se movendo numa oração que julguei ser o Pai Nosso.

"Que Deus o tenha", ouvi ele dizer antes de fazer o Sinal da Cruz.

"Sim, que Deus o tenha", murmurei, sem que ninguém ouvisse. "E que o diabo o reivindique em seguida, para fazer com ele o que eu não fui capaz".

Algum carro freou por perto. Uma porta bateu. Um grito de mulher. Voz de anjo... Era a Jaqueline chamando o nome do irmão. Minha mente ficou turva, mas consegui vê-la se aproximar dele junto com dois socorristas. Fiquei aliviado. Se a Jaqueline estava lá acompanhada de uma ambulância, o Nicolas ficaria bem. Ouvi ela perguntar sobre mim, então ele apontou em minha direção. Minha cunhada viu o riso besta em minha cara, sentado na estradinha com o corpo pendendo para frente e para trás.

"O que aconteceu com ele?", ela perguntou enquanto se levantava para vir até mim.

Minha visão e audição foram me abandonando, então não ouvi a resposta do Nicolas. Eu desmaiei.

Mesmo agora, praticamente vinte e quatro horas depois, ainda estou com uma estranha apatia em relação a tudo. Aquela crise de riso foi embora junto com minha consciência naquela hora, e quando acordei poucos minutos depois eu estava sendo carregado por um desconhecido de branco até a parte de trás da ambulância, onde o Nicolas estava sendo acomodado.

Ele me colocou sentado perto da maca onde estava meu namorado, e começou a checar meus olhos com uma lanterninha. Fez algumas perguntas que não lembro bem. Acho que foi sobre meu nome, e se eu entendia a situação.

"Não quero ser preso..."

"Quê? Não... Quero saber se você entende que estava em choque, rapaz. Você acabou de presenciar uma coisa horrível, e estava estrebuchando no chão, com a moça ao seu lado pedindo socorro."

"Eu estava estrebu... Quê?"

"Você teve uma convulsão por conta do choque. Entendeu? Está me ouvindo, rapaz? Aqui, olhe em meus olhos... Consegue se lembrar que dia é hoje?"

Eu estava entendendo tudo o que ele dizia, mas minha confusão era porque eu estranhei não estar sendo enfiado no carro da polícia com algemas nos pulsos. Quando consegui focar a visão em algo, não foi para os olhos do paramédico que me voltei, e sim para o Nicolas.

Ele estava na parte de trás da ambulância, e aplicavam alguma injeção nele enquanto respirava rápido entre os dentes. Às vezes gemia de dor, e esse foi o balde de água gelada que eu estava precisando para voltar a realidade.

"Nick! Ah, Nick... Como ele está? Vai ficar bem?"

O rapaz que me fazia perguntas olhou para meu namorado, depois para o outro paramédico, e em seguida para mim novamente. Colocou uma das mãos na minha cabeça, como se eu fosse um garotinho de doze anos.

"Vai ficar tudo bem. Mas por hora vocês precisam ficar um pouco em observação no hospital. Então você vem com a gente, tudo bem?"

"Mas... Espera... E a Jack?"

Olhei em volta, e a vi participando de uma pequena roda com dois policiais, o caminhoneiro e meu progenitor. As duas partes do Marcus estavam, cada uma, cobertas por um saco preto. A única pista de que ali em baixo havia uma cena grotesca era o sangue fresco em volta, que não havia sido ocultado.

Olhei mais uma vez para a Jack, que se virou para mim com uma expressão carinhosa para em seguida voltar a falar com os policiais. Olhei para o Nicolas, que estava conseguindo respirar mais tranquilamente, mas com evidente dor. E olhei para o paramédico, que tocou em meu ombro e mirou bem fundo meus olhos, que já estavam cheios de lágrimas.

"Vamos?"

Não respondi. Apenas aceitei a ajuda para subir na ambulância. Fiz questão de me sentar num lugar em que eu conseguisse segurar a mão do Nicolas, ainda suja de sangue e terra – assim como as minhas.

"Nick... Se eu não tivesse feito aquilo..."

"Eu sei", foi a resposta, me interrompendo. Ele colocou a mão em meu rosto, e o polegar sobre minha boca. Pressionou ligeiramente meus lábios, e acabei entendendo a indireta. Era para eu calar a boca, já que falar sobre o que fiz na frente dos socorristas poderia ferrar tudo.

O Nicolas viu o que eu fiz. Aliás, ele provavelmente havia percebido o que eu estava prestes a fazer quando fingi dar mole para o Marcus, segundos antes de empurrá-lo. Meu pai também viu, e isso meio que me preocupa um pouco.

No caminho até o hospital, me lembrei do ataque na Parada do Vale, quando eu e o Nicolas estávamos em posições invertidas: eu ferido na ambulância, e ele segurando minha mão.

Não conversamos mais entre nós. O paramédico ficava falando com o Nicolas, de como ele teve sorte por ter sido apenas a perna, e explicou de forma rápida o que teriam que fazer quando chegassem ao hospital. Basicamente, ele seria levado para uma sala de cirurgia, e foi realmente o que aconteceu. Enquanto isso eu fui atendido, me examinaram e perguntaram o que aconteceu. É claro que não contei... Menti que foi uma briga feia, mas que eu já estava bem.

Quem dera tivesse sido apenas isso, não é? Ah, quem me dera... Mas foi somente por isso que fui liberado. Fiquei aguardando na sala de espera até que a Jack chegasse (dessa vez com o Jonas junto, pois antes ele havia ficado em minha casa para fechar tudo).

Assim que o Nicolas saiu da sala de cirurgia estava com a panturrilha costurada, sem nenhum sinal de que tivesse um osso para fora momentos antes. Foi colocado um pino interno para ajudar na imobilização da fíbula, e pelo jeito vai ficar lá para sempre.

A Jaqueline estava dando uma de irmã mais velha não apenas com o Nicolas, mas comigo também. Assim que a cirurgia de emergência terminou, ficamos os quatro no quarto onde o Nicolas se recuperava.

Eu me sentei numa poltrona que estava num canto e fiquei apenas ouvindo a conversa. O Nicolas contou a parte que ainda não sabíamos: Ao sair da faculdade e sentar no carro, ele viu pelo retrovisor a cara do Marcus, que estava escondido no banco de trás. Antes que pudesse gritar, foi apagado, e só acordou quando já estava amarrado na caminhonete naquele galpão abandonado.

O resto da história você conhece, mas ele não usou tantos detalhes. E também deixou implícito o que o Marcus fez comigo, sem usar as palavras exatas. O Nicolas não é prolixo como eu, mas acho que o motivo de ele não ter explicado bem foi a dor de fazer reviver o momento. Nesse momento a Jaqueline interrompeu o irmão com a mão levantada e se aproximou de mim.

"Dáki... O Marcus fez o que eu tô pensando?"

Minha resposta foi mover a cabeça minimamente, para cima e para baixo. Eu absolutamente não estava com forças para falar. Ela xingou baixinho, e depois veio até a poltrona me abraçar. Ficou acariciando meu cabelo por um tempo, sem dizer mais nada. Acho que ela sabia que não havia o que ser dito.

O Nicolas resumiu o resto do relato sem dizer o que causou a morte do Marcus. Ele mentiu, dizendo não ter visto o que rolou, porque estava zonzo e confuso. Nessa hora a Jaqueline matou a curiosidade que estava me matando sobre o que havia sido conversado com a polícia:

"O pai do Dáki disse que o Marcus se desequilibrou enquanto brigavam, e caiu na estrada bem quando o caminhão passava".

O Nicolas olhou para ela e depois me olhou. Provavelmente estava checando minha reação, mas creio que naquele momento eu parecesse um boneco de pano inexpressivo. Ele perguntou:

"E o motorista do caminhão? Disse o que viu?"

Ela ficou quieta por alguns segundos que me gelaram o estômago. Algo me diz que o radar dela estava apitando algo, mas ela não tinha como suspeitar da verdade mórbida que me cerca. Então deu de ombros e disse que o pobre coitado apenas concordou com aquela versão.

Pelo que ela disse, a caminhonete capotada era roubada também. E meu pai acabou entrando como vítima no relatório deles, alegando que foi forçado a fazer o que fez. Afinal, a única pessoa que poderia desmentir isso – além de mim –, estava dilacerada no meio de uma estrada de terra distante o suficiente dos olhos acusadores da humanidade.

Eu estava humilhado demais, aterrorizado demais, e cansado demais para retrucar a versão que a Jack contou sobre meu não-pai. Mas tem outro motivo para eu ter ficado na minha: tive medo de denunciá-lo e ele acabar contando o que eu fiz.

E esse "o que fiz" fica girando em minha cabeça sem parar. Tudo o que consigo pensar é: se não fosse isso, quem estaria morto agora? Eu estou assustado com isso tudo, mas não consigo sentir culpa. Apenas horror... Porque a cena não foi bonita. Por mais que eu o odiasse, não gostei de ver aquilo.

A única coisa que me importava naquele momento era que o Nicolas estava bem. Com uma perna costurada e com pinos no osso, mas vivo e bem... A propósito, ele não vai colocar gesso. Por conta do corte costurado, ele vai usar uma espécie de tala removível (um treco cheio de cintas para imobilizar a perna), e o corte costurado vai ter que ser limpo todos os dias.

Hum... O que mais esqueci de falar? Ah, sim... A polícia precisa pegar meu depoimento depois. Não falei nada sobre isso com o Nicolas (pois não ficamos mais a sós depois da chegada da Jack), mas acho que vou dar a mesma versão que já foi contada por meu progenitor.

E por falar nele, não o vi mais depois daquilo. E nem quero ver. Se eu tiver sorte, nunca mais o verei.

Sobre o Marcus, depois que o corpo for liberado haverá um velório de caixão fechado. A Jack disse que vai participar na intenção de dar uma força aos pais dele, que um dia foram seus únicos clientes.

Eu não iria nem que me obrigassem. Seria o cúmulo da hipocrisia, já que sou o assassino.

De alguma forma, isso soa irreal para mim. Parece que tudo aquilo que aconteceu está distante, envolto em fumaça.

Queria que fosse mentira... Mas não é.

Enfim, nós ficamos um tempo no hospital, até o Nick ser liberado (no início da noite de sábado), cheio de recomendações, antibióticos e anti-inflamatórios. A Jack dirigiu o carro na volta, e eu fiquei atrás com ele. Quem mais falava era minha cunhada, discursando sobre como "a providência" tinha cuidado de tudo, de como nós tivemos sorte...

Eu olhava pro Nick, tentando ler os pensamentos dele, mas ele olhava para a janela, quieto. Como sempre, não sei o que se passava pela cabeça loira dele.

Mas minha imaginação acabou fazendo o serviço. Talvez ele estivesse reavaliando quem eu sou, e se realmente vale a pena continuar ao meu lado com esse risco todo que ofereço aos que se aproximam. Porque, veja bem: adúltero, suicida, e agora minha mais nova etiqueta: assassino.

A pergunta que está girando em minha mente é: será que um cara assim merece ficar perto da família Belson? Bom, prefiro não pensar demais, senão a resposta vai ser dolorosa.

Quando chegamos em nossa casa, ele se deitou no sofá e dormiu. Desde o sequestro de sexta-feira, na porta da faculdade, até a madrugada de domingo, ele não tinha pregado os olhos nem um minuto. Estava exausto.

A Jack ainda ficou um tempo nos rodeando, vendo se estava tudo bem comigo, oferecendo chá de camomila, e depois acabou subindo para meu quarto apenas porque jurei que estava bem, e que descansaria depois de um banho.

Bom, era outra mentira.

Assim como os gêmeos, eu também não descansei nada desde a sexta-feira, mas a verdade é que não consigo dormir. Por isso, após quase esfolar minha pele no banho (de tanto esfregar para tirar aquele toque asqueroso), me sentei na mesa que fica na sala, ao lado de onde o Nick está agora, para escrever esse e-mail. Queria ter tudo registrado fielmente, e garantir que não vou me esquecer nunca de tudo o que aconteceu. Garantir que as mentiras que contei aos outros não contaminem meu cérebro fazendo eu achar que nada daquilo aconteceu.

O segredo sobre meu ato está com o Nicolas, com meu pai, e com você. O caminhoneiro não sabe o que viu... Acreditou na versão da briga. E quero acreditar que meu pai também não vai contar, já que ele foi testemunha de um crime, e poderia responder por isso se eu abrisse a boca. Vi ontem nos olhos dele que tudo o que ele queria agora era distância de mim.

Ora, mas que coincidência, não é mesmo? Era apenas isso que eu queria dele, quando me mudei. Acho que ainda é somente isso, mas me pego recriminando meus pensamentos quando imagino-o caindo doente na cama e deixando este mundo.

Eu não presto.

Ah... Que sensação horrível no corpo! Eu tomei banho antes de iniciar a escrita deste e-mail, mas... É como se uma viscosidade me impregnasse e não saísse por nada! Principalmente lá atrás, onde ele tocou mais.

Espera... Eu vou tomar outro banho, depois continuo o e-mail.

...

Voltei. Minha pele está ardendo de tanto esfregar. Está ficando vermelho, já. Droga, eles vão acabar notando.

Fiz um pouco de café. Nossa, como e horrível esse troço! Amargo como a vida, mas coloquei bastante açúcar, então ficou aceitável. Acho que com isso consigo me segurar acordado mais um tempo.

Estou ainda tentando digerir tudo (não me refiro ao café, embora ele tenha entrado na lista). O fato de eu não sentir culpa por ter feito o que fiz me preocupa um pouco, sabe? Talvez eu seja pior que o Marcus...

Ou talvez eu só esteja aliviado que eu e o Nicolas estejamos vivos. Ainda não sei o que estou de fato sentindo.

A Jack falou com nossa advogada, Lílian, enquanto estávamos ainda no hospital. A advogada confessou que nunca viu pessoas com uma maré de azar e sorte tão loucas como nós. Acho que a pessoa que traz azar sou eu, óbvio. A parcela de sorte vem dos Belson, para equilibrar essa equação purulenta que eu trouxe ao me mudar para o Pântano dos Mosquitos.

... Nossa, fiquei a madrugada toda escrevendo isso. Já dá para ouvir a algazarra de pássaros. Está começando a clarear lá fora.

E eu ainda não dormi. Não quero dormir. Não quero... A garrafa de café, que tem quase um litro, já está na metade.

Sinto que se eu fechar os olhos ele vai me visitar em meus pesadelos. Por isso estou me dopando de cafeína: para despertar e tirar esse peso horrendo de minhas pálpebras.

Não quero parar de escrever para você, amiga. Isso me deixaria sozinho comigo mesmo, e... Não estou pronto para o que minha consciência possa dizer. Ainda não tive tempo de pensar em silêncio... Estou com medo, amiga... Medo de parar de escrever e os pensamentos tomarem conta. A realidade tomar conta.

Ah, que bom! O Nick está acordando. Vou cuidar dele, assim não durmo e ocupo a mente com outras coisas.

Bye, amiga... Obrigado por aguentar tudo isso que relato a você. Obrigado mesmo.



.  .  .


Mesmo sendo um capítulo tão denso e triste, peço que vote para me ajudar 💙

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