Capítulo 10 - parte 1 (rascunho)

"Bem lá no fundo você sabe que só existe uma única mágica, um único poder, uma única salvação, e que ela se chama amor."

Hermann Hesse.


Quando viu que havia apenas areia manchada de sangue, o jovem feiticeiro levantou-se, cheio de dor e ira. Tudo à sua volta começou a rodopiar, tomado pelo tornado que emanava dele. Escureceu tanto que o seu corpo era apenas uma sombra e todos os que olhavam, mesmo que de longe, saíram correndo, exceto os criminosos. Raios e trovões corriam em todas as direções, saindo dele e do tufão em cima de si. Os seus olhos emitiam um brilho branco e intenso, parecendo dois faróis cujo efeito dava ainda mais medo em quem olhava.

– Assassinos! – O grito soou tão alto que pareciam as trombetas do juízo final e deve ter sido ouvido em todo bairro. Logo após, um trovão ensurdecedor sobrepujou todo e muitos precisaram de tapar os ouvidos.

Bryan ergueu a mão e o seu medalhão, o mesmo que eles extorquiram da Mônica, pulsou, mas foi impotente contra a raiva de Apolo e o temporal agravava-se sem parar. Assustado, o bruxo puxou Carlos e correu para o lado, abrindo uma passagem e fugindo, deixando os capangas estáticos a olhar para o mago. No auge da dor, a força eclodiu, Os raios alcançaram os criminosos e tudo o que havia em um raio de cinquenta metros enquanto toda a zona sul ficou sem energia. A escuridão tornou-se luz, uma luz fantasmagórica que matou os bandidos e transformou os corpos em poeira. O único poupado foi Allan porque estava ao seu lado. Até mesmo o corpo do dragão desapareceu na poeira que se levantou e transformou em um nevoeiro tão intenso que não se via nada a mais de cinco metros à frente. A seguir, Apolo desfaleceu e restou apenas a forte névoa.

― ☼ ―

Tudo era silêncio, um silêncio pesado e doloroso. A consciência retornou devagar e Apolo sentiu que o silêncio não era total, de fato. Havia um murmúrio suave, talvez o barulho de água correndo. Parecia água correndo em uma pia, mas era longe dele. Sim, e havia um pássaro a cantar, também muito longe. Agora podia ouvir a brisa bem suave e sentir o frescor do seu toque quando o vento ficava um pouco mais intenso, ao mesmo tempo que o farfalhar das cortinas se movendo de forma sutil traziam um novo som para os ouvidos. A seguir veio uma lembrança de um sorriso e ele murmurou uma simples palavra:

– Mônica!

O som dos seus lábios despertou-o e Apolo abriu os olhos. Estava deitado na cama e, não longe dele, Allan permanecia sentado em uma poltrona, com a cabeça caída, provavelmente dormitando. O feiticeiro sentou-se e Allan levantou-se de um salto, aproximando-se preocupado.

– Sente-se melhor, Apolo?

– O que aconteceu, quero dizer, depois que... – perguntou, sentindo uma dor enorme e um nó na garganta ao tentar pronunciar o nome da garota.

– Não se lembra de nada?

– Sei que matei muita gente, mas é tudo confuso.

– Você ficou exausto, depois de libertar toda a sua ira – explicou Allan, calmo. – Matou muitos, sim, mas não se preocupe que foram só os bandoleiros. Você deixou todo este lado da cidade debaixo de uma bruma intensa, antes de perder os sentidos e aproveitei para o trazer para casa sem ninguém ver.

– Faz quanto tempo?

– Você ficou assim dois dias, Apolo – respondeu o amigo. – Ficamos todos muito preocupados. Eu e Helena fizemos vigília por turnos.

– Obrigado, Allan – disse Apolo. – Você é um bom amigo, talvez o único que eu já tive na vida.

O feiticeiro levantou-se e foi ao sanitário. Quando voltou, parecia que tinha acabado de tomar banho e abriu a porta do quarto. Helena estava na sala, meio adormecida e com expressão de infelicidade. Sem abrir os olhos, disse:

– Não devia deixar Apolo sozinho, Allan. Mas deixe que está quase na minha hora. Eu vou para lá.

Abriu os olhos e deparou-se com o namorado. Ela não disse nada, apenas levantou-se e caminhou devagar os poucos passos que os separavam. A seguir, abraçou-o e ficou um assim, quieta. Nenhum dos dois soube dizer o tempo que se passou, até que Helena afastou o rosto dele e disse:

– Sinto muito, meu amor, sinto muito mesmo.

– Eu também, mas agora está feito – concordou, triste. – Eles assassinaram-na a sangue frio e vou caçar aqueles dois demônios até no inferno, se for preciso.

– Acho que nós dois precisamos de ter uma boa conversa, mas primeiro você tem que comer alguma coisa, Apolo. Deve estar fraco.

― ☼ ―

Allan e Helena observavam o feiticeiro, nadando. Ele começou há muito tempo, tempo demais na opinião da garota, e ainda não tinha parado, indo de um lado para o outro, sem sessar, incansável.

– Ele está demasiado abalado – disse o cavaleiro, muito preocupado. – Desconfio que sir Morgan errou de forma crassa.

– Sim – murmurou Helena, triste. – Não é preciso ser mágico para saber a quem o coração dele na verdade pertencia.

– Tem razão, Helena – admitiu Allan. – Mas quando sir Morgan me instruiu as coisas eram para ser muito diferentes. Ele viu no futuro e vocês deveriam casar e ter dois filhos. Apolo teria três filhos, na verdade: o da Mônica e dois seus.

– E agora, talvez nenhum – disse Helena com um suspiro triste. Sacudiu a cabeça e continuou. – Eu não vou mais ficar com ele. Sei que Apolo gosta muito de mim, mas é bem diferente do que sentia no passado.

– Acho que não devia se precipitar – aconselhou Allan. – Na verdade, todos devemos esperar um pouco.

– O que você está escondendo? – perguntou ela. – Vem cá, faz quanto tempo ele tá nadando daquele jeito, sô?

– Mais de duas horas – respondeu Allan. – Sobre ele e você, eu não sei dizer muito; mas, em relação ao resto, há coisas que sir Morgan me contou. Se me jurar silêncio, direi para você.

– Claro que eu juro, mas...

– Por mais que ele esteja a sofrer, Helena, Apolo não pode saber o futuro ou ele mudará e sir Morgan me disse que, conforme a situação, isso pode provocar uma catástrofe ou, no mínimo, muito sofrimento. E já andou mudando.

– Está, bem – disse Helena, entrando em casa. – Me conte o resto, por favor. Eu preciso de saber e quero ajudá-lo.

― ☼ ―

Apolo sempre usou a natação como um escape para os problemas dele ou então como algo que lhe dava prazer e alegria, especialmente contra as condições de stress. Desde criança, quando se sentia aflito, confuso ou magoado, ia para o clube e nadava sem parar por uma hora. No final, isso até lhe rendeu algumas medalhas em competições juvenis, mas nunca se interessou por torneios. Para ele, a natação era mesmo uma diversão ou válvula de escape e sempre sentia um forte alívio com o cansaço gerado pelo esforço constante, além de isso lhe propiciar meditação. Pela primeira vez na vida, por mais que nadasse, a dor não passava, nem mesmo aliviava, e ele insistiu com cada vez mais vigor, procurando acalanto a cada braçada que dava até que o cansaço o venceu.

Exausto, saiu da água e entrou debaixo do chuveiro ao lado da piscina para tirar o cloro. Foi para o quarto e secou-se, colocando uma bermuda e camiseta. Quando saiu do closet, Helena esperava por ele, sentada na cama.

– Então, meu amor – pediu a garota. – Você precisa de pôr isso para fora. Eu estou triste, mas não estou zangada. Sei muito bem que tentou negar esse sentimento, mas ele foi mais forte que você. Isso aconteceu e não é culpa sua, nunca foi.

– Mas a morte dela é culpa minha, Lena.

– Que bobagem, amor – contestou Helena, estendendo o braço a pedir que se aproximasse. – Todo mundo o viu proibir Mônica de sair atrás de vocês e você não pode ser considerado culpado de existir, meu amor. Nem mesmo os pais dela o culpam por alguma coisa, antes pelo contrário. Todos vimos na TV o seu gesto implorando para ela sair dali, mas eu sei que a minha amiga jamais abandonaria o amor da vida dela sozinho. Ela escolheu o seu destino porque preferia morrer a ver você ferido.

Helena fez Apolo sentar ao seu lado e puxou a sua cabeça contra o peito, fazendo cafuné. O primeiro soluço passou desapercebido, mas os seguintes foram impossíveis de conter e a garota apenas aguardou. Apolo chorou até que as lágrimas secaram e, depois, ergueu-se e passou a mão nos olhos.

– Desculpe – disse. Levantou-se e foi para o sanitário passar uma água no rosto. Da porta, Helena disse:

– Uma tal Sara ligou. Disse que trabalha para você e estava preocupada porque viu tudo na televisão. Ela não entendeu nada do que você fez, mas reconheceu a Mônica. Eu disse que você precisava de repouso, mas insistiu em passar aqui mais tarde. Allan já tranquilizou Matilde.

– E os pais dela? – perguntou. – Onde estão?

– Saíram um pouco até ao shopping. Estão em choque. O pior de tudo é nem ter um corpo. Allan disse que era melhor continuarem aqui na sua proteção.

– Bem, meu amor – disse Helena, parando com rodeios. – Depois disto, acho que não somos mais namorados, então me mudei de volta para o quarto. Assim que eu arranjar algum trabalho e puder alugar algum lugar, me mudo.

– A última coisa que Mônica me pediu foi para cuidar de você porque você precisava muito mais de mim do que ela, que eu deveria ter meu filho com você – disse, olhando nos seus olhos.

– Não adianta apenas um amar, Apolo – contestou Helena. – Eu confesso que estava maravilhada e deslumbrada com você, como se fosse um caso mal resolvido que precisava de ser acertado e, com certeza, era isso mesmo. Se eu o amasse como já amei, estaria arrasada por você ter escolhido a minha melhor amiga, mas não. Claro que estou triste, mas não como deveria. Você não precisa de ter qualquer obrigação comigo, meu amor. Nada é culpa sua. Você não é o monstro do Carlos.

– Tudo bem – disse ele, aliviado. – Mas não se preocupe que não a deixarei desamparada. Vou lhe dar um apartamento e tudo o que você perdeu com a morte dos seus pais. Eu apenas lhe imploro que fique nesta casa até que seja seguro. Já perdi uma e acho que não resistiria a uma segunda perda. Querendo ou não, você é muito importante para mim.

Helena abraçou-o com força e depois beijou os seus lábios.

– Vamos – disse, puxando por ele. – Vamos tomar um café.

– Ainda bem que meus pais não curtem televisão, senão iam ter um chilique com aquilo tudo – comentou Apolo.

– Não acha melhor ligar para eles antes que alguém lhes conte que o viu a lutar com um dragão, Apolo?

– Melhor não – respondeu o feiticeiro. – Eles notariam logo pela minha voz que há algo errado e viriam para cá. Quanto menos gente envolvida melhor.

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