Capítulo 9
"O pensamento é a nossa dignidade. Tratemos, por conseguinte, de pensar bem, pois aí é que está o princípio da moral."
Blaise Pascal.
A Cidadela é a cidade mais bela que eu já vi, erguida no meio de um conjunto enorme de cascatas de águas cristalinas em vários desníveis que desenham infindáveis arco-íris pelos raios do sol na encosta de uma gigantesca cordilheira verdejante. Os edifícios são de diversos tipos de cristal, erguidos pela força da magia há quase dois milênios. É um planeta com quase noventa por cento de água e de clima sempre tropical e ameno, um verdadeiro paraíso. É a sede dos magos, o nosso mundo desde que a maioria dos druidas abandonaram a Terra com as perseguições, em especial as da Igreja e do Império Romano. Era um planeta deserto de vida inteligente, pequeno e agradável, contendo apenas uma cidade.
O nosso Universo é formato por planos, treze planos ao longo das dimensões, como se cada um fosse um pequeno universo do Universo. Quanto menor o número do plano, mais densa e primitiva é a matéria, tornando-se cada vez mais sutil e energética à medida que subimos neles. A Terra faz parte do terceiro plano, enquanto a Cidadela, no Mundo de Cristal, fica no décimo terceiro. Por uma coincidência interessante, sempre que saltamos de um plano para outro, vamos encontrar um mundo semelhante ao nosso em atmosfera e composição, mas nós, magos de primeiro nível, podemos passear entre os planos e também no espaço. Se desejar, por exemplo, eu posso ir a Marte.
Por falar em níveis, os magos são divididos em dez níveis ou graus, sendo o décimo mais fraco e o primeiro mais forte. Apenas os magos e feiticeiras de primeiro nível conseguem atravessar planos e apenas uns poucos, muito poucos, conseguem usar os seus poderes sem auxílio de objetos como um bordão, amuleto ou varinha, por exemplo, que auxiliam na concentração dos feixes de pensamento e das energias subatômicas. Esses são conhecidos como magos superiores. Há outros que até conseguem fazer umas poucas coisas sem os objetos, mas também são minoria e nenhum acima do quarto grau é capaz, pelo menos até hoje.
Para os magos de outros níveis poderem viajar entre mundos, eles usam as cápsulas planares que são feitas de cristais especiais, como rubis ou diamantes, entre outros. Tais objetos são impregnados de energia capaz de abrir portais e a carga deles fica a critério dos estudantes dos últimos anos e do nível um.
Quando tinha dois anos, os meus pais – que como disse eram de quarto nível –, mandaram-me para a Cidadela de forma a receber a melhor das educações possíveis e assim foi.
Os meus poderes cresciam a olhos vistos e eu tinha muita facilidade para aprender quase qualquer coisa que desejasse. Em pouco tempo, descobri que podia fazer muito mais que os outros magos da minha idade, até mesmo os bem mais velhos. Nós magos somos canhotos e só podemos usar os nossos poderes com a mão esquerda, mas eu era uma exceção que assustava todos porque podia usar ambas as mãos com igual destreza e força.
Quando descobriram isso e notaram que aos seis anos eu já tinha tanta ou mais força que um mago adulto de primeiro nível, comecei a ser educado para ser um Guardião da Segurança e da Guerra. Os guardiões são os mais poderosos dos magos na sua área e, além disso, alguns são os líderes, como ministros em um governo normal.
O Guardião da Segurança é um mago especializado na arte da guerra, mas os séculos de paz não contribuíram grande coisa para aperfeiçoar esta arte. Eu tornei-me em tempo recorde um grande guerreiro e não podia ser derrotado por ninguém, nem por mesmo todos os outros guardiães reunidos, mas era novo demais para ser um dos donos da capa vermelha.
O meu Guardião dos Aprendizes – que possui uma capa prateada por fora e vinho por dentro – achou que os meus poderes eram tão grandes que eu deveria receber o aprendizado para a maior quantidade possível de conhecimentos. Por causa disso, eu tinha que trabalhar três vezes mais duro que os meus companheiros, mas gostava de ser o melhor, de ser superior. Bem sei que de certa forma isso era um pouco de soberba, mas eu gostava e muito.
Tornei-me o aluno favorito do Guardião da Natureza por ter aprendido bem rápido, mas, como sabes, os animais são o meu fraco e eles me amam tanto quanto eu a eles. Aprendi a língua de alguns, a ler os pensamentos deles e chamá-los, a transmitir o que eu queria e amei-os ainda mais por isso. Com as plantas, aprendi a ouvir o que elas transmitiam e era capaz de absorver a sua energia de forma a poder curar alguém ou até mesmo o oposto.
Esse ano foi o meu preferido e, se me dessem a escolher, eu teria ficado como Guardião da Natureza, vestindo a Túnica e a Capa Verdes. Para minha tristeza, o ano passou rápido, como tudo o que nos agrada.
Assim, acabei aprendendo todos os graus de conhecimento que nós os magos possuíamos, exceto o conhecimento do Guardião da Sabedoria – ou Saber Ancestral – porque esse guardião não vivia na Cidadela e era meio que um segredo. Ele cuida do nosso saber acumulado ao longo das eras para que jamais se perca.
Diziam que ele surgiria para nós quando fosse o momento oportuno e sempre achei uma tolice... até há pouco tempo. Outra coisa que se dizia, era que o conhecimento para o encontrar ficava gravado no nosso subconsciente a partir do momento em que iniciávamos o longo aprendizado da magia, na verdade, que alguém nos implantava isso para quando necessitássemos.
O meu último curso foi como Guardião dos Portais e confesso que foi o mais extenso, exaustivo e difícil, porque, entre outras coisas, envolvia conhecimentos profundos de astronomia e básicos de astrofísica, sem falar em biologia, geologia, química e muita matemática, que já se aprendia em outras etapas.
É, na verdade, o meu treinamento na Cidadela foi o mais longo da história do Mundo de Cristal, como se eu fizesse uma "panfaculdade". Nada do que aprendi na UFRGS foi novidade para mim porque eu seria igualado a um doutor em matemática, física, química, biologia, geologia e até um pouco de engenharia e foi por isso que fiz os cientistas do teu pai ficarem perplexos daquele jeito. Aprendi como identificar os planos por onde passava e a me deslocar entre os inúmeros mundos deles. Também descobri uma outra faculdade que, mais uma vez, me punha acima de todos colegas e professores: eu podia saltar entre os planos sem limite de saltos e de planos, ou seja, eu posso ir direto da Terra para a Cidadela num só portal, enquanto a maioria tinha de fazer isso em umas quatro a seis etapas, dependendo da sua capacidade.
Aos dezesseis anos, eu recebi o grau de Mago de Primeiro Nível Superior, mas durante os meus estudos com os portais, descobri subtilezas nos planos energéticos que me deram uma pista para algo maior e incrível. Por isso, eu dirigi-me ao Guardião Supremo, o líder de todos os guardiões, na verdade líder de todos nós, os magos, e pedi uma audiência com ele que me atendeu sem demora porque gostava muito de mim. De fato, ele era um bom amigo dos meus pais e me conhecia desde bebê.
– O que foi, Igor? – perguntou-me, curioso. – Noto que você anda excitado com alguma coisa.
– Senhor, eu sinto distúrbios nas linhas planares como se fossem interferências energéticas subatômicas que ocorrem durante uma abertura de portal com forte ênfase nos níveis extremos. Algo como pequenas reverberações.
– Bem – disse ele, confessando algo que me deixou perplexo, no início. – Eu nunca fui fã de mecânica quântica, então que tal me explicar de forma mais simples?
Eu não podia conceber o mestre de todos os magos como não sabendo algo que eu conhecia tão bem e essa confissão me chocou um pouco até que, naquele momento, dei-me conta de duas coisas: não é preciso conhecer as leis físicas que regem a matéria e energia para sabermos utilizar os nossos poderes de forma correta e a segunda era que um líder não precisava de saber tudo e sim delegar o poder aos que sabem, administrando o conjunto com a devida harmonia. Pondo de lado esses pensamentos, concentrei-me no que desejava, porque o guardião continuou:
– Então? – sorriu, pegando um copo. – Estou aguardando.
– Há mais de treze planos no Universo, senhor – disparei de chofre antes que perdesse a coragem –, e gostaria muito de autorização para pesquisar isso.
Naquele momento tive muita dificuldade para segurar uma boa gargalhada, pois o nosso bom e velho mestre bebia um gole de água quando o bombardeei com essa informação inesperada, fantástica e revolucionária. Por consequência, ele arregalou os olhos e engasgou-se logo a seguir, cuspindo água para todos os lados e ficando com o rosto vermelho.
Quando notei que estava aflito, recorri aos meus poderes, fazendo a água derramada evaporar e eliminando os fluidos da sua glote. Aliviado, ele agradeceu e perguntou:
– Igor, de onde tirou essa ideia?
– Das minhas observações, senhor – respondi, estranhando a pergunta – onde mais teria conseguido isso se só eu aventei essa hipótese.
– Há um homem que insiste nesse assunto há séculos, filho, mas você não o conhece. Como pretende fazer para pesquisar isso mais a fundo?
– Criar e instalar uns aparelhos especiais nos planos extremos, ou seja, aqui e no primeiro plano. Quem é esse homem?
– Esse homem não vem ao caso. Ele é um segredo muito grande, Igor. – O guardião supremo ficou calado por alguns minutos, refletindo sem parar. – Filho, nós investimos muito tempo e energia na sua educação, então eu tenho um grande respeito por todo esse saber que possui porque muitos dos seus mestres disseram que você já os superou faz tempo, mas, se as suas experiências forem perigosas, temo que possa morrer e seria uma perda inestimável. Você já se deu conta que os seus poderes são muito maiores que todos os magos da Cidadela reunidos?
– Nesse caso, que risco eu poderia correr, senhor?
– A sua lógica é bem fundamentada. – O mago deu um suspiro longo. – Em breve, pretendo aposentar-me deste cargo. Trezentos anos já é demais e você é o candidato ideal, embora lhe faltem uns vinte anos a mais, no mínimo. Façamos o seguinte: você aguarda dez dias para eu pensar e me aconselhar com alguns guardiões, ok?
– É justo, senhor, obrigado – inclinei-me para ele e saí um tanto satisfeito. Eu sabia que ele não concordaria de cara, mas achei que ia enfrentar muito mais resistência.
Voltei a pensar na minha constatação anterior. Sim, o guardião supremo não era um supermago e tão-pouco era omnisciente; tratava-se apenas um homem sábio e comedido, com muita experiência de vida. Mas se aquilo que concluí era verdade, então em que lugar eu me encaixaria? Eu estava acima de qualquer guardião em conhecimentos, mas, para governar, não bastava apenas ter todo esse saber.
Ele disse que eu seria a escolha mais adequada, mas eu não estava tão certo disso, sem falar que não tinha interesse.
― ☼ ―
Com toda a paciência, esperei por dez dias. Aproveitei para me ausentar um pouco e fui a Porto Alegre visitar os meus pais, que ficaram muito felizes por me verem. Na volta, desci até ao primeiro plano para pensar a respeito das minhas análises e teorias.
É raro nós magos nos deslocarmos abaixo do terceiro plano porque a natureza daqueles mundos não se apresenta agradável aos nossos olhos, sendo a maior parte deles de ambientes hostis, mas eu conhecia alguns planetas bem agradáveis e fui lá para sentir os distúrbios mais de perto. Era um mundo frio porque orbitava um tanto quanto longe do seu sol e no verão a temperatura não passava de vinte graus, como naquele caso. A vegetação era diferente para resistir às intempéries, lembrando as grandes coníferas canadenses. Fiquei umas três ou quatro horas naquele local, mas precisava de ter muito cuidado porque se tratava de um mundo densamente povoado, com uma civilização equivalente ao final do século XIX e bastante aguerrida.
Eu estava em uma região inóspita daquele planeta, considerada demasiado quente pelos seus donos, embora para mim fosse um clima moderado. Por isso, ali era quase sempre bem vazio.
Daquela vez não consegui detetar coisa alguma com os meus poderes e concluí que precisava de instrumentos mais sensíveis, então resolvi retornar à Cidadela.
Dois dias depois, o guardião supremo mandou chamar-me. Eu estava nervoso porque não queria perder a oportunidade de fazer aquela pesquisa, que considerava muito importante. Um detalhe que eu não mencionei é que, como os magos são de todos os lugares do mundo, na Cidadela falamos em celta, a língua ancestral, a língua dos primeiros magos.
Não precisei de esperar muito e, quando entrei na sala mais alta do mais alto edifício de cristal, lá estava o nosso líder, aguardando. Vi pelo seu olhar e sorriso que ele notou que eu me sentia bastante nervoso. Sempre amável, convidou-me a sentar, enquanto fazia o mesmo. Bastou começar a falar para me atinar que as coisas não seriam um mar de rosas:
– Então, Igor, soube que foi à Terra – começou por dizer. – E como vão as coisas por lá? Os seus pais estão bem? Tenho saudades deles.
– Estão muito bem sim, senhor. Como eu fui lá no intuito de ver os meus pais, confesso que não prestei grandes atenções à situação reinante.
– Lembre-se, filho – a sua voz era um tanto quanto recriminadora –, de que é sempre demasiado importante estar a par de tudo o que nos rodeia e a Terra é o nosso lar de origem, tirando uns poucos que nasceram aqui.
– Tem razão – respondi –, e eu vi algumas notícias. No contexto geral, posso dizer que o mundo vai bem, embora passe por uma pequena crise econômica. Vejo que o meu país está caminhando a passos largos para um completo caos e às vezes penso se a não interferência não é um erro.
– Não é – respondeu-me, categórico. – Os magos quase foram dizimados no passado remoto por se envolverem em política de povos mundanos, mas não é por isso que estamos aqui.
Pronto, agora ele ia tocar no assunto e eu teria a minha resposta.
– Pensei bastante no seu pedido e conversei com vários guardiões, em especial o chefe dos guardiões dos portais – continuou, tranquilo. – Ele acha que as suas suposições são falsas, mas admitiu que você já o superou e tem muito mais sensibilidade aos fluxos energéticos planares. Recomendou-me muita cautela, embora nenhum plano nos tenha sido prejudicial ou perigoso até hoje. Outros guardiães recomendaram que não pesquisássemos isso por acharem um perigo em potencial...
– Mas... – comecei, sendo interrompido no ato.
– Deixe-me terminar, filho – fez um gesto impaciente. – Eu acho e argumentei que é a inatividade que se torna perigosa, que não se deve ignorar o desconhecido. Contudo, não sabemos o que um novo plano pode esconder de segredos e sim, pode haver riscos. Por isso, eu tomei a seguinte decisão: você vai iniciar as suas pesquisas no campo teórico e me apresentará os seus resultados em um seminário global. Após, será autorizado a efetuar experiências práticas com medições e tudo o que for preciso até se confirmar quantos planos a mais há, se houver. Está vetada a tentativa de abrir um desses planos até que se comprove a segurança. Bem sei que não era isso que desejava, filho, mas terá de concordar que visamos a segurança sem lhe tirar o direito de descobrir mais fatos.
– Obrigado, senhor. – Eu estava decepcionado por ter de fazer uma coisa de cada vez, mas tinha de concordar que o mago agia com retidão. – Acredito que o senhor esteja coberto de razão e agradeço muito por me permitir realizar as pesquisas.
– Ótimo. Fico feliz que tenha entendido, sinal de que o senhor está pronto para ingressar como Guardião, que será mais cedo do que pensa. Agora peço desculpas, mas tenho um compromisso que não posso adiar.
Despedi-me do mago e saí, indo para o meu apartamento preparar as pesquisas. No caminho, encontrei Caroline, uma feiticeira da Inglaterra e minha amiga inseparável desde muito criança. Por isso, convidei-a a trabalhar comigo nas pesquisas porque, certa vez, ela me disse que desejava apresentar um trabalho de formatura diferente.
Caroline ficou deliciada com a ideia de desenvolver esse projeto e atirou-se a ele de corpo e alma. Depois de oito longos meses de muitos cálculos e pesquisas, provamos que uma interferência de campos planares poderia ser a prova da existência de mais planos. Esse fenômeno seria comparado à interferência que um planeta provoca sobre órbita dos demais em um sistema solar e foi desse jeito que descobriram Plutão. É claro que, na Mecânica Quântica, é sempre um pouco mais complicado que isso, na verdade, muito mais.
Carol era uma matemática brilhante e confesso que, sem ela, teria demorado o dobro do tempo a obter resultados, no mínimo.
Ela sentia uma grande euforia quando nós apresentamos os resultados iniciais das nossas pesquisas para um auditório cheio de sábios, que nos ouviam consternados e incrédulos, mas nenhum deles foi capaz de apresentar qualquer argumento contrário e antes pelo contrário: fomos aplaudidos de pé.
Quando o Guardião Supremo levantou-se para falar, fez-se silêncio total, mas ele foi simples e rápido:
– Vocês fizeram um trabalho teórico fantástico e chegaram a revolucionar algumas áreas da física. Estou bastante impressionado e dou-lhes os meus parabéns. Como prometi, Igor, agora você pode ir para as ações e transformar a teoria em prática. Contudo, se for comprovada a vossa tese, continua vetada a tentativa de abrir um portal até termos certeza de que é seguro, compreendeu?
– Compreendi, senhor – respondi. – Ficaremos no âmbito das análises comprobatórias.
– Ótimo. Vocês têm carta branca e podem requisitar qualquer recurso que desejarem. Podem ir e mais uma vez os meus parabéns a ambos.
O mago retirou-se do auditório e Caroline abraçou-me, rindo de felicidade. Voltamos ao meu apartamento e sentamos na mesa para fazer o planejamento futuro. Alguns dos aparelhos precisavam de ser inventados do nada e usariam tipos especiais de campos energéticos criados por nós para poderem modular com os planions, gravitons e outras partículas relacionadas.
Resumindo tudo, eu e Caroline gastamos mais um ano e meio fazendo testes e medidas de todos os tipos, até que um belo dia voltamos a apresentar os resultados onde provávamos que havia não apenas um, mas dois planos adicionais, um antes do primeiro plano e um acima de nós. As provas eram irrefutáveis e indubitáveis.
Saber que havia um plano adicional já era esperado por todos, mas dois era algo tão inconcebível nas mentes deles que demoraram a digerir a nova notícia. Quando o colóquio terminou, o supremo guardião levantou-se em meio a um silêncio constrangedor.
– Hoje é um dia especial na nossa Cidadela porque descobrimos mais dois planos no Universo, criando um marco novo para este reino – fez uma pausa de efeito e eu estava deveras curioso com esse pequeno discurso. – Uma nova geração de magos é a responsável por isso e eu acho que certos detalhes precisam de ser renovados periodicamente. Estes jovens são a prova de que não podemos manter as coisas sempre como são. Na nossa história, jamais ocorreu um problema nas viagens interplanares e acredito que desta vez também não haja, mas a decisão se o plano vai ser aberto por um mago caberá ao meu sucessor, porque hoje eu desejo passar a capa branca e me retirar do governo. Informo-vos que refleti muito antes de fazer a minha escolha, que alguns podem achar arbitrária, mas pretendo designar para novo Guardião Supremo o grande mago Igor Montenegro. Espero que o conselho leve em conta que eu acredito com toda a certeza que o seu treino superior suplantará a inexperiência da idade, que só tenderá a aumentar estas capacidades.
Confesso que estava de olhos arregalados e ainda tentando digerir essas palavras quando ele terminou, dizendo:
– Eu convoco aqui e agora uma reunião extraordinária para a decisão final.
Enquanto alguns amigos nossos que assistiam a demonstração aplaudiam, os Grandes Guardiões levantaram-se e um deles mandou-me esperar ali. Caroline abraçou-me, rindo. Já eu, estava muito perdido, sentindo-me pequeno em meio a tudo.
O grupo de vinte e cinco guardiões principais, os Grandes Guardiões, fez um círculo e eles ergueram as mãos. À sua volta, uma barreira energética enorme e opaca formou-se para começarem a deliberar enquanto nós aguardávamos sem podermos ver ou ouvir seja o que fosse. No auditório, não houve um que saísse dali tamanha era a curiosidade em saber se o mais jovem guardião seria eleito o supremo. Isso era o que eles sentiam, porque o que eu sentia era nervosismo extremo.
A minha doce amiga Caroline viu e pegou-me a mão, tentando transmitir um pouco de tranquilidade.
Meia hora depois e no auge da minha ânsia, a barreira desfez-se e os magos caminharam para a tribuna, formando um semicírculo comigo no centro enquanto o nosso líder aproximava-se por trás de mim. O silêncio era sepulcral e eu estava ainda mais preocupado com aquilo. Na verdade, jamais me ocorreu tal coisa, mas eu achava que o corpo conselheiro não me aprovaria, uma vez que eu tinha apenas dezoito anos. Bem, faltava um mês para fazer dezenove, mas não me parecia que isso fizesse alguma diferença significativa.
O guardião supremo parou ao meu lado e falou para o grupo, enquanto a sua capa mudava de cor sem que eu visse.
– Irmãos, hoje vocês têm um novo Guardião Supremo – tocou o meu ombro com a mão e a minha capa trocou de um cinza claro dos guardiões sem escudo para o branco imaculado do Supremo Guardião – Igor Montenegro, Magnífico Guardião Supremo do Mundo de Cristal.
Atônito, recebi muitos aplausos, vários deles de pé, enquanto o mago me sorria. Agora eu via o interior dourado da sua capa e então tive a compreensão do que me pesava sobre os ombros: o bem-estar de quase cinquenta mil vidas passava a depender apenas de mim. Os demais guardiões sentaram-se de volta na primeira fila enquanto o nosso antigo líder perguntou:
– Guardião Supremo Igor, qual a sua decisão quanto aos dois planos?
Eu gelei. Agora tinha o grande peso da responsabilidade que todos os líderes precisam de carregar e muitas vezes era o motivo de serem mal compreendidos. Aqueles míseros dez segundos de silêncio, para mim, pareceram muitas horas de dúvidas e incertezas, pareciam ter durado toda uma eternidade enquanto eu pensava. Acho que nesse momento senti o mesmo choque que um homem tem ao ver seu primeiro filho nascido: a certeza que a partir dali ele não podia mais errar, nunca mais!
Saber que agora qualquer ato meu era responsável por alguns milhares de vidas mudou de forma radical o meu ponto de vista e eu disse algo que Caroline não gostou nada:
– Acho – comecei, preocupado – que antes de mandarmos alguém explorar esse plano, deveremos fazer mais experiências. Talvez daqui a seis meses façamos a primeira tentativa.
Sergey, o nosso antigo guardião, olhou para mim e começou a aplaudir, muito feliz, e eu entendi agora o que era o peso de ser um líder porque Caroline, muito chateada, virou-me as costas, desceu da tribuna e saiu do anfiteatro, só que eu não pude deixar de notar uma lágrima no seu rosto.
Quando todos já se haviam retirado, permaneci no púlpito, parado, pensando, até que ouvi uma respiração atrás de mim e virei-me devagar.
– Então, ó Magnífico, como se sente desse lado?
– Pelo amor da Deusa, senhor, não me chame assim – pedi para Sergey.
– Por que não, filho? – Ele sorriu, divertido. – É o título de tratamento de um Guardião Supremo, copiado dos reitores das universidades, sabia?
– Que era copiado eu não sabia. – Olhei para ele, que se colocou ao meu lado, apoiando-se com os cotovelos na tribuna e olhando para a sala vazia. – Mas hoje, o senhor aprontou-me uma bem grande. Já lhe ocorreu que não me parece que eu esteja preparado para ser um Guardião Supremo?
– Claro que está, filho. A sua primeira decisão é mais do que concluente.
– Nesse momento, eu senti o que o senhor devia sentir nestes últimos trezentos anos. Essa decisão magoou muito a minha amiga mais próxima.
– Você a ama? – perguntou. – Ela o ama?
– Não. Tivemos um namorico de umas poucas semanas e foi a nossa primeira experiência mútua, mas não havia amor e sim uma amizade bastante profunda. Por isso ficamos apenas muito amigos. Na verdade, não sei se ainda somos. Ela saiu daqui bem zangada e triste. Deu-me as costas e foi-se.
– Se a amizade for sincera, ela vai entender, porque isso também é amar – tranquilizou-me ele, sorrindo. – Igor, você é um homem destinado a grandes feitos e sinto isso desde que o vi ainda um bebê. Também sei que terá provações terríveis assim como o seu preparo vai ajudá-lo. Lembre-se que mundos inteiros poderão depender do que escolher fazer e que eu sempre acreditarei em si, aconteça o que acontecer. Agora, eu vou passar uns dias viajando. Desejo voltar a ver a minha mãe Rússia, que mudou tanto neste tempo todo. Adeus, filho, e se precisar é só me procurar. Deverei retornar para o encontro anual. – Piscou o olho e acrescentou. – É pena que seus pais não estavam aqui para verem isso, porque ficariam muito orgulhosos.
Ele abriu um portal ali mesmo e saiu da Cidadela. Fiquei alguns momentos olhando para o nada. Então decidi ir visitá-la.
Anunciei-me na porta da sua casa e Carol abriu. Ao me ver, virou as costas e retornou para a varanda, olhando para fora de braços cruzados. Como ela não me mandou embora, entrei e fechei a porta. Aproximei-me por trás e pus a mão no seu ombro, sem que ela dissesse nada. Passei os braços em volta da sua cintura a abracei-a forte, encostando a cabeça no seu ombro:
– Caroline, meu amor, não te zangues comigo – pedi, quase implorei, na verdade. – Tu és a minha mais preciosa amiga e eu não suportaria perder essa amizade. Eu te amo muito.
Ela virou-se para mim e também me abraçou e apertou, sorrindo. Deu-me um pequeno selinho e disse:
– Desculpa. Fui injusta contigo. É que tudo soou como uma grande decepção. Eu já me sentia como uma pioneira a transpôr um plano novo e desconhecido...
– Mas quem te disse que não serás tu, Carol? – Sorri e apertei-a contra mim. – Achas que seria justo outro fazer isso, outro que não nós? Serás tu sim, ainda mais que só nós sabemos as coordenadas corretas. No entanto, tenho essa grande responsabilidade que é velar por todos. Só por isso desejei esperar mais um pouco. Além do mais, serás uma Guardiã dos Portais em breve e isso vai ajudar muito na decisão final do conselho.
– Sabes mesmo agradar uma mulher, né? – Ela riu, falando em inglês. Eu aprendi inglês com Caroline quando tinha seis anos e nos tornamos inseparáveis, pedindo que falasse assim sempre que possível.
– És muito mais do que uma simples mulher para mim – respondi, alegre. – És a minha Caroline, a minha amiga querida desde que éramos pouco mais do que bebês. Então estamos combinados?
Despedi-me dela e voltei para casa, aliviado. Solicitei ao computador uma leitura sobre os guardiões supremos porque eu não sabia muito do que fazer em termos de deveres e direitos.
Uma coisa que é preciso dizer, é que os nossos computadores são muito diferentes do convencional, tanto que um mundano não reconheceria um computador se o tivesse nas mãos, já que foram feitos por intermédio dos nossos dons e são fruto da mais avançada ciência. O seu funcionamento ocorre no nível subatômico e basta-me invocar um computador ou criá-lo na hora, que ele entra em sincronia com o gigantesco banco de dados central na mesma hora. O material pedido surgiu à minha frente em uma tela tridimensional. Sentei-me na minha poltrona predileta e comecei a ler.
― ☼ ―
A grande catástrofe aconteceu quando se escoaram os seis meses. Nada indicava um perigo eminente e as medidas provavam que os dois planos eram estáveis e que os mundos irmãos da Terra e do Mundo de Cristal eram de oxigênio, como sempre aconteceu.
Então eu decidi que a Carol merecia a sua chance. No grande anfiteatro, após ela reapresentar as medidas e provar tudo o que ambos já estávamos carecas de saber, decidi autorizar. Levantei-me:
– A minha decisão é que a Guardiã dos Portais, Caroline Sanders, conforme uma promessa solene que lhe fiz no dia da minha eleição, abra o portal e explore o mundo sobreposto. Mas – enfatizei tanto esse mas que ela arregalou os olhos –, para realizar isso com segurança, faremos no mundo do plano um em direção ao plano anterior, doravante denominado de plano zero, já que está mais afastado da Cidadela e determino que mais um Guardião dos Portais a acompanhe para lhe dar apoio. Hernandez, a tarefa do suporte será sua.
Caroline sorriu de pura alegria, em especial porque escolhi o espanhol, que era seu namorado desde o último mês e ambos eram muito felizes. Eu estava bem ciente disso e quis agradá-la para compensar a espera.
– Vocês farão isso em um mundo desabitado e de oxigênio, por via das dúvidas. A experiência será levada a cabo em setenta e duas horas, para que se possam posicionar. – Eu sabia que Carol precisava de uma pausa a cada quatro planos que atravessasse. Não é tanto quando os dragões, que precisam de uma noite inteira, mas eu desejava que ela estivesse bem descansada. – Esta noite farei uma visita de caráter particular para os detalhes finais. Obrigado.
Tendo terminado a parte oficial, eu pisquei-lhe o olho e retirei-me para o Palácio de Cristal. Ao anoitecer, bati à sua porta. Ela abriu e atirou-se aos meus braços, feliz. Depois, puxou-me para dentro e encontrei Hernandez, um jovem alto e bem constituído, muito simpático. Conversamos bastante sobre o que fariam e fui embora bem tranquilo.
Três dias depois, eu estava demasiado inquieto e dois conselheiros tentavam acalmar-me sem sucesso. Era como se eu sentisse que uma tragédia muito grande estaria prestes a se desencadear e isso me trazia à tona as últimas palavras de Sergey, como se ele soubesse que algo aconteceria.
Cada vez mais preocupado, levantei-me de um salto e abri um portal para onde a experiência era levada a cabo porque, como já disse, eu conseguia atravessar todos os planos de uma só vez.
Ainda antes de atravessar a fenda, vi Hernandez iluminando o local com um bordão nas mãos, uma vez que era noite escura. Carol era uma superiora, como eu, e não usava objetos. Ela já devia ter entrado, porque não estava visível. Mal cruzei a passagem, ouvi o grito. Era um grito de pavor tão agudo e irreal que me atirei de um único salto na direção dele. Hernandez ficou muito nervoso e indeciso. Meteu o pé para ir atrás da namorada, atravessando o novo plano, quando me ouviu gritar:
– Volta já prá Cidadela – passei por ele correndo e acendendo uma bola de luz sobre a cabeça. – O portal está aberto. Volta agora mesmo que eu cuido dela.
Mas eu não cuidei. Até hoje não me lembro direito o que aconteceu porque a percepção de tempo naquele plano era diferente e estranha. No momento em que atravessei o portal, os meus poderes começaram a falhar. Primeiro a luz reduziu-se a um fraco brilho até que se apagou e fiquei na penumbra, não conseguindo ver mais nada. Por isso, precisei de aguardar até que meus olhos se acostumassem com a escuridão. Depois ouvi uma risada, uma risada assustadora. Corri nessa direção e vi duas sombras, uma delas deitada em que reconheci a silhueta da minha amiga e a outra sobre ela. Chutei a coisa com toda a força, obtendo algum sucesso para a afastar, e peguei Carol ao colo, achando-a leve, leve demais. A criatura correu atrás de mim, colidindo e me derrubando. Senti uma coisa gelada e assustadora, apesar de aquele mundo ser bastante quente. Aquilo afastou-se com a maldita risada macabra e tentei voltar para trás, mas não encontrava a saída. Não sei quanto tempo estive lá e pareceu algo em torno de umas oito horas até que consegui sair, descobrindo que estive perdido naquele mundo sombrio por três longos dias, sem dormir nem comer ou beber. Morto de cansaço, olhei para a frente e vi que o portal para a Cidadela ainda estava aberto. O meu sangue gelou e fiquei lívido, mas isso deu-me energias que eu não sabia que ainda tinha. Decidido, entrei correndo e fechei o portal. A primeira coisa que encontrei foram alguns corpos no chão, sendo que o mais próximo era Hernandez. Só então olhei para Caroline e vi que ela jazia morta nos meus braços. Aquela sombra fugiu pelo portal e matou uma cidade inteira. Soltei seu corpo ao lado do namorado e comecei a caçar a entidade que fez tamanha atrocidade. Quando a encontrei, travei uma dura batalha com ela, mas fui derrotado e precisei fugir para salvar a vida. Eu estava em choque e corri muito, desesperado, até que acabei aqui quase morto de estafa e conheci Ezequiel que é o Guardião da Sabedoria e me salvou, mas eu perdera parte da memória. Tudo isto aconteceu por minha culpa. Primeiro porque autorizei a entrada e depois porque deixei o portal para a Cidadela aberto. Quando me recuperei da amnésia em Porto Alegre e deparei-me com meus pais mortos, voltei para a Cidadela e ergui um mausoléu onde deixei protegidos todos os corpos dos meus subditos.
― ☼ ―
Eduarda ouviu com atenção cada palavra do que ele contava, muito impressionada. Delicada, fez-lhe um carinho no braço, pensativa.
– Mas então, o que ele é? – perguntou, por fim. – E qual o real poder dele?
– Uma grande incógnita – respondeu Igor. – Ele suga a energia vital das pessoas e o seu conhecimento, pelo que entendi, sem falar que tem um ódio terrível de mim. A sua primeira atividade na Terra foi matar os meus pais e meu erro foi acreditar que ele pararia por aí desde que eu abandonasse os meus poderes. Foi assim que nós nos conhecemos.
– Ele pode ser vencido?
– Começo a achar que ele é indestrutível, mas pode ser contido. Ezequiel e um dragão conseguiram afastá-lo daqui. Eu, por outro lado, não consigo derrotá-lo e sou muito mais poderoso, como se ele antecipasse os meus movimentos. Acredito que, naquela hora no mundo dele, ocorreu uma forte ligação entre nós dois, mas ele não conseguiu me matar. Ezequiel vinha-me treinando na guerra e o conhecimento dele é muito superior a qualquer outro guardião da guerra devido à sua experiência milenar. Agora, necessito de descobrir como destruí-lo. Talvez seja possível manipular os fluxos vitais que ele roubou e ressuscitar toda a Cidadela. Eu preciso de redimir meu erro.
– Amor. – Eduarda puxou sua cabeça contra o peito, abraçando-o com ternura. – A culpa não foi tua. Esse demônio consegue abrir portais e mais tarde ou mais cedo teria alcançado a Cidadela. Afinal, ele sugou os conhecimentos da tua amiga em primeiro lugar. Além do mais, não era possível imaginar que esse mundo encerrava tamanho monstro.
– Talvez, mas eu ainda me acho culpado. Eu devia ter autorizado a abertura do outro plano porque quanto mais alto, mais fina é a energia; mais evoluído, em outras palavras.
Naquele momento Igor deu-se conta de que a conversa durara tanto tempo que já estava noite fechada. Ergueu-se, lançou para cima um globo de luz e sorriu. Eduarda fez menção de se levantar e ele foi logo ajudar, mas ela afastou-o, gentil.
Apoiou-se no bordão e ergueu-se, devagar. Quando estava ereta, riu como se tivesse conquistado uma grande vitória. Caminhou devagar para o sanitário e, chegando lá, criou uma luz fraca com os seus poderes recém-despertos, voltando a dar uma risada de pura alegria.
Igor aproveitou para fazer um jantar e depois, materializou uma televisão para poderem ver um filme qualquer. Eduarda não durou muito e acabou dormindo nos seus braços. Ele levou-a para a cama, despiu-se e deitou-se junto, pensando nos últimos dias. Adormeceu sem dar conta disso e acordou cedo. Como sempre, trouxe do nada uma rosa, depositou-a ao lado da noiva e começou a preparar tudo em silêncio para não a acordar. Ficou muito contente quando foi abraçado por trás e viu a sua Eduarda bem melhor. Depois do café, Igor começou a arrumar coisas na clareira e a ensinar a noiva a usar a sua magia lactente, além da língua anciã. Ele riu e comentou que nunca tinha dado conta que ela era canhota. O primeiro passo foi o domínio do próprio corpo e a noiva aprendia muito rápido, para sua alegria.
Quando Igor ouviu um grito forte no ar e ergueu os olhos vendo um gavião muito grande voando alto, em círculos, levantou o braço e concentrou-se um pouco, fazendo a ave pousar nele.
– Amor, esse gavião é bem parecido com aquele da faculdade!
– É sim. São da mesma espécie, mas este é maior. – Igor fez-lhe um carinho. – E muito mais bonito.
Após dar de comer para a ave, ele voltou aos seus afazeres e notou que o pássaro permanecia pousado por perto, olhando. Igor sorriu, afastou a noiva por uns quinze metros e disse em celta, usando seus poderes:
– Manifesta-te na tua forma real.
O pássaro começou a crescer e a metamorfosear perante os olhos esbugalhados da Eduarda, que viu um dragão enorme pela primeira vez.
– Não és Saci – afirmou o jovem – já que és ainda maior do que ele.
– "Não sou, mas acho melhor tu inventares um nome para mim" – disse o dragão. – "O conselho determinou que um de nós deve ajudar o Guardião Supremo enquanto for necessário e eu ofereci-me. Ezequiel disse que talvez tu viesses aqui como base de apoio. Quanto à forma do pássaro, retirei-a da tua memória. No conselho, nós investigamos as tuas lembranças."
– Bem sei que investigaram. Eu permiti que fizessem isso, porque sabia que não havia maldade. Nesse caso, vou chamar-te de Gwydion, se não te importares. – Virou-se para Eduarda. – Amor este é um dragão, originário do oitavo plano.
– Eu consegui ouvir na minha cabeça as palavras dele. Oi, Gwydion. Desculpa o meu espanto, mas até agora pensei que dragões eram apenas lendas. Sou Eduarda.
– "Muito prazer, Eduarda. Também fui designado para ajudar a te encontrar, salvar e proteger, mas vejo que agora só me resta a última alternativa" – respondeu Gwydion. – "Manterei a minha outra forma para não me expôr. Igor, com uma ajuda é bem mais rápido!"
Igor sorriu e fez um gesto com a mão. Tão rápido quanto se metamorfoseou, ele retornou à forma do gavião e alçou voo para verificar o perímetro.
– Meu Deus, amor – disse Eduarda. – É um animal incrível...
– Anjo, nunca te refiras a ele como animal. O Homem tem o defeito de achar que é o único ser inteligente do Universo. Os dragões são seres muito inteligentes cuja civilização tem milhões de anos. É verdade que a cultura deles é diferente, mas nem por isso são menos inteligentes, como viste.
– Tens razão. – Ela riu e encolheu os ombros. – Ainda estou-me acostumando a tudo. São tantas as novidades! Afinal, até há uns poucos dias, isso tudo para mim era apenas ficção de livros de fantasia.
– Eu sei, meu amor. – Igor sorriu. – Eu tive a vantagem de ter nascido no meio, mas sei que te adaptas muito rápido. Vai ver eu sou mesmo um escritor de ficção e nos coloquei no meio da história. Sabias que quando disseste que serias a minha fã número um, eu abandonei todas as precauções e ia-te beijar, mas o maldito alarme interrompeu?
– Então me beija agora – pediu, sapeca e abraçando o noivo.
A seguir, ela começou a receber lições de magia de todos os tipos porque Igor desejava que a noiva tivesse uma base mínima para uma emergência.
Nessa noite Eduarda já se sentia muito melhor, apesar de cansada com tantas lições, e começava a apreciar todas aquelas novidades, em especial as novas capacidades. Nunca imaginou que fosse possível ter controle total sobre o corpo ou as demais coisas que aprendia.
De manhã, ambos acordaram muito abraçados e contentes.
– Não tinha uma noite maravilhosa como esta há meses. – Eduarda riu, beijando-o. – Sinto-me tão bem!
– Eu também. – Ele retribuiu, levantando-se. – Vamos tomar um banho bem gostoso e comer alguma coisa. Acho que já podemos pensar em mudar para outro mundo de forma a que fiques mais protegida para que eu possa caçar aquele demônio preto.
― ☼ ―
Naquela tarde, enquanto Eduarda treinava os ensinamentos com o bordão na mão, Igor ficou alerta de súbito, olhando para dentro do mato. Dez segundos depois, o pássaro fez o mesmo.
– Sinto uma anomalia nas linhas planares – afirmou Igor, empertigado.
– "E eu um fedor desgraçado. Energia ruim" – comentou o pássaro.
– Vejo que andaste algum tempo com Ezequiel – disse Igor, rindo do jeito do pássaro falar. – Vamos seguir isso e ver o que é. Amor, não saias daqui.
– "É que ainda sou um pouco jovem demais e divirto-me bastante com os vossos disfemismos e eufemismos."
– Jovem quanto, já que vocês vivem dezenas de milhares de anos senão mais – perguntou, enquanto penetravam na mata.
– "Tenho apenas cinquenta mil anos" – disse Gwydion, rindo dos olhos arregalados do mago. – "Mantendo as proporções, eu estaria agora na puberdade. Acho melhor não conversarmos mais para não chamarmos a atenção."
Andaram por cerca de trezentos metros quando se depararam com uma fenda aberta. Sentindo um mal-estar grande, Igor fechou o portal e começou a correr, dizendo para o pássaro:
– "Segue pelo alto, mas só te mostres se ele não estiver com ela."
Gwydion bateu as asas com mais força, disparando para o céu. Igor lembrou-se que podia chegar lá de imediato e foi o que fez. No meio da corrida desapareceu para ressurgir na clareira ao mesmo tempo que as suas roupas mudavam para o branco imaculado do guardião supremo. Desde que prometeu a Ezequiel que honraria sua capa, passou a envergá-la sempre que a ocasião se adequava.
Encontrou um homem a dez metros dele e de costas. Igor ainda corria e tinha muito pouco tempo, mas chegou a notar que o sujeito tinha a sua altura e que permanecia de frente para Eduarda, que aparentava estar em transe. Reagiu por instinto enquanto parava de correr, erguendo ambas as mãos que expeliram violentos raios direto nas costas do estranho invasor que rolou para a frente com convulsões. Eduarda saiu logo do transe, sacudindo a cabeça e, ao ver o que se passava, saltou para o lado.
– Desgraçado – berrou ela, furiosa. – Mata esse monstro, Igor, mata logo, pelo amor de Deus.
Como havia risco de a ferir, Igor não ousou atacar de forma mais violenta, mas desembainhou a espada e avançou sobre o ser que se virou, apresentando o mesmo rosto dele, um sósia perfeito do mago.
Igor hesitou e isso poderia ter sido o seu fim porque o invasor arremessou-lhe uma das suas bolas negras de energia. O jovem desviou-se a custo e ergueu a sua barreira bem a tempo porque a segunda bola atingiu-o em cheio, porém sem o costumeiro efeito devastador. Igor ergueu a espada e usou-a como um lança raios, mas a criatura atirou-se para o lado e agarrou Eduarda, usando-a como escudo. Ela debateu-se e tentou soltar-se, entretanto, ele fez qualquer coisa que a deixou passiva, mais uma vez sob seu controle, e o mago não sabia como atacar sem a expôr a riscos.
Gwydion, que vinha em voo picado para atacar a criatura transformando-se em dragão no derradeiro momento, fez uma curva apertada e não reprimiu um grito quando colidiu com um arbusto, grito este um pio intenso e agudo, mas que, na mente do mago, ecoou como um grande palavrão.
– Baixa a tua espada, Guardião, se a queres viva – deu uma das suas risadas. – Aquela tua rota de fuga até que foi interessante. Adorei o portal aberto no meio da casa em chamas, mas calculei que achavas que eu teria medo daqui e que este seria um lugar excelente para fugires. Eu nada temo, seu tolo.
– O que tu queres, Samuel? – perguntou Igor, embainhando a arma. – Porque insistes em me destruir desse jeito?
– Quero a minha esposa que tu roubaste, Mago – disse, puxando-a mais para perto e mantendo-a bem firme. Eduarda estava mais uma vez sob seu jugo e não reagia.
– Ela nunca te pertenceu, Samuel, foi raptada. – Igor sentia a fúria crescer dentro dele. – Podes ir onde quiseres, mas sempre te encontrarei.
Não houve resposta, apenas a maldita gargalhada. O monstro abriu uma nova fenda e forçou Eduarda a entrar, acompanhando-a. Antes que o portal fechasse, Igor e Gwydion atiraram-se a ele, perseguindo o demônio.
― ☼ ―
Panfaculdade: Algo como uma faculdade de abrangência universal.
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