Capítulo único

5900 Palavras

Numa fria manhã de sábado...

Um agradável perfume invade minhas narinas me fazendo despertar aos poucos. Tento mover-me, porém encontro dificuldades devido a um peso bem conhecido sobre meu corpo. O calor em minha pele junto a suavidade de seu toque me dão certeza de sua presença.

Abro meus olhos, pesados devido ao meu sono matinal, e a princípio tenho a visão do nosso quarto, pouco iluminado pelo fio de luz que entra através da janela. Me concentro um instante, e consigo escutar um par de vozes fora do quarto. Deve ser bem cedo, mas já estão acordados.

Viro meus olhos ao lado, encontrando seu rosto envolto em plena serenidade. Ela ressona baixinho, tendo seus cabelos castanhos caindo em torno de seu rosto e tocando meu pescoço em leves cócegas.

Sinto sua respiração lenta em meu peito enquanto que levo minha mão aos seus cabelos, acarinhando lentamente. Sem precisar de muito, consigo sentir bem como ela está aconchegada em mim. Desse jeito, nem sinto vontade de acordá-la, passaria bem mais tempo exatamente da forma como estamos.

Seus olhos reagem ao meu toque, e ela se mexe devagar sobre mim – Amor... Não me diga que já é de manhã... – Diz preguiçosamente, sem sequer abrir seus olhos.

Sorrio contendo meu riso por um instante – Julgando só por aquela luz bem ali na janela, é o que me parece. – Prefiro nem dizer que já escutei a voz das crianças.

- Não era pra responder... – Ela responde virando seu corpo sobre o meu, escondendo o rosto no meu pescoço. Sentir sua boca tocando minha pele é o suficiente para que arrepios agradáveis me percorram. – Queria a ilusão de ainda ser madrugada...

Não contenho uma curta risada – Quem sabe na próxima te darei essa ilusão meu amor.

- Tá bem... – Sua voz sai manhosa, dando um longo bocejo – Que horas são?

- Não sei, irei ver... – Busco meu celular tateando a cabeceira da cama, e por não encontrar, tento me erguer, porém ela me impede de levantar e me puxa de volta para si – Ué, mas...

- Não precisa, fica aqui comigo... – Sussurra me interrompendo, se aconchegando em mim – Depois vemos isso, não importa agora.

Balanço a cabeça, me ajeitando para abraçá-la e trazê-la para mais perto de mim. Sua presença me faz bem, seu toque me faz bem. Ela me faz bem só de estar aqui, verdadeiramente bem. – É, tem razão. Acho que hoje as horas não fazem tanta diferença.

- Sim, é sábado afinal... Nenhum de nós precisa correr para o trabalho. – Ela sussurra arranhando meu braço e me dando uma mordida provocante no pescoço, e de cara estremeço.

Em questão de um segundo um arrepio percorre meu corpo, e o desejo cresce em mim. Ela passa sua mão em torno do meu pescoço me levando para si e segue em mordidas lentas, puxando levemente minha pele e mordendo novamente.

- As... As crianças já estão acordadas. – Consigo dizer em um fio de voz, completamente abalado por uma série de mordidas bem aplicadas, isso pra não dizer rendido. – E não lembro de termos trancado a porta noite passada...

- Ah é? – Ela me olha, acho que um pouco decepcionada – Nossa, já estão acordadas...

Sorrio de forma compreensiva, mal acordei e já sinto o corpo pulsar de desejo, e enxergo em seus olhos que sente o mesmo – É, quando não precisam ir à escola, elas acordam cedo. – Sussurro fazendo carinho em seu cabelo.

- Entendi, não vai ser legal aprontar algo e sermos interrompidos por batidas na porta... Quem sabe mais tarde né? – Ela aproxima e damos um beijo lento e envolto em carinho – Trate de se comportar.

- Comportar, eu? – Ergo uma sobrancelha, respirando fundo para me recompor, ou ao menos tentar. Ela assente em uma expressão inocente, e não consigo parar de sorrir vendo o quão dissimulada essa mulher consegue ser – Tem certeza que não é você quem deveria se comportar?

- Absoluta, sou uma anjinha. – Diz com um sorriso meigo, apoiando seu queixo em meu peito – Entre nós, quem é o atrevido aqui é você... Um anjinho atrevido.

- Talvez, mas certa anjinha não fica muito atrás. – Digo e recebo uma careta como resposta.

Ela passa suas pernas sobre mim e senta em meu corpo. Estou para me levantar, porém ela me impede apoiando as mãos em meus ombros e me empurrando de volta para a cama, e me lança um sorriso provocante – Talvez, mas nunca te ouvi reclamando.

- Não tenho motivos para reclamar, afinal eu adoro isso. – Sorrio de canto, saltando as sobrancelhas.

- Adora é? – diz provocante, aproximando de mim, e nossas bocas se encontram novamente.

A envolvo num abraço e intensificamos nossos beijos cada vez mais. Suas unhas correm pelo meu peito da mesma forma que minhas mãos exploram seu corpo. Ela une seu corpo ao meu, e nosso calor une-se em um só. A excitação e o desejo é presente em ambos, demonstrada em cada toque, em cada suspiro trocado.

- Não... – Ela interrompe o beijo de repente, puxando minhas mãos para longe de seu corpo e as deixando próxima a minha cabeça. Nossos olhos se encontram, enquanto que ela se aproxima e me da mais uma mordida no pescoço, mais longa e propositalmente mais provocante – Se comporte.

Faço uma careta semicerrando o olhar – Você me paga por isso.

- Estarei esperando. – Devolve me mostrando a língua, e finalmente soltando minhas mãos.

Torno a me sentar, com ela ainda estando em meu colo. Seus braços pousam em meus ombros, enquanto que abraço sua cintura. Nossos rostos estão bem perto um do outro, e assim permanecemos. Envolvidos em nossos olhares e sorrisos, toques e carinhos, fogo e desejo, de forma que nos entendemos assim, sem a necessidade de palavras.

Nossas mãos se encontram e os dedos se enlaçam. O desejo permanece, porém sua intensidade dá lugar a algo diferente, não é intenso, mas algo que é igualmente bom, que faz com que meu peito se aqueça e uma sensação única desperte.

- Eu te amo... – Sussurra, e em seu olhar vejo sinceridade em cada palavra.

- Eu te amo... – Sussurro de volta, em palavras que vieram do mais profundo em mim.

Nos abraçamos e assim ficamos, em nosso momento e nosso silêncio. Nosso envolvimento e apenas nosso, algo que a muito tempo tentamos e muito tempo nos esforçamos. Pelo tanto que passamos e enfrentamos que criaram dúvidas se algum dia alcançaríamos isso, mas nos mantemos firmes, e após muito tempo, finalmente alcançamos.

- Está com fome? – Sussurro em seu ouvido, beijando seu pescoço lhe causando nítidos arrepios.

- Sim, um pouco. – Ela apoia suas mãos em meus ombros, me fitando com olhos ardentes.

- Vou preparar alguma coisa. – Ela assente me dando um beijo, saindo do meu colo e voltando a deitar, enrolando-se na coberta e me olhando fixamente. Passo a mão pelo seu cabelo em um leve carinho – Vou lá, já volto...

Sento na cama e, erguendo bem os braços me espreguiço o máximo. Alcanço uma camisa que deixei largada no chão na noite passada e a visto, saindo do quarto em passos lentos.

O corredor está gelado, só deixando claro como o dia está frio. Tremo um pouco e passo as mãos pelos braços em tentativa de me aquecer, mas não adianta muito.

Tomo a escada e desço, e em cada passo rumo à sala, o som da televisão se torna mais nítido. Pelos barulhos está passando algum desenho animado. Ao entrar na sala, encontro meus filhos deitados no sofá, cada um enrolado em uma coberta e com olhos fixos na tela.

Em meus dias, havia chego um dia que acreditei que nunca teria um filho. Quem diria que teria logo um menino e uma menina? E que já estariam com 5 e 6 anos respectivamente?

Não digo nada a princípio. Apenas permaneço as observando, ou melhor, os admirando com carinho, até que finalmente seus olhos se voltam para mim. – Papai! – minha filha é a primeira a se desvencilhar das cobertas, saltando do braço do sofá e envolvendo no meu pescoço.

Recuo alguns passos tendo sigo pego de surpresa por sua reação tão empolgada, e ao me atentar vejo meu filho já bem perto, e antes que ele pule e por consequência me derrube, acabo abaixando e o ergo do chão com o braço livre.

- Bom dia crianças. Acordados a muito tempo? – Pergunto dando um beijo na cabeça de ambos.

- Eu sim, não consegui dormir e vim ver desenho. – Meu filho diz todo orgulhoso.

- Eu também, mas acordei antes. – Minha filha diz, mas pela sua animação nem parece que acordou a pouco tempo.

Passo os olhos pelo chão da sala, e com a sobrancelha erguida observo ambos – E os dois vieram descalços pelo jeito. – Recebo um meio sorriso dos dois, que só confirmam a situação. Aproximo do sofá e os deixo sentados lado a lado. – Vou preparar algo para a mamãe, quem aqui está com fome?

A menina de longos cabelos ondulados ergue sua pequena mão bem ao alto, enquanto que o menino de pequenos cabelos encaracolados da pulos no lugar, os dois me respondendo com um "Eu" uníssono.

- A mamãe já acordou? – minha filha pergunta antes que eu me levante.

- É... Mais ou menos... – Respondo rindo, e ganho um par de olhares curiosos.

- Como alguém está mais ou menos acordado papai? – Meu filho pergunta.

- Vejamos... – Começo, erguendo meu olhar por um instante, e logo voltando a observá-los – É o mesmo jeito que vocês ficam quando precisam ir à escola. – Ergo bem ambas as sobrancelhas, e os olhares dos dois parecem se iluminar.

- Não querendo sair da cama? – O garoto questiona novamente e confirmo com a cabeça. – Então, a mamãe não quer ir pra escola?

Dou uma risada com sua conclusão e mexo no cabelo de ambos – É, quase isso. No nosso caso, não queremos é ir ao trabalho... Enfim, vou preparar alguma coisa para comermos.

Me levanto e sigo para cozinha, escutando a voz da minha filha – Também tem preguiça de ir para o trabalho papai?

- Todas as manhãs, enquanto o despertador toca. – Respondo brincando.

- E depois não sente mais preguiça? – Ouço sua próxima pergunta assim que entro e já vasculho os armários para ver as opções para essa manhã.

Olho de soslaio para a porta da cozinha, a vendo parada no batente me observando fixamente. Os mesmos olhos da mãe – Não, não sinto... Pelo menos não na maioria das vezes. – Respondo pegando algumas coisas do armário e deixando sobre a mesa.

Enquanto vou a geladeira para procurar qualquer outra coisa para preparar, percebo minha filha puxando uma cadeira e se sentando. Sob seu olhar atento em cada movimento meu, preparo a sanduicheira sobre a pia, deixo um pouco de água esquentando, e só então começo a preparar algo para o café da manhã.

Dispondo de pães e alguns frios, monto alguns lanches rápidos e os deixo para esquentar na sanduicheira. Termino de montar os próximos lanches e, enquanto aguardo os da sanduicheira ficarem prontos, volto minha atenção para preparar o café.

De momento em momento, olho para a pequena garota. Ela está apoiando o rosto com ambas as mãos, olhando para cada coisa que faço sem sequer piscar. Fico curioso sobre o que ela pode estar pensando nesse instante.

Troco os lanches da sanduicheira e os deixo em um prato, terminando de preparar o café e, em algumas xícaras, deixo pronto uma boa quantia de café com leite. Uma coisa que a família inteira adora é isso. Eu mesmo aprendi a gostar somente algum tempo depois que a conheci.

O aroma dos lanches se espalha pela cozinha, o garoto já abandonou a televisão ligada e agora está ao lado da irmã, assistindo tudo que faço, e até mesmo eu estou salivando pela fome matinal. Me voltando aos armários, separo uma bandeja e organizo tudo, pronto para levar de volta ao quarto.

- O que acham de acordar a mamãe agora? – Pergunto a ambos, erguendo a bandeja da mesa.

Os dois se empolgam e em um novo uníssono, respondem com um animado e longo "sim".

Me pergunto qual será a reação dela quando o quarto for invadido por esse par de furacões em miniatura. Irei adorar ver sua expressão.

Vou na frente, com o objetivo de impedir as crianças de correrem na escada, e claro, tentar fazer uma surpresa ao entrar no quarto.

Abro a porta com a mão livre e ligo a luz, a encontrando sentada na cama soltando um preguiçoso bocejo – Olha quem veio te dar bom dia. – Anuncio, e as crianças passam correndo por mim, pulando na cama e ambas abraçam a mãe.

Ela é envolta em um par de abraços animados, e em meio aos seus risos, por muito pouco não é derrubada de volta na cama. Ouvir e ver todos rindo juntos é algo que me faz bem, de uma forma que é possível somente em momentos assim.

Ao me aproximar da cama, meus olhos vão ao espelho do guarda roupa, e observo meu reflexo. Em cada traço do meu rosto enxergo leveza e tranquilidade. Meu olhar é animado e sorrio como sendo algo puramente natural de mim.

Não encontro mais aquele que um dia, viveu em meio a escuridão e a teve em mãos por diversas vezes. Eu era alguém perdido, e hoje não enxergo nada disso em meu reflexo.

Voltando minha atenção a eles, assisto como ela os abraça e enche ambos de beijos – Dormiram bem meus anjinhos?

- Sim, muito bem. – A menina se espalha pela cama, enquanto que o menino assente, permanecendo abraçado a mãe.

Sento-me a cama, assistindo a cena sem conter o sorriso em meu rosto. Não sei de quantas formas isso me faz bem, um conforto crescente, que não consigo encontrar palavras ou sentimentos suficientes para descrever.

Me sinto feliz e em paz, é algo que a muito sempre quis ter na vida.

- Papai? – Minha filha me chama, e desperto do meu devaneio.

- Nas nuvens? – Ela me pergunta lançando-me um olhar curioso e sobrancelhas no alto, aproximando-se da bandeja e alcançando um dos lanches que preparei.

- É, eu estava só pensando em algumas coisas. – Respondo sem jeito, voltando meus olhos para as crianças que também pegam seus lanches.

- Acho que sei o que está pensando, conheço esse seu olhar... Fica assim quando está feliz. – Ela diz, e um sorriso sincero toma meu rosto – Você estava do mesmo jeito quando as crianças nasceram.

Concordo com a cabeça – Me conhece mesmo, não é?

- A quantos anos juntos? – Ela devolve a pergunta, encostando sua cabeça em meu ombro. Só consigo rir, a resposta para sua pergunta é óbvia. Muitos anos. – O que faremos hoje?

- É uma excelente pergunta. – Passo a mão pelo queixo, ficando um pouco pensativo, enquanto ela beberica um pouco de seu café com leite – Vamos ver... É sábado, e está frio...

- A combinação perfeita para maratonar filmes debaixo das cobertas. – Ela constata com os olhos brilhando e concordo, e algo me diz que essa é sua vontade. As crianças nos olham atentamente, ambos mordiscando seus lanches.

- Se estiver sol, podemos sair um pouco agora de manhã, ir andar no parque talvez... E a tarde assistimos filmes. - Olho para ela, que está fazendo uma careta.

- Sair no frio amor? – Ela dá um longo gole em seu café com leite. É, ela realmente quer maratonar filmes debaixo das cobertas – Não podemos ir no parque num dia mais quente?

Volto minha atenção as crianças, que pelo jeito compartilham do pensamento da mãe. Acho que estou em desvantagens de votos aqui, então acabo erguendo os ombros – Tudo bem, fica para outro dia.

- Nossa, os desenhos! – Nossa filha diz do nada. Ela abocanha seu lanche e pula para fora da cama de repente. Mal temos tempo de dizer qualquer coisa, e ela sai apressada do quarto.

- Se agasalhe primeiro! – Ela diz, e logo nosso filho acaba repetindo a ação. Salta da cama e corre para fora do quarto, e consigo ouvir seus passos cada vez mais distantes.

Acabamos trocados por alguns desenhos animados super coloridos, me pergunto quantas vezes devo ter feito algo parecido quando tinha a idade deles. Foi tão inesperado que começo a rir.

- Eles me lembram certa pessoa que também costumava correr para assistir desenhos... – Digo olhando para a porta, e ganho um empurrão de leve no ombro, e ouço suas risadas.

- Eu ainda faço isso. Só me deixa acordar primeiro. – Ela rebate, erguendo seus braços e se espreguiçando por longos segundos – Estava mesmo com disposição de ir em um parque logo hoje?

- Um pouco, por que não né? – Respondo num riso, me aproximando e a abraçando de lado.

- Porque está frio. – Ela me mostra a língua, me fazendo gargalhar e roubar-lhe um beijo.

- Agora que as crianças não estão aqui, pode ser sincera. – Digo e ela já começa a rir – Passar o dia vendo filmes era seu plano desde o começo, não é?

- Era tão óbvio assim? – Pergunta e confirmo erguendo as sobrancelhas – Tá bom, eu tinha pensado nisso desde ontem à noite.

Balanço a cabeça negativamente, sem deixar de olhar a ela – Só vou concordar porque perdi em número de votos, e também porque pode esfriar ainda mais.

- Viu? Temos todos os motivos para seguir o meu plano! – Faço uma careta de brincadeira, e ela gargalha em resposta – Vamos para a sala começar nosso dia preguiçoso?

- Agora mesmo. – Concordo rindo, me colocando de pé e, segurando suas mãos a trago para perto, que também fica de pé. De cara reparo que ela treme de frio, e tocando seu braço noto como ela está gelada – Mas antes, acho melhor se agasalhar.

Ela assente, alcançando a coberta e lançando sobre meu ombro – Leve isso, te encontro na sala.

Deixo o quarto lhe lançando um sorriso, e sigo para a sala em passos rápidos. Ao passar no quarto das crianças, encontrando a luz ligada mas nenhuma delas está aqui, deviam estar com tanta pressa para ver desenhos que nem se lembraram de apagar ao sair.

Desço para a sala e deixo o cobertor sobre um dos sofás, encontrando as crianças envoltas em seus cobertores com olhos fixados na televisão. Vou para a cozinha ver o tanto de bagunça que posso ter deixado para trás. Por sorte não é muita coisa sobre a mesa, mas tem algumas coisas para lavar.

Ajeito e guardo nos armários tudo o que precisa, e começo a lavar as louças. A água está fria a ponto de doer, me dando a impressão de que a cada segundo meus dedos serão congelados.

- Deixa isso pra depois amor... – Ouço atrás de mim, e vejo ela entrando na cozinha, agora já vestida com uma blusa e calça de moletom, além de também ter calçado meias.

- Não é tanta coisa. – Ela passa suas mãos a minha volta, apoiando o queixo no meu ombro – Assim que terminar, irei para a sala.

- Estarei te esperando. – Sussurra me dando uma mordida no pescoço que faz com que eu arrepie. Olho sobre o ombro e a assisto correr de volta a sala antes que eu consiga esboçar qualquer reação.

Francamente, essa mulher aproveita qualquer brecha para me provocar. E eu? Simplesmente adoro.

As louças se resumem em alguns talheres, potes e pratos. Em condições normais conseguiria terminar rápido, mas com a água tão fria, além de mal estar sentindo os dedos, dificultam um pouco as coisas. Mesmo assim, termino tudo o mais rápido que consigo e deixo a cozinha.

- Ufa, terminei... – Digo entrando na sala, sacudindo as mãos algumas vezes.

Ela está em um dos sofás com o controle em mãos e lança seu olhar a mim sobre o ombro. – Você demorou, a cozinha estava bagunçada mesmo.

- É, acabei levando mais tempo do que imaginava... – Sem espera ela me chama, e vou de imediato me sentando ao seu lado e entrando nas cobertas.

- Nossa, você está gelado amor... – Ela diz assim que abaixa novamente. Ela toca meu rosto com ambas as mãos, descendo aos meus braços e finalmente tocando minhas mãos – Meu Deus, não encosta essa mão gelada em mim.

- Ah não? – Sorrio de canto, e de cara ela entende minha intenção.

Sem se conter um largo sorriso surge em seu rosto, recuando um pouco – Ah não amor, nem ouse...

Cerrando o olhar, ergo ambas as mãos e movendo os dedos e chego mais perto – Vamos lá, só um toque. A pontinha do dedo no pescoço, ou então... Aqui na barriga.

- Não, sai! – Em gargalhadas ela segura minhas mãos.

- Sua sorte é que está de calça, senão seria bem pior. – Provoco e aos risos, ela balança a cabeça concordando comigo.

Ela pisca algumas vezes sem me soltar, provavelmente acreditando que eu vou encostar nela com as mãos frias. É tentador, não vou negar. – Mas como foi ficar assim? Você não ia só ajeitar a cozinha?

Arqueio as sobrancelhas, fazendo menção de aproximar as mãos novamente, e ela prontamente me segura, tentando conter o riso – Eu estava lavando a louça criatura. A cozinha gelada e a água congelando, com certeza vou ficar gelado também.

- E ai você vem querendo aprontar e me congelar junto? – Concordo com a cara mais limpa do mundo.

Ela fecha a cara e faz bico, cerrando seu olhar por um instante. De repente vira seu rosto para as crianças, que estão nos olhando com muito mais curiosidade do que para a televisão.

- Crianças, seu pai acabou de dizer que está gelado. – Ela começa a falar olhando para nossos filhos. Pisco algumas vezes olhando para ela – O que acham de vir aqui ajudar a esquentá-lo?

Olho para o outro sofá, e vejo ambas as crianças saltando do outro sofá e vindo a nós, em meio a gargalhadas divertidas. Mal tenho tempo para reagir, quando noto ela envolvendo seus braços em mim e me puxa para si, e ambas as crianças pulam sobre mim, invadindo as cobertas e me abraçando.

Ela da risadas enquanto suas mãos me envolvem firmemente, e as crianças se aconchegam em mim em seus sorrisos que sempre conseguem alcançar o mais profundo que existe em mim.

Balanço a cabeça aos risos, abraçando as crianças. – Vocês não tem jeito... Estão confortáveis?

As crianças assentem animadas, e então volto meus olhos a ela. – Com toda certeza... Agora, quem quer assistir filmes? – Observo ela erguendo suas mãos, e as crianças fazem o mesmo. – E você papai, não quer ver filmes?

Dou risadas com sua pergunta, erguendo uma das mãos – Com certeza quero.

Ela coloca um filme na televisão, enquanto as crianças se ajeitam no sofá. Não leva muito tempo para que elas saiam de onde estamos e vão ocupar o outro sofá, cada um recolhido em sua própria coberta. Com mais espaço para nós, nos ajeitamos no sofá e nos abraçamos, trocando carinhos e olhares durante momentos do filme. Sempre que a olho, me perco em sua beleza, em sua presença que sempre me fez tão bem, desde o dia que a conheci.

Desde aquele dia que amigos nos apresentaram um ao outro, algo me atingiu, e me senti muito diferente em relação a ela. Não era a mera curiosidade de uma possível nova amizade, parecia mais.

Durante todo aquele dia, nos tratamos sem grandes interesses um pelo outro. Eu não buscava me envolver a fundo e pelo que interpretei dela, a situação era a mesma... Mas não podia negar que ela havia me balançado de alguma forma.

Estranhamente, mesmo nos mantendo distantes, trocamos telefones e passamos a conversar com certa frequência. Não nego que estava interessado em saber cada vez mais sobre ela. Podemos não ter deixado isso claro em palavras, mas a forma como buscávamos contato um com o outro já deixou obvio o mútuo interesse.

Admito que fomos resistentes para aceitar o que sentíamos pelas incertezas que habitavam em nós. Não sabíamos o que esperar ou o que iria acontecer, se seria uma nova oportunidade que merecíamos agarrar com todas as forças, ou apenas um motivo de decepção que destruiria ambos.

Tanto que nos tratávamos como amigos... E apenas isso.

Mas é estranho, apesar dos medos que existiam em nós, ainda assim agarramos essa chance sem sequer percebermos. Negávamos e evitávamos, sempre nos mantendo como bons amigos, só que de alguma forma, sempre acabávamos ainda mais próximos um do outro.

Era confuso... Estranhamente confuso.

Havia o medo, mas ainda assim só estar próximo dela me fazia bem. E também, conseguia enxergar que ela se sentia da mesma forma que eu. Sentia medo de se arriscar e se arrepender, mas a sensação de quando estávamos juntos era nítida.

Até que certo dia, meses após termos nos conhecido, notei como já estávamos envolvidos. Sempre juntos em cada vez mais momentos, que as coisas foram acontecendo entre nós de forma natural.

Estávamos unidos, sem sequer haver um pedido de namoro de uma das partes. Naquela hora já não era mais necessário um pedido.

Eu já sorria sem motivos, e me sentia bem só de pensar em seu rosto, em sua voz, e em sua presença. Era um bem que me invadia sem pedir licença, espalhava-se e fazia uma intensa bagunça em meus pensamentos, de forma que me via divagando sobre dias como esses que vivo hoje.

Foi uma surpresa quando saímos juntos pela primeira vez, da mesma forma que me foi uma surpresa unir minhas mãos as dela, e também quando houve o primeiro momento que nos beijamos.

A primeira briga foi uma verdadeira loucura. Apesar de suportável, não era algo que eu queria. Tanto que no primeiro momento fui atrás de tentar resolver tudo com ela. Quem diria que nos acertaríamos tão rápido? Foi até inesperado.

Não levou muito tempo até morarmos juntos... Ou melhor, quando percebi, já estávamos dividindo a mesma casa, e pouquíssimas vezes dormíamos separados. Uma conexão muito forte já existia entre nós, e nenhum de nós fazia questão de tentar romper.

Foi algo que acreditava, e hoje, tantos anos depois, olhando para a família que construímos juntos, sei muito bem que fiz a escolha certa.

E todos os dias sigo fazendo a mesma escolha.

- Amor? – Sua voz sussurrada me desperta, e novamente volta a realidade. Encontro seus olhos e um sorriso carinhoso voltado a mim – O que está pensando?

- Lembrando de algumas coisas... – Sussurro de volta, tocando seu rosto – Coisas muito boas.

- O quão boas são? – Me ergue uma sobrancelha.

- Bom, eu estava lembrando de alguns momentos nossos. – Não consigo conter um dos meus sorrisos bobos ao dizer isso – Se quiser, te digo quais são... E você me diz o quão boas são. O que acha?

Ela sorri de canto, passando seus dedos pelo meu cabelo. – Aceito, me parece uma boa ideia.

Ergo uma das mãos, passando a contar nos dedos – Estou lembrando de alguns dos nossos momentos... Lembrando quando nos conhecemos, coisas que passamos juntos... Lembrando que tenho uma esposa linda e uma família que nunca imaginei ter algum dia...

- Não são boas... – Ela me diz sussurrando, e seu sorriso a mim é lindo como o primeiro que vi – São ótimas lembranças... Chamar apenas de boas lembranças é muito pouco.

- Olha para nós hoje. – Sussurro olhando para as crianças um momento, e voltando para ela – Tantos anos juntos, casados, com dois filhos... É o que eu queria, sem sequer imaginar que queria.

- Eu te entendo... – Ela me diz, e nos abraçamos com força. – Você comigo por todos esses anos, nossos filhos, a vida que construímos esses anos. Era tudo que eu mais queria na vida... Eu não tinha mais esperanças que viveria assim algum dia...

- Nenhum de nós. Parecia tão distante... Tão irreal... – Sussurro, e nossos rostos se aproximam.

- Não acreditava mais que um dia, viveria o que vivo com você hoje. – Me sussurra tocando meu rosto, e nossos olhares se conectam – Obrigado por ser você na minha vida...

- Não precisa me agradecer... Por nada. – Digo, e rompendo a pouca distância entre nós, atamos um beijo que contém todo nosso sentimento, nosso envolvimento e nossa história. O que nós representamos... Contém nosso amor um pelo outro – Eu te amo.

Ela me sorri, e nossos olhares permanecem unidos. Nossas mãos se encontram, e lentamente os dedos se entrelaçam - Eu te amo.

Nossos rostos permanecem próximos, perdidos em nosso momento.

O calor de seu corpo me contagia, me envolve e faz sorrir da forma mais sincera. Sua presença comigo por tanto tempo, juntos de uma forma que eu esperava e nunca imaginava alcançar. O que vivo hoje é tudo que poderia querer.

Estou feliz.

Verdadeiramente feliz.

*****

Meus olhos abrem de repente, e encontro-me num ambiente completamente escuro.

Minha respiração está acelerada, meu peito sobe e desce freneticamente, sentindo um estranho frio invadindo minha pele e percorrendo cada centímetro do meu corpo. Estou tremendo.

Viro a cabeça de um lado ao outro, buscando desesperadamente algo que não sei o que é, até que finalmente me dou conta. Estou sozinho.

Um estalo me ocorre, com imagens surgindo em meus pensamentos e me ergo com o sentimento de desespero tomando meu peito, enquanto olho ao redor incessantemente.

Imagens daqueles momentos, daqueles sorrisos, imagens daquela pessoa comigo e da família que construímos sacodem meus pensamentos, agitam meu peito aflito. A lembrança daquelas risadas e daquele dia tão perfeito... Até que, enfim, constato a verdade.

Um sonho.

Foi tudo maldito um sonho.

Por isso, eu odeio dormir.

Suspiro pesarosamente, apoiando a cabeça na mão e apertando os olhos, tendo o ruído da minha própria respiração como minha única companhia.

Eu não entendo... Por que ainda sonho com essas coisas?

Por que essa tortura não acaba?

Foco minha atenção em mim mesmo. Me encontro numa imensa cama tendo cobertores pesados sobre minhas pernas, em meio a um quarto gelado sem nenhuma fonte de luz. Concentro-me um instante, numa tentativa ouvir qualquer ruído que seja, porém não escuto nada.

Me sinto sozinho em meio ao vazio.

Livro-me dos cobertores e fico de pé, avançando para fora desde quarto, enquanto a decepção sufocante cresce irreprimível em meu peito. Quando isso me ocorre, sempre é difícil conter tal sensação, e nem sempre consigo fazer isso.

Avanço pelo ambiente, mergulhando mais e mais no sombrio e frio abismo silencioso que estou, já ciente do que irei encontrar. Quartos vazios, uma sala escura, uma cozinha com organização nunca maculada... Sombras, sombras e mais sombras.

Isto é o que encontro em cada lugar desta casa, e não importa o quanto ande, é isso que continua emergindo diante de mim.

Torço a boca, voltando a romper o esmagador silêncio com o ruído dos meus passos.

Caminhando para a porta da casa, ajeito meu pesado sobretudo negro ao corpo, sacudo a cabeça algumas vezes de forma que meus longos cabelos encontrem sua liberdade ao cair pelas minhas costas. Meus olhos encontram um espelho ao lado da entrada, e posso confrontar minha feição.

Não encontro leveza e um pingo de tranquilidade.

Meus olhos estão sombrios e tensos, sem qualquer sinal do brilho que um dia existiu, e não encontro vestígios de sorrisos em mim. E os sorrisos que ainda me surgem, raramente são verdadeiros.

Encontro-me frente a essência que sempre emerge quando estou sozinho. Minha verdadeira essência... Envolta em densas trevas.

Observando quem, e o que, sou hoje por uma última vez, deixo a casa em meio a passos lentos e olhar baixo.

Avanço por este mundo sombrio e tão estranho, sentindo esse estranho frio que parece envolver meus ossos, escondo as mãos nos bolsos e sigo meu passo, observando tudo ao meu redor. Tudo que meus olhos enxergam parece tão sem graça, parecendo um grande amontoado de "mais do mesmo", onde nada possui um verdadeiro significado e importância, além do que as próprias pessoas criam.

Pessoas passam por mim, todas sendo semelhantes a grandes manchas cinzentas e sem relevância. Por mais que eu tente, nada nelas realmente chama minha atenção de forma a me distrair, e o mesmo se vale para o restante do mundo, para o ruído dos carros, a voz das pessoas, o som do vento ou cantar dos pássaros.

Observo a tudo. Nada escapa aos meus olhos... Mas ainda assim...

Para mim, é como peregrinar por um mundo vazio.

A tentativa de me distrair é falha. Minha mente vagueia de volta aos momentos daquele sonho, que em meu peito existe o desejo de nunca ter despertado dele.

Ao sair daquela cama, mesmo já sabendo qual era a verdade, uma parte de mim tinha esperanças de escutar algo... Tinha esperanças de encontrar alguém... Tinha esperanças de encontrar ela...

Realmente tinha esperanças em meu peito...

Esperanças de que tudo aquilo fosse mais que um sonho...

Esperanças de que aquela vida fosse real... Uma vida que eu almejava... Que sonhava todos os dias...

Esperanças de que aquela fosse minha vida atual.

Esperanças de que ela ainda estivesse presente.

Tudo acabou, aquilo não existe a muitos anos.

Meu antigo "Eu" deixou de existir a muitos anos, levando consigo um nome, a esperança, e todos aquele sonhos. E no lugar, eu estou aqui.

Eu surgi no lugar.

A muitos anos estou vivo, distante de tudo isso... E mesmo assim, esse sonho torna a se repetir.

Um sonho de tantos anos atrás, pertencente a uma vida que já não existe mais. Então por que?

Por que?

Por que ainda se repete, mesmo após tanto tempo? Após tantos anos?

De que adianta perguntar? Nunca alcancei uma resposta nas vezes que me perguntei isso.

Talvez seja um vestígio de quem fui um dia, um vestígio do meu passado que recusa-se a desaparecer nas sombras e sempre torna a me atormentar.

Porém, o que acontece quando se entende a verdade e perde-se a esperança?

Suspiro uma última vez, erguendo meus olhos ao céu nebuloso. O vento frio abraça meu corpo, e todo o ruído do das pessoas e do mundo a minha volta parecem completamente distante.

Convença-se... Tudo aquilo foi uma fantasia que mergulhei um dia...

Uma ilusão que agarrei na tentativa de afogar-me para sempre numa felicidade com prazo para acabar.

Uma ilusão que criou esperanças em meu peito.

Uma ilusão que continha esperanças por dias melhores.

Uma ilusão que ansiava por dias envoltos em alegria.

Porém essa ilusão acabou já a muito tempo. E com ela, minha felicidade também acabou.

Convença-se...

Foi tudo um sonho...

Foi tudo um sonho...

Foi tudo um sonho...

E quando abrimos os olhos para a verdade, finalmente entendemos.

Os sonhos nunca tornam-se reais.

Por isso, sei muito bem que esse antigo sonho... Nunca se tornará real.

Por isso, sei muito bem que nunca existirá um verdadeiro "melhor dia" para mim.

E talvez... Seja por isso que, em segredo, ainda sinto o peito doer todos os dias...

...

Espero que em breve, chegue o dia em que a escuridão que reside em mim apague cada um dos meus sonhos.

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