O mal tem várias faces
A constatação da frase que minha avó costumava me falar sempre que eu saia, veio numa fria madrugada no começo de setembro, os pais de uma amiga minha haviam saído e ela me convidou para passarmos um tempo juntos.
Acabei perdendo a noção do tempo, inebriado com o vinho, o cigarro e o perfume dela. Por volta da zero hora daquele dia, sai da portaria do prédio dela, descendo a rua escura e deserta sozinho. Teria que descer 3 quarteirões e depois virar à esquerda para sair no meu ponto de ônibus.
Não sou medroso, nem nunca fui. Mas a voz da minha avó me alertando, desde que eu era mais novo, não saia da minha cabeça.
"Tome sempre muito cuidado e ande bem alerta. Pois o mal tem várias faces."
Comecei a rezar, e sentir que estava sendo seguido. Um vento gélido começou a soprar, folhas secas voavam fazendo barulho. Tive que fechar um pouco os olhos para conseguir continuar enxergando.
Finalmente o final do terceiro quarteirão, o poste do outro lado da rua falhava, o que me deixava nervoso e tomava a minha atenção. Pensava se não valeria mais a pena andar mais um quarteirão, não despregava os olhos do poste.
Me decidi por continuar descendo a rua até a próxima esquina, quando dois homens surgiram da rua transversal. Um deles aparentava estar com uma arma na parte da frente da bermuda, o outro estava nervoso, olhando para os lados a procura de um sinal para bater em retirada.
_Passa tudo comédia.
O tudo era meu celular, o dinheiro do ônibus e provavelmente um chiclete.
_Calma cara, eu vou passar tudo, não precisa violência, não precisa tirar a arma.
Foi quando eu percebi que a arma em questão era a carteira do infeliz. Decidi não entregar nada, já ia me virar para correr quando um deles me jogou no chão.
Comecei a gritar para pararem, um deles me chutava as costas. O baque surdo ecoava pela rua junto com meus gritos.
Quando dei por mim, os assaltantes estavam correndo. Havia um taxi parando perto de onde eu estava e um homem, numa janela escura do segundo andar do prédio, gritando que iria atirar em alguém na próxima vez.
O taxista foi o primeiro a se preocupar comigo, aparentemente o homem estava zangado com todos os envolvidos na confusão.
_Você está bem? O que aconteceu?
Contei ao taxista mais ou menos como eles me abordaram e como tentei resistir ao ver que não havia arma.
_Se eles não estão armados, por que não vamos atrás deles?
_Ótima ideia, já estou descendo.
Finalmente o homem da janela voltou sua atenção para a vítima.
Sempre fui contra qualquer tipo de violência, sou extremamente pacifico e fazer justiça com as próprias mãos não é algo do meu feitio. Mas alguma coisa no ar estava me impelindo contra os meus instintos, quase como se fosse uma música guiando meus pés.
Antes que eu me levantasse, o homem já estava na rua, trajado para não ser reconhecido. Usava uma blusa de frio com gorro preta, óculos escuros e uma bandana também preta cobrindo o nariz e a boca.
Ele era imponente, mas ao mesmo tempo esquisito. Quase como um líder, se portava como se soubesse o que estava fazendo, mas ao mesmo tempo era alguém que, normalmente, não seria seguido por ninguém.
_Deixa que eu dirijo.
Vi o taxista entregar as chaves para o estranho. Na hora fazia o maior sentido ele dirigir, afinal, ele era o profissional, ele era o experiente.
Entramos no carro.
_Não devemos ter nenhuma relação, não devemos saber os nossos nomes, e vocês devem esquecer a fisionomia um do outro. Ninguém além de nós deverá saber o que fizemos, podemos ser julgados por injustos que não entendem as leis do universo.
Vi que o taxista virou a placa que continha seus dados de modo que ninguém conseguisse ve-los.
O homem estranho nos entregou alguns panos.
Enrolem nas mãos, assim evitarão marcas de luta em vocês.
Obedecemos.
_Por que o senhor esta dirigindo no sentido bairro? Não faria mais sentido ir em direção ao centro?
O homem virou-se para o taxista e deu uma risadinha.
_Não, eles vão na direção das residências, não vão perder tempo indo para uma área onde só tem lojas fechadas e nenhum pedestre.
O homem apagou os faróis do carro.
_Para eles não marcarem sua placa.
Os dois assaltantes que me abordaram agora haviam se encontrado com mais um, estavam na parte mais escura da rua, encostados num muro fumando o que parecia ser maconha.
O homem parou o carro na esquina, longe deles. Descemos e fizemos o resto do percurso a pé. Dei uma conferida no carro, não dava para ver a placa.
O sujeito estranho ia na frente, o taxista logo atrás e eu por último. Decidi por a gola da minha camisa no meu nariz, para esconder parte do meu rosto. Nosso líder deu a volta, para cerca-los, eu e o taxista continuamos em frente.
Quando estava tudo pronto para a batalha, o homem começou a falar.
_Dois contra um é covardia, e estava até com um pouco de pena de vocês, já que seriamos 3 contra 2. Mas agora vejo que será justo. Um para um.
Então ele foi para cima do primeiro, o agarrou pelo pescoço e começou a soca-lo nas costelas. Os outros dois tentaram fugir, e eu instintivamente soquei um deles no maxilar. Senti o impacto viajando pelo meu braço e no momento fiquei extasiado.
Depois do maxilar dei uma joelhada desengonçada na barriga dele, o que quase me fez cair. Ele ficou dobrado por algum tempo, o que me fez recobrar a consciência e ver como aquilo era absurdo.
Olhei para o lado, o taxista estava com as mãos no joelho, tinha um aspecto de cansado. O pivete que ele enfrentou estava deitado no chão, aparentemente rolando de dor.
O único que não parava era o homem de preto. O sujeito que ele havia pegado para cristo já estava todo ensanguentado, soltava um gemido constante e aparentemente estava semiconsciente.
_ Vamos, seus frouxos, acabem com eles! Deixem toda a raiva fluir, descontem neles tudo o que aconteceu de errado em suas vidas.
O taxista se opôs.
_ Você quase matou aquele cara, você é doente.
_Te juro que ele irá sobreviver.
Me sentei ao lado daquele que minutos atrás tentou me assaltar.
_Vamos seus molengas, não tem ninguém aqui para julga-los. Nenhum falso moralista que é contra a violência para falar que o que você fez é errado.
_Mas eu estou aqui, e isso é errado.
_Você já começou, termine logo o serviço. Amanhã quando acordar será um novo homem.
Continuei imóvel, o taxista olhava firmemente para mim. Também não cederia.
_Ótimo, sobra mais para mim.
Ele pegou os outros dois homens e os torturou como o primeiro. Quando finalmente se satisfez de toda a selvageria, devolveu as chaves para o taxista e nos aconselhou a evitarmos aquela área pelos próximos anos, principalmente sozinhos a noite.
Voltavamos para o taxi numa ordem um pouco diferente. O taxista na frente, eu logo atrás e o homem por último.
_Lhes darei uma carona de volta para onde nos encontramos, depois cada um seguira o seu rumo.
Mas quando olhamos para trás, estávamos sozinhos.
Quando voltamos até a esquina do assalto, percebemos que o prédio de onde o homem saiu estava parcialmente em ruínas, provavelmente desabitado.
Foi nesse momento que percebi que realmente o mal tem muitas faces.
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