Capítulo 8
"A vitória está reservada para aqueles que estão dispostos a pagar o preço."
Sun Tzu.
Igor fez o portal abrir-se no quarto da sua casa, onde a probabilidade de haver alguém era quase nula e teve razão, mas a sua sensibilidade aos fluxos da magia era suficiente para sentir que Samuel andou muitas vezes por ali, talvez tendo se adonado da casa por intermédio da capacidade de imitar a sua aparência. Por via das dúvidas, manteve erguida a sua barreira pessoal e foi revistando a residência. Na cozinha, notou que estava tudo muito arrumado e, pelo pó que havia na mesa, o mais provável é que não aparecia ninguém na casa há cerca de um mês.
Verificou as horas e concluiu que havia uma forte probabilidade de estar na faculdade... talvez até com ela, o que vinha a calhar. Decidiu ir para lá utilizando o caminho mais rápido, ou seja, desapareceu da cozinha da sua casa e reapareceu na universidade. Contudo, ao materializar-se num dos sanitários, mudou para outra aparência que era a de um completo estranho, esperando com isso ganhar tempo, caso se deparasse com o adversário. Comportando-se com a naturalidade de qualquer aluno regular, foi ao diretório acadêmico procurar por ela, mas o lugar estava vazio e o campus era demasiado grande para fazer uma revista em regra. Pensativo, começou a andar ao acaso pelos corredores, tentando imaginar uma forma de encontrar o que desejava. Dobrou uma esquina para ir ao Centro de Vivência e esbarrou em alguém, começando a pedir desculpa quando reconheceu Valdo.
– Valdinho! – exclamou, esquecendo-se que estava com outra aparência. – Cara, que bom te ver!
O amigo virou-se, achando a voz conhecida, porém nunca tinha visto o sujeito que colidira com ele, um homem baixo, quase raquítico, de ombros encolhidos, rosto muito enrugado e escondido por um enorme par de óculos com lentes muito grossas. Por trás delas, era possível ver dois olhos pretos e pequenos. Suportando os óculos, vinha um nariz adunco e muito desproporcional ao tamanho do rosto ossudo, bem em cima de uma boca de lábios carnudos e dentes cheios de falhas. Avaliou-o de alto a baixo e concluiu que não corria perigo de ser vitimado por alguma coisa.
– Eu te conheço, tchê? – perguntou, franzindo o sobrolho.
– Bah, irmãozinho, mas como não me conheces! – Igor espantou-se com o comentário, preocupado se o amigo estaria sob influência do Samuel. – Tu até ias ser padrinho do meu casamento...
– Escuta, cidadão – disse Valdo, meio irritado –, eu nunca te vi mais gordo ou mais magro, então não tem como ser teu padrinho de casamento, se é que alguma garota vai...
– Sou eu, Valdinho, Igor – interrompeu o amigo. – Estou disfarçado, que droga. Tinha esquecido disso.
– Meu Deus, Igor – disse, abraçando-o cheio de alegria. – Tchê, depois que entraste naquele buraco esquisito, tu nunca mais voltaste e Samuel, ou seja lá aquilo que ele é, retornou e disse que te matou. Céus, cara, como eu chorei, mas não podia fazer nada porque ele me ameaçou feio.
– Onde podemos conversar mais à vontade? – perguntou o amigo, cada vez mais preocupado. – Preciso de informações e ajuda.
– Vamos para o estacionamento – sugeriu Valdo. – O teu carro está lá. Eu cuidei dele para ti, mas usei todo este tempo.
– Não tem problema. – Igor sorriu. – Vamos para lá. A esta hora não deve ter ninguém.
O veículo estava parado debaixo de uma árvore pequena, mas que proporcionava uma sombra razoável. Igor sentou-se no capô e olhou o amigo.
– Queres saber sobre ela, suponho – começou Valdo, sério e apreensivo. – Temo que as notícias não sejam das melhores, Igor.
– O que aconteceu? – perguntou o mago, sentindo o sangue gelar nas veias. – Pelo amor de Deus, homem, fala logo. Ela está bem?
– Olha, a meu ver ele tem uma fixação doentia por ti e isso refletiu-se em Dudinha. Samuel ficou superpossessivo e a coisa andou feia para um ou dois colegas. Por outro lado, ele também tinha um ar frustrado e ela se entristecia cada vez mais.
– Ele não pode tomar o meu lugar por inteiro, Valdinho. Não é humano e, como tal, faltam-lhe certos apetrechos da anatomia masculina – explicou o amigo. Após uma pequena pausa, continuou. – Mas e ela, onde está? Quero vê-la, porque não aguento de saudades.
– Ele casou com ela mês passado, Igor, mas aquela não era a Eduarda que tu conheceste... que nós conhecemos. Estava magra, com olheiras, abatida...
– Eu preciso matar essa coisa. – Igor estava nervoso. – Onde eles estão?
– Essa é a pior parte, cara – respondeu o amigo. – Ele vivia na tua casa, mas há duas semanas desapareceu sem deixar rastros e levou Eduarda junto. Além disso, há evidências que andava metido com o crime organizado e o pior de tudo é que ele está cada vez mais parecido contigo, além de ter chamado a atenção da polícia. Chegaram a me procurar e interrogar. A última vez que o vi, vocês passavam por gêmeos.
– Sinto muito por isso. – Igor sentia-se abatido e cabisbaixo, pensando na sua noiva.
Manteve-se calado por um bom tempo, pensando enquanto o amigo aguardava. De repente, questionou:
– Escuta, como sabias que eu era eu, já que ele ficava parecido comigo?
– Mas bah, cara, nem sei. Confesso que não pensei nisso na hora. Olha só, quem sabe tu voltas prá tua forma original que agora fiquei cabreiro, além do mais, escolheste uma imagem feia de doer.
– As pessoas feias são mais difíceis de memorizar porque ninguém se interessa por elas – explicou Igor, voltando à sua forma normal. – Passam desapercebidas com muito mais facilidade.
Valdo olhou a imagem do amigo mudando de aparência, como um milagre, ganhando altura e o seu tradicional porte atlético. Os cabelos crespos e vermelhos voltaram a ser o loiro liso, bem ajeitado, e o corpo musculoso deixou de ser torto e de ombros encolhidos. Arregalou os olhos e comentou:
– Mas que barbaridade! – Olhou-o de alto a baixo. – Pelas barbas do profeta, Igor. Tu já era um gato, mas agora tás irresistível. Essa espada é de verdade?
– Deixa de besteira que a coisa é muito séria. Precisamos de um código para saberes que sou mesmo eu e não ele, fazendo-se passar por mim.
– Não é besteira, pô. – Valdo riu. – Sou gay, esqueceste?
– Tá bom, mas agora minha preocupação é outra e eu tenho dona, lembras? – Igor riu.
– Essa é a prova que és o meu amigo, Igor. – Valdo piscou o olho, feliz. – Samuel jamais foi gentil.
– Ok. Precisamos de criar um plano para achar esses dois. Depois eu mato o desgraçado e tá resolvida a coisa.
– Sei... e tu consegues matá-lo ou é só papo da raiva momentânea?
– Até agora sempre fui derrotado, apesar de ser o mago mais poderoso do mundo. – Igor encolheu os ombros. – Mas, enquanto não livrar Eduarda dessa peste e tiver um sopro de vida, eu não descanso. Vamos almoçar alguma coisa que tenho fome. Eu não tomei café.
– Então vamos. – Valdo entregou-lhe as chaves. – Só que é melhor parar com esse lance de He-Man...
– Que diabo é isso?
– Um desenho antigo que eu vi na internet e, com essas roupas, pareces demais com ele – respondeu o amigo, rindo. – Só te falta erguer a espada no ar e gritar: "pelos poderes de grey..."
– Para com isso, pelo amor da Deusa – interrompeu Igor, transformando a roupa em um jeans e camiseta, além de desaparecer com a espada. Estendeu de volta a chave. – Tu diriges, o carro é teu.
– Meu?!
– Claro. Tenho outros, então fica com esse – abriu o porta-luvas, tirou o documento, olhou e estendeu-o. – Pronto, passei para o teu nome.
– Tô começando a gostar desse lance de magia – respondeu o amigo com uma risada.
– É legal se a vida vai bem. Vamos lá, toca ficha que preciso almoçar. Tô vesgo de fome.
O trânsito àquela hora não favorecia muito os dois e só melhorou quando entraram na Av. Ipiranga. Igor olhou para o riacho que dividia a via ao meio e comentou:
– Bah, andou chovendo por aqui? – apontou o rio. – O arroio Dilúvio está quase trasbordando!
– Choveu pra caramba. Semana passada deu meio metro de água na rua. Tínhamos que ir pela Antônio de Carvalho ou pela Bento Gonçalves. Nem os ônibus passavam.
Passando a PUC, Igor sugeriu uma rua perpendicular para fugirem do movimento e em pouco tempo chegaram ao seu destino, uma churrascaria que ficava em parte ao ar livre e era bastante agradável. As mesas de fora estavam em um pátio recheado de árvores que proporcionavam muita sombra e paz. Ao sabor de uma suave brisa e apreciando o churrasco, os dois conversavam com tranquilidade, debatendo sobre os problemas.
– Estive na minha casa e não encontrei sinal que ele tenha aberto um portal, mas em duas semanas os seus traços seriam difíceis de rastrear, embora eu esteja certo de que conseguiria. Vamos partir do princípio que ele não tenha usado portais, pois demandam energia e, para atravessar com uma pessoa normal como Eduarda, exigem mais ainda. Ele é pouco hábil com portais e isso eu já notei.
– Mesmo assim, em duas semanas ele poderia ter evaporado para qualquer lugar do mundo.
– Por meios normais, precisa de um passaporte. Do contrário, está por aqui. Basta ir à polícia federal verificar nos computadores. Depois do almoço faremos isso – disse Igor, decidido.
– Sei, chegamos lá e pedimos com toda a gentileza se Eduarda Vargas Qualquer Coisa Mais solicitou um passaporte para sair do país?
– Na falta de melhor opção, lembrarei disso. E se não foi?
– Andei pensando que, se ele afinou com o crime organizado, então pode estar em algum lugar onde tenha ocorrido um crescimento repentino da criminalidade.
– Boa. – Igor bateu as mãos. – Ideia genial. Depois da federal, vamos ver isso na polícia civil.
– Tu é louco de galocha, tchê! Eu quero ver é a gente sair de lá sem ser preso – comentou Valdo, nada otimista. – Ou nos pegam em uma, ou na outra.
Duas horas depois, dentro do carro, Igor disse:
– Toca pra federal, vamos logo resolver isso.
– Eu não tenho a menor ideia de onde é, cara – comentou Valdo, pegando o seu telefone. – Vamos olhar na internet.
– Não precisa. Fica na Avenida Paraná – afirmou Igor. – Basta pegar a Lucas de Oliveira. Vai indo que te ensino o caminho.
― ☼ ―
Estacionaram à frente da delegacia de polícia federal e Igor decidiu esperar a oportunidade adequada no carro. Meia hora depois, encostou uma viatura paisana e ficou parada uns minutos. Igor fez sinal para o amigo, abriu a porta e aproximou-se do carro preto, típico dos veículos federais. Meio preocupado, Valdo seguiu atrás dele, mantendo uma certa distância e olhando desconfiado.
Dentro do carro haviam dois delegados que preenchiam uns papéis e o jovem mago julgou que fossem relatórios. Delicado, deu um sorriso e bateu no vidro. A primeira coisa que o policial disse, ao abrir a janela e olhar para ele, foi:
– Tchê, tu tá de camiseta com este frio? – arrepiou-se todo. – O rádio disse que faz seis graus!
– Pois é, né? – comentou o mago, sorrindo. – Vocês vão dormir enquanto eu pego a vossa personalidade emprestada, ok?
Se o delegado não estava de acordo ninguém saberia porque eles apagaram no ato. Igor ergueu o rosto e Valdo deu um berro de susto ao olhar para ele, porque o amigo tinha a cara do policial do carro.
– Pelo amor de Deus... – começou a dizer. Igor apenas fez sinal para que ele se olhasse no espelho retrovisor e o jovem riu. Observou as novas roupas, que eram muito diferentes. – Até as armas estão conosco!
– Vamos, mas toma cuidado que as armas são de verdade.
Entraram na delegacia e ninguém ligou para eles, embora Valdo morresse de medo. A sala de entrada era de tamanho médio e tinha algumas pessoas lá que aguardavam sentadas do lado esquerdo, a maioria estrangeiros. Do lado direito havia alguns guichês de atendimento e, ao fundo da sala, uma porta que dava acesso à área restrita da polícia. Mantendo a calma, Igor colocou a mão na maçaneta e abriu a porta, fazendo sinal para o amigo entrar. Foram andando por um corredor estreito e cheio de portas para diversos gabinetes até que encontraram um sanitário e entraram para esperarem qualquer "colega" aparecer. A ideia era não despertar a atenção pois os seus poderes de controle mental eram fracos e ele não gostava de os usar. Não demorou muito e apareceu alguém. Quando o policial terminou de lavar as mãos, Igor tocou-lhe o ombro e perguntou:
– Onde fica a divisão de passaportes? – sorriu e encolheu os ombros. – Esqueci o caminho e preciso de verificar algumas coisas, no computador.
– Tu tá brincando, né, Tião? – perguntou, rindo. A risada parou e ele disse. – Eu emito os passaportes, cara, tu enlouqueceu?
Igor amaldiçoou-se por não se ter atinado que, em um local tão pequeno, todos eles deviam conhecer-se. Por isso, não lhe restou alternativa a não ser dominar a sua vontade. Enquanto irradiava a ordem mental, disse:
– Ótimo, vamos para a tua mesa. – Igor fez sinal para a porta.
O delegado, seguido pelos dois, caminhou com toda a naturalidade e sentou-se. Quando logou no computador, Igor falou:
– Verifica aí se uma Eduarda Vargas, nome de solteira, vinte anos, pegou um passaporte. Busca em até seis meses no passado.
– Negativo, nada consta – respondeu ao fim de alguns minutos de pesquisa.
– E Eduarda Montenegro? – voltou a perguntar o mago.
– Também não consta. – disse o agente federal.
– Obrigado – afirmou o mago. – Quando eu sair e me despedir, vais esquecer que me viste e tudo o que aconteceu agora, entendeste?
– Sim – respondeu, com a voz monótona, como que hipnotizado. Igor abriu a porta e puxou o amigo. Antes de a fechar, uma simples palavra brotou dos seus lábios:
– Adeus.
Na rua, voltaram para carro já com as próprias aparências. Valdo ligou o veículo e tratou de sair dali o quanto antes, pois não se sentia nada seguro.
– Agora toca para o palácio da polícia – comandou Igor. – Vamos entrar por trás. Na Ipiranga tu pegas a João Pessoa que deve ter um estacionamento.
– Ok, mas tem muito chão pela frente até chegar lá, então relaxa. – Valdo deu uma risada. – Com esses teus poderes é bem fácil fazer essas coisas.
– Não te iludas que não sou Todo Poderoso e muito menos indestrutível – alertou Igor.
Quase uma hora depois desciam do carro e, quando saíram do estacionamento, Igor fez com que ficassem com a aparência dos policiais que o visitaram na faculdade. Espantado, deu-se conta de que parecia que foi há uma eternidade, mas isso ocorreu há pouco menos de três anos. Entraram e procuraram uma sala com um terminal de computador. Igor fez as pesquisas desejadas sem dificuldade, porque obteve o acesso de uma jovem investigadora pelo mesmo método usado no agente federal. Não demoraram muito a encontrar uma pista.
– Olha aqui, Valdinho. Esta cidadezinha do interior, na fronteira de Santa Catarina. Um aumento nas estatísticas de criminalidade em quatrocentos por cento no último mês. E pasma, mas ela tem um pequeno aeroporto que é uma coisa perfeita para voos clandestinos de tráfico de armas e drogas do Paraguai ou arredores.
– E agora?
– Agora? – Igor riu. – Agora eu vou para Santa Sofia ver isso de perto. Vamos embora para a minha casa.
– Não achas que seria melhor procurar outras localidades, caso essa não se revele positiva? – perguntou o amigo. – Afinal não faz sentido retornar aqui, se algo der errado.
– Tens toda razão. – Igor sorriu e pegou um bloco na mesa, fazendo anotações. Quando terminou, aproximou-se de um mapa do estado que estava na parede e localizou as cidades. Virou-se para o amigo e disse, soltando um assobio. – Reuni as quatro principais cidades. Pasma, mas Santa Sofia fica no meio, cercada pelas demais deste lado do país. Vamos embora.
Na saída, pegaram outro corredor e perderam-se porque o palácio da polícia era um prédio grande e antigo onde seu interior parecia um verdadeiro labirinto para quem não pertencia à corporação. Sob comando do mago, eles não chamavam a atenção porque agiam como se fossem policiais e tinham os distintivos pendurados no pescoço, mas andaram um bom bocado até encontrarem um elevador.
Igor sorriu e entrou com Valdo. Contra todas as probabilidades, já que os delegados que eles fingiam ser pertenciam a outra delegacia que ficava na Av. Bento Gonçalves, deram de cara com eles logo após entrarem. Exceto por Igor, todos arregalaram os olhos e assustaram-se. O delegado verdadeiro, que Igor imitava, tinha mais presença de espírito e puxou a arma, mas para seu horror o cano começou a derreter como se fosse um picolé no calor tórrido do verão.
Com o elevador em movimento não podiam fugir sem revelarem parte da verdade e o uso da hipnose era limitado, além de ter efeito curto. Por isso, Igor apelou para o método mais prático, atávico e eficiente: a força bruta. Sem se preocupar, nocauteou os dois policiais com dois socos bem aplicados de forma a não os ferir. Feito isso e com um Valdo ainda assustado demais para reagir, pegou a mão do amigo e desmaterializaram-se dali para o carro.
Em casa, fizeram os acertos finais e Igor deixou uma cópia da chave de casa para o amigo olhar por ela. Quando se despediram, Valdo disse:
– Vê se te cuidas, irmão – abraçou-o. – Nada de te precipitares que ele é mais forte, mas sei que não é mais esperto. Cuida da Dudinha.
– Obrigado, Valdinho. – Igor retribuiu o abraço. – Torce por nós que esta peleja vai ser complicada uma barbaridade. E lembra-te sempre: se a criatura te aparecer, tenta evitar a todo o custo que ela toque em ti.
― ☼ ―
A primeira atitude do Igor foi pesquisar as cidades de menor grau de probabilidade, todas elas municípios com menos de trinta mil habitantes. Aproveitou para alugar imóveis em cada uma delas, mas eram sempre casebres nas regiões mais pobres. Esperava, com isso, criar uma rota de fuga que fosse capaz de iludir o adversário. Depois, encontrou à venda um sítio bastante pobre, com cerca de um hectare a apenas dez quilômetros de Santa Sofia e comprou-o. Ficava a talvez a uns cem metros de uma pequena rodovia, um tanto escondido e com aspecto de abandono, o que vinha a calhar aos seus intentos. A casa caia aos pedaços, um verdadeiro casebre em ruínas, mas ele pagou o preço exorbitante que era solicitado pelo proprietário sem discutir. Com esses preparativos, perdeu quase dez dias, mas achou que foi um tempo bem gasto para garantir uma possível evacuação levando a noiva.
Com tudo planejado e conferido, foi para a cidade de Santa Sofia e alugou um apartamento pequeno no subúrbio, mais uma vez na parte pobre da cidade. Nos primeiros dias começou por se inteirar da geografia local e consultar a biblioteca, procurando todos os pontos turísticos e comerciais da cidade.
Igor soube da existência de um milionário recluso e chegou a procurar a sua casa, descobrindo que era uma verdadeira fortaleza e nada ali poderia provar que o ricaço se tratava de Samuel, mas achou que o sujeito não tinha lá a consciência muito limpa para manter tantos seguranças.
Uma vez bem instalado, começou a sua procura perambulando ao acaso pela cidade. Santa Sofia possuía cerca de cinquenta mil habitantes, bastante pequena, e tratava-se de um município muito rico. As ruas eram limpas e espaçosas, contudo o crime proliferava a olhos vistos, embora não houvesse pobreza significativa.
Igor ia quase todos os dias ao cinema e costumava almoçar nos restaurantes mais frequentados. No terceiro dia, teve a primeira pista, quando parou em um restaurante para comer.
– Seja bem-vindo de volta, senhor – disse o garçom, limpando a mesa. – Espero que tenha bom apetite.
Em uma reação instantânea, Igor criou mudanças sutis na sua aparência, porém que mantivessem a sensação de forte semelhança consigo próprio.
– Desculpe – afirmou, forçando um sotaque estrangeiro e olhando direto nos seus olhos –, mas eu nunca estive nesta cidade antes.
O garçom voltou a olhar para ele com mais atenção e acabou por dizer:
– Opa, é que o senhor parece muito com um freguês que costumava vir aqui, desculpe – sorriu e acrescentou. – E então, vai querer o quê? A sugestão da casa é medalhão de filé, com puré, ervilhas e salada. É muito gostosa e o preço tá bem em conta.
– Pode ser a sugestão da casa – disse Igor. – Então eu pareço com esse sujeito?
– Sim, parece muito. Ele sempre vinha com uns caras meio estranhos, mas nos últimos tempos não tem aparecido.
– Vai ver ele arrumou uma garota para se distrair – disse Igor, rindo para ver se pescava alguma informação.
– Talvez – comentou o garçom. – Ele nunca apareceu com uma guria, mas usava aliança. O que vai beber?
– Suco de laranja – respondeu Igor, pensativo.
O atendente retirou-se e o mago ficou refletindo sem parar. Com certeza deveria ser Samuel, mas ele não aparecia com Eduarda nos seus negócios e, para o bem dela, o jovem preferia do fundo do coração que fosse assim.
Decidiu que passaria mais tempo por aquela região, que era a central e a que tinha maior concentração de comércio.
― ☼ ―
Eduarda acordou naquela manhã com uma sensação estranha que misturava uma tristeza infinita a um amor e nostalgia que não sabia explicar. Ela vivia no luxo e na riqueza, em uma mansão linda e sem motivos para reclamar de coisa alguma, só que tudo o que sentia era aversão completa ao seu modo de vida.
O marido não estava no quarto e sentiu-se aliviada porque o que mais desejava era livrar-se dele, mas sempre que chegava a essa conclusão e olhava para o rosto do Samuel, algo acontecia e a sua vontade era minada, por mais que lutasse contra.
Contudo, a cada dia que passava, essa influência enfraquecia um pouco e, consciente disso, Samuel mantinha sempre quatro capangas a cuidarem dela. Eduarda sentia que os guarda-costas tinham ordens bem específicas a seu respeito.
Sem ânimo, levantou-se e foi para o sanitário. Quando viu o seu rosto no espelho, sentiu-se abatida e não se reconhecia. Muitas dessas vezes olhava para o próprio reflexo e perguntava-se, deprimida: – "Quem tu és, onde está a verdadeira Eduarda?" – Ela tinha a nítida impressão que deveria acordar feliz e alegre, que seu rosto não era tão magro e sim mais juvenil e belo. Mas a maior sensação que tinha quando olhava o seu reflexo era de uma imagem de alguém que sempre surgia às suas costas, que a abraçava com todo o carinho e beijava-lhe o pescoço, provocante, alguém que sempre lhe estendia um botão de rosa. Tentava em vão focar essa imagem de uma lembrança apagada, mas tudo o que via era uma mancha dourada, borrada, que lhe trazia lágrimas à tona, um sonho interrompido de forma brutal justo no seu começo, findado pelo homem que a subjugou.
O véu na sua memória começava mais uma vez a se descortinar e as lembranças eram demasiado dolorosas, o que a fez tomar uma decisão radical.
Abandonou o espelho, retornando ao quarto e vestiu-se, decidida a sair um pouco e executar seus planos. Após o café da manhã, disse para o empregado:
– Preparem o meu carro. Desejo ir ao shopping fazer umas compras.
– Sim, senhora – respondeu o empregado. Como o patrão não proibiu o shopping, não havia motivo para a impedir.
― ☼ ―
Igor começava a ficar muito apreensivo e a sua preocupação não era por causa da cidade ou do crime em si. Esse detalhe, na sua opinião, era para as autoridades que tinham muito mais competência, sem falar na lei anciã que proibia interferência no mundo mundano exceto em casos de emergência. O que o preocupava muito mais era o fato de que, mesmo sendo uma cidade pequena e tendo uma boa pista do paradeiro do Samuel, o volume da população era suficiente para tornar a procura da sua amada Eduarda difícil a ponto de haver risco de fracasso, pelo menos em tempo hábil.
Só em Santa Sofia já estava há quinze dias perambulando todos os dias pela região central sem sucesso e seu instinto dizia-lhe que ali era o ponto com maior grau de probabilidade de a encontrar.
Após diversas pesquisas, concluiu que o melhor lugar para fazer a procura era centrado naquela grande praça e restringia-se a uma área aproximada de cento e cinquenta metros de raio e que poderia parecer pequeno para muitos, mas era enorme, uma vez que não poderia ficar em todos os lados ao mesmo tempo.
Tinha acabado de sair do shopping, o único da cidade, onde fizera um tour por todas as suas lojas olhando cada detalhe com toda a atenção e minúcia, como se fosse a última vez que veria aquele lugar e desejasse guardá-lo vivo na memória, mas que lhe rendeu a atenção dos seguranças que o barraram na praça da alimentação em nada menos que um grupo maciço de seis indivíduos corpulentos. Na maior cara de pau possível e auxiliado pelos seus poderes, o jovem alegou que era diretor de cinema e estudava o shopping para umas cenas de um filme de ação policial que seria rodado em diversas cidades do país e com muita ênfase naquela região. Ainda teve a audácia de lhes perguntar se desejavam participar em algumas cenas como coadjuvantes, pois eram muito fotogênicos. Para reforçar o efeito, materializou cartões de visita vistosos, entregando um para cada segurança.
A desculpa era fraca, mas ele reforçou-a com uma ordem hipnótica e a massagem no ego dos guardas foi o suficiente para o deixarem em paz. Desanimado, saiu e foi para a praça principal da cidade, que ficava a um quarteirão do shopping. Pegou um café em um quiosque e sentou-se no banco ao lado a pensar na noiva.
Naquele dia em especial, ele tentava entender o motivo de ter sentido uma angústia muito grande e pensava se não seria consequência de uma forte ligação empática com Eduarda, reforçando o que Ezequiel afirmara sobre ela ser uma feiticeira adormecida. Isso deu-lhe uma ideia interessante que ele começou a amadurecer, que era usar essa ligação para criar um elo que trabalhasse como um radiofarol, na verdade um psicofarol.
Tinha acabado o café naquele momento e jogado fora o copo na lixeira, voltando a pensar na hipótese de uma localização empática, quando ouviu dois tiros perto. Até mesmo naquela cidade onde o crime teve uma ascensão vertiginosa e inexplicável, era inédito ver ou ouvir tiros em pleno centro, em especial durante o dia. Preocupado, virou-se na direção do som e o que viu, deixou-o tão assustado que até os cabelos se arrepiaram e o sangue gelou.
A uns cinquenta metros, correndo feito uma louca, vinha Eduarda perseguida por quatro homens truculentos e armados. Não acreditou nos seus olhos nem imaginou que Samuel tivesse autorizado o uso de armas de fogo contra ela, mas não ficou parado para ver a mulher da sua vida morrer baleada, até porque, de onde ela vinha, não podia ver o carro que a atropelaria na esquina seguinte, isso se não fosse morta a tiros antes.
Angustiado, ele desatou a correr pela praça enquanto a sua aparência mudava a cada passo que dava. Em menos de dois segundos já vestia a sua roupa e capa brancas, com a espada dourada brilhando fulgurante na cintura. Por causa do desespero, ele violou uma lei antiga que proibia que se revelasse ao mundo, mas a transformação foi de tal forma rápida que ninguém notou, ainda mais porque o povo que ali estava focou a sua atenção na direção dos tiros. Sem demora, chegou ao centro praça e avançou em direção à rua do shopping.
Vendo que não a alcançaria a tempo de evitar o atropelamento, Igor não teve a menor dúvida: moveu a mão na direção do carro, fechando-a e girando o punho no sentido horário. Sem qualquer explicação, as quatro rodas do veículo travaram, fazendo-o derrapar com um guincho agudo e assustador por uns dez metros antes de parar. Para azar dos ocupantes, foram logo abalroados por mais três carros em sequência, provocando num senhor engavetamento na rua de acesso ao shopping.
Agora o risco do atropelamento não existia mais, só que ainda precisava de neutralizar os criminosos antes que a noiva levasse um tiro, mas o grande problema era que Eduarda estava bem no meio do caminho.
Como os disparos não paravam, a população da cidade, que não já entendia nada do que acontecia, começou a fugir daquele quarteirão em pânico e alguns ligaram para a polícia. Mais dois tiros foram efetuados e Igor ficou aliviado ao ver que os criminosos atiravam para intimidar, apontando as armas para o cima.
Na ânsia de fugir, Eduarda acelerou o passo, desviou um pouco para o lado e tropeçou. Ainda tentou recuperar o equilíbrio correndo alguns metros inclinada e com os braços balançando em todas as direções, até que caiu, batendo a cabeça e ficando atordoada no piso.
A primeira reação do mago foi de pânico, mas depois notou que ela não estava ferida e optou por primeiro resolver o caso com os elementos mais perigosos, uma vez que o caminho ficou aberto e a oportunidade era perfeita para agir. Ergueu a mão em concha, criando uma bola de energia estática bastante intensa, porém inofensiva, e arremessou-a contra eles, acertando o mais próximo que foi atingido em cheio e caiu tremendo com fortes convulsões provocadas pela eletricidade. O companheiro que vinha atrás tropeçou e começou a correr com o corpo inclinado para a frente, perdendo a arma e também girando as braços em uma tentativa vã de recuperar o equilíbrio, quando recebeu a segunda bola de energia nas pernas e também foi ao chão com tremores intensos e descontrolados, perdendo a consciência em seguida. Enquanto atacava, mantinha erguida a sua barreira pessoal e fez com que a sua imagem se tornasse esfumaçada e muito difusa de forma a ficar muito difícil de ser reconhecido.
Os dois capangas restantes conseguiram ver que eram atacados por um estranho envolto em uma neblina verde e atiraram-se para os lados, protegendo-se no meio dos carros estacionados e recomeçando a atirar, desta vez nele e para matar.
Zangado com essa arbitrariedade que poderia ter tirado vidas de cidadãos inocentes, aproximou-se dos homens ignorando as balas que batiam em vão na sua proteção. Puxou a espada da bainha a começou a movimentá-la de forma assustadora, parecendo um guerreiro louco. Com um golpe bem calculado, cortou a arma do mais próximo como se estivesse abrindo caminho no mato. Ao se ver acuado, o capanga largou a arma e saiu a correr, tentando salvar-se, mas o companheiro não cedeu ao medo e continuava atirando. Irritado, Igor fez um movimento brusco e decepou-lhe a mão que empunhava a pistola. Gritando de dor, o criminoso olhava o seu pulso onde o sangue jorrava às golfadas. Igor abaixou-se e pegou a mão, soltando-a da arma e mostrando ao bandido. A seguir, aproximou-a do toco e juntou as partes, que voltaram a ser uma só, parecendo que nunca foi decepada, mas ele ainda sentia as dores que o mago deixou ficar como efeito moral.
– Agora te arranca daqui, tchê, senão te corto a cabeça e não recoloco no lugar – disse, ameaçador.
O homem nem tentou entender o que aconteceu porque para ele era inexplicável uma coisa feita de fumaça verde cortar a sua mão e depois recolocar como mágica. A ameaça foi tão explícita, que ele não desejou testar a paciência daquilo, ainda mais com as dores mantendo a lembrança bem viva. Virou-se e correu na direção oposta sem nem sequer olhar para trás.
De diversos cantos e esquinas, transeuntes assustados observavam o ocorrido, vendo o sujeito fantasmagórico olhar para a espada, toda manchada de sangue. Para espanto da maioria, a lâmina tornou-se imaculada, brilhante, e o estranho colocou de volta na bainha.
Igor virou-se em direção à sua Eduarda, sentindo um arrepio na espinha e gelando pela segunda vez em muito pouco tempo ao ver que ela já não estava ali. A primeira coisa que fez foi rogar uma praga bem alto e a segunda foi recriminar-se e censurar-se a si próprio por ter deixado de manter a atenção nela por alguns segundos.
― ☼ ―
Eduarda ficou um pouco atordoada com a pancada, mas recuperou-se rápido e, quando notou os criminosos ocupados com um outro sujeito meio estranho que vestia uma capa branca e soltava fumaça verde por todo o corpo, não ficou parada esperando o desenrolar do encontro. Ergueu-se e voltou a correr, às vezes olhando para trás de forma a ver se a estavam seguindo. Ela corria com dificuldade e tropeçou pela segunda vez, mas conseguiu recuperar o equilíbrio.
Parou, tirou os sapatos de salto e ergueu um pouco o vestido apesar de já ser um tanto quanto curto, retornando para a sua corrida desenfreada e olhando de novo o combate singular que se desenrolada atrás dela e onde podia jurar ter visto o marido por perto, talvez apenas uma pequena nuance, mas isso fez com que acelerasse o passo o mais que podia. Esgueirou-se por um pequeno beco estreito onde só passavam pedestres e mudou de direção tão logo saiu da ruela, procurando afastar-se ao máximo e sentindo dores nos pés. Ofegante e desesperada, olhava para todos os lados e tentava identificar em que lugar estava, embora isso não lhe importasse desde que fosse para longe dos capangas e do marido.
Mais uma vez pausou a sua corrida alucinada e uma tontura estranha apoderou-se dela. Apoiou-se na parede e sentiu dores na mão, olhando para ela e vendo que ficou esfolada com a queda, mas não era grave porque apenas ardia. Voltou a olhar ao redor para se descobrir perdida. Ia recomeçar a andar quando uma pontada intensa de dor apoderou-se dela, fazendo-a dobrar-se sobre si própria. Com dificuldade, deu um passo em frente e o mal-estar agravou-se, mas ela persistiu no seu caminhar incerto, parecendo até alcoolizada. Sem conseguir continuar com o avanço veloz, o cansaço manifestou-se de uma só vez, aliando-se às tonturas que aumentavam sem parar e às fortes cólicas abdominais.
Como estava a pelo menos seis quarteirões do shopping, senão bem mais do que isso, não se preocupou muito em continuar a fuga, até porque o seu andar era agora não mais que um mero arrastar, apoiada nos muros das casas por onde passava, deixando, às vezes, pequenas manchas de sangue da mão. Quando chegou à esquina, já estava com o corpo tomado pelas dores incontroláveis e procurou um local onde sentar, não encontrando nada e ficando parada, com o raciocino embotado. Virou-se para o lado, disposta a sentar-se no chão encostada ao muro, mas já não tinha muita consciência quando caiu inanimada nos braços do marido.
― ☼ ―
Igor começou a girar em torno do próprio corpo, procurando Eduarda e sentindo que o chão lhe era tirado dos pés quando viu que a noiva sumira. Respirou fundo para diminuir a adrenalina que se formou e procurou acalmar-se. Foi até onde ela caiu, na beira da rua e voltou a olhar para todos os lados, mas ela não deixou rastros, como se tivesse evaporado.
Considerando que a rua tinha ficado vazia após o tiroteio, a noiva já devia andar bem longe. Começou a caminhar devagar, tentando identificar para onde teria corrido, procurando sentir algum fluxo de energia, mas a tarefa complicava-se um pouco porque precisava de manter a concentração em duas coisas: sua proteção e a localização dela.
Poucos segundos depois, duas viaturas viraram a esquina mais próxima e bloquearam a rua. Os policiais saíram de pistolas em punho, usando os carros como escudos de proteção e um deles gritou através de um megafone:
– Polícia. Largue as armas e ponha as mãos na cabeça.
Igor virou-se para o lado e manteve ativa a sua barreira pessoal, mostrando as mãos nuas como que dizendo que não estava envolvido no tiroteio. Após, ignorando as autoridades, continuou andando em busca de um sinal dela, ainda sem sucesso. Da terceira rua, que fazia bifurcação com a do acidente que provocou, veio mais um carro com as sirenes aos berros, subindo a calçada e avançando para cima de si. Igor nem perdeu tempo e apenas ergueu a mão em direção à viatura que parou com um impacto muito violento, como se tivesse colidido com um muro de concreto invisível. A frente do veículo ficou destruída, mas os policiais tiveram apenas escoriações leves. Enquanto eles saíam e agachavam-se, protegidos pelas portas e apontando os revólveres, os PMs da primeira leva dispararam sobre o mago, que continuou a pensar por onde deveria começar a procurar a noiva. As armas, com os disparos incessantes, incomodavam um pouco por causa do barulho e Igor fez um sinal com a mão. Os policiais, abestalhados e assustados, descobriram que tinham nas mãos cobras em vez de revólveres. Aos gritos, jogaram-nas para o chão e correram para longe daquela loucura.
O jovem fez as contas e calculou que a noiva teria, no máximo, uma dianteira de seiscentos metros, isso se tivesse corrido em linha reta, mas, ainda assim, essa distância implicava em uma área de respeito. Vários cidadãos filmavam tudo com os telefones e, apesar da urgência e angústia que sentia para salvar Eduarda, conseguiu sorrir ao imaginar o que eles pensariam quando descobrissem que as imagens seriam impossíveis de distinguir. Voltando a pensar na noiva, concluiu que a melhor forma de a encontrar era pelo ar, uma vez que a vista alcançaria muito mais longe.
Tomada a decisão nem se preocupou com o que os outros diriam ou fariam e apenas deixou-se erguer, flutuando feito um balão perante o olhar abismado de todos os transeuntes. Foi subindo e voando em círculos mais espaçados, formando uma espiral. A cerca de duzentos metros de altura parou a ascensão e começou a procurar pela noiva, de início na direção que julgava ser a melhor escolha dela. Descobriu em pouco tempo que se enganara e a sua preocupação tornava-se muito maior porque, a cada minuto que passava, aumentava o tamanho da área a ser pesquisada e o risco do Samuel a pegar.
Voltou a voar em círculos que se ampliavam aos poucos e, em outra direção, viu ao longe uma pessoa caminhando com bastante dificuldade, agarrada ao abdômen. Apesar da distância, parecia ser Eduarda e ele assustou-se muito por pensar que ela pudesse ter sido atingida por um tiro. Fez um mergulho rápido e voou pela transversal para encontrá-la de frente e não lhe dar um susto enorme.
Pousou na esquina com o coração aos pulos e a adrenalina solta, aproximando-se quase a correr. Era mesmo a Eduarda, que estava de tal forma mal que nem reagiu ao vê-lo, desmaiando nos seus braços.
Com todo o cuidado, Igor pegou a garota ao colo e transportou-se para o seu apartamento, depositando o corpo na cama. Verificou os sinais vitais e assustou-se, porque a vida dela estava por um fio e escoava-se com velocidade excessiva.
Concentrou-se no organismo da Eduarda, sentindo todo o fluxo energético-vital, tentando localizar o motivo de ela estar às portas da morte e vendo diversas interrupções iônicas.
Segurou a sua mão com todo o cuidado, tal como a primeira vez quando a livrou da droga, e uma luminescência azul-clara passou a emanar do seu corpo a partir do membro, espalhando-se devagar por todo o corpo.
Com isso, libertou-a da toxina mortal, mas ela precisaria de bastante repouso para convalescer porque estava nos limites da exaustão. Dessa forma, colocou-a em um estado de sono tão profundo que não se diferenciaria de um coma induzido, todavia, o que mais o preocupava era o risco de ser encontrado pela criatura.
Como Valdo havia dito, Eduarda estava quase irreconhecível, muito magra e com olheiras que nunca antes apresentou. Igor olhava para a noiva, impressionado com o estado dela, embora achasse que continuava dona de uma beleza transcendental.
Virou-se para a janela e pensou no que deveria fazer em seguida, já que deveria ser questão de tempo até que aquele demônio do Samuel o encontrasse, uma vez que ele usou e abusou dos seus poderes e deve ter deixado um rastro enorme. Apostava na hipótese de que ele também não fosse capaz de seguir com facilidade a teleportação da mesma forma que não conseguia com os portais, já que era bem mais difícil.
Eduarda precisava de, pelo menos, uma semana até se recuperar da grande maldade que Samuel cometera. Igor esperaria até ao dia seguinte para depois fugir com ela por uma série de portais até à cabana do Ezequiel, supondo que talvez ele tivesse um certo medo de voltar e encontrar o dragão.
― ☼ ―
Eduarda olhava as flores, campos enormes com flores lindas de todos os tipos e tamanhos. Feliz, andava descalça, sentindo o contato da terra com os pés e, no passo seguinte, o cenário mudara e ela encontrava-se no meio de uma batalha assustadora. Empunhava uma espada e gritava de forma selvagem, correndo acompanhada de mais um bando de pessoas simples que usavam apenas forquilhas e instrumentos agrícolas como armas. A sua espada brilhava e, na outra mão, uma gigantesca bola de fogo formou-se, um fogo vermelho e intenso como o Sol. Ela deveria ter sido carbonizada pela esfera ígnea, mas nada acontecia. Enquanto corria, a moça arremessou a bola com toda a força, atingindo o exército inimigo e provocando uma explosão devastadora. As chamas caminhavam galopantes na sua direção, devorando tudo pelo caminho enquanto de trás das suas fileiras, ouviu um grito desesperado e angustiado que dizia: – "Ailin." – O holocausto gerado, ainda mais violento que o Napalm, atingiu-a com tanta violência que ela só conseguiu falar uma simples palavra, murmurada em meio a uma saudade dolorosa e quase eterna: – Igor.
Contudo, em vez de sentir a morte consumi-la, Eduarda viu-se em um lugar belo como nunca havia imaginado. Um morro de rocha granítica cheio de plataformas aleatórias e desniveladas que continham mais de uma centena de pequenas cachoeiras que se encontravam em lagos. Essas plataformas tinham, além dos lagos que eram verdadeiras piscinas naturais, árvores que até lembravam bonsais avantajados de diversas formas, pontes cristalinas e construções feitas, em geral, de cristais multicoloridos. Os lagos contornavam tudo e desciam em novas quedas d'água onde, entre elas, pequenos prédios assimétricos de cristal e harmoniosos com o lugar pareciam desafiar a gravidade e lutar pelo mesmo espaço, mas mantendo um equilíbrio inigualável. Seus pés estavam à beira de uma lagoa maior que refletia a luz do sol em milhares de pequenos diamantes brilhantes e era onde todas as cachoeiras menores terminavam em um grande quarto de círculo. Ela sentiu uma onda de felicidade imensa e virou-se para olhar à volta, encontrando mais estruturas similares. Seus olhos brilharam e parou de girar quando o viu, pois ali estava ele com um botão de rosa nas mãos, vermelho como sempre, o seu cavaleiro vestido de branco e espada reluzente na cintura, que a olhava sorrindo com os belos olhos cinzentos. Estasiada, Eduarda fez sair da sua boca uma simples palavra modulada em um sorriso de pura felicidade:
– Igor – murmurou, enquanto virava-se na cama e esse pequeno gesto no meio do sonho foi o bastante para a acordar. Abriu os olhos e tentou levantar-se, assustada, mas estava demasiado fraca e apenas sentou-se. Olhou em torno, vendo que não era a sua cama nem o aposento era na mansão que tanto odiava.
Ainda sentada, viu debruçado à janela e de costas o mesmo homem de branco que atacou os seguranças. Pôs os pés no chão, sentindo o piso gelado que lhe provocou um forte arrepio. O homem virou-se e Eduarda olhou-o dos pés à cabeça. Toda a vestimenta era branca, com uma capa também alva e, na cintura, uma espada dourada, refulgente em uma bainha vermelha toda desenhada com símbolos pagãos tal como no sonho, mas, quando viu o rosto, teve um sobressalto. Com medo e ao mesmo tempo zangada, começou:
– Mas que droga, Samuel. Tens tudo o que queres, riqueza, poder, tudo. Tu me usaste e enganaste, mas os teus truques não funcionam mais. Apesar de teres casado comigo à força, nunca passei de uma fachada. Por que não me deixas em paz? Por que tu tens que usar a aparência do único homem que eu amei e que tu mataste, ainda por cima disfarçado de príncipe encantado? Me deixa ir embora ou eu vou matar-me aqui mesmo e agora. Sem ele, a minha vida não faz qualquer sentido. Tu já venceste, agora me deixa partir para morrer com dignidade.
– Houve muitos dias em que pensei que jamais te veria de novo, meu amor – respondeu Igor, emocionado – e ver-te viva e perto de mim foi o mais belo presente que a Deusa me proporcionou.
– Agora vais bancar o emotivo? – questionou Eduarda, muito mais enérgica. – Não há como me enganares mais, Samuel. Esses teus truques perderam o efeito...
– Eduarda. – O jovem mago aproximou-se dela e tomou as suas mãos. – Sou eu, Igor. Ele não me matou. Quase conseguiu, mas não me matou e eu voltei para te buscar e salvar.
Ela não soltou as mãos dele na esperança de ser verdade, mas estava muito confusa e amedrontada.
– Como é que vou saber que não é um engodo? – perguntou com todo o cuidado, ainda preocupada. – Eu te vi atacar os seguranças com raios das mãos e só Samuel sabe fazer isso. O meu Igor era um cara cem por cento normal e o homem mais doce deste mundo. Tudo o que ele fazia era para me agradar, coisa que tu nunca fizeste, nunca.
– É, também foi difícil convencer Valdinho, mas não demorou. Meu amor, lembras a noite em que aquele demônio te raptou da nossa casa?
– Lembro – respondeu, céptica. – Faz três dias que me lembro de tudo e a cada hora que passa as coisas estão mais claras. Nem tentes me enganar, Samuel.
– Lembras que eu disse que tinha um passado meio obscuro e que estava na hora de saberes? – perguntou com um sorriso. – Pois é, Eduarda, eu posso fazer tudo aquilo sim, mas não tive tempo de te contar porque aquele demônio preto chegou antes.
Eduarda calculou que Samuel não teria como saber daquilo, já que foi antes de acontecer o rapto. Desejando muito que fosse verdade, olhou dentro dos seus olhos e todas as dúvidas desapareceram quando Igor abriu a mão e estendeu-lhe uma rosa, o presente que mais gostava de lhe dar e coisa que Samuel jamais lhe fez.
Começou a tremer e lágrimas corriam soltas dos seus olhos, rolando pela face magra e cansada de sofrimento. Deu um soluço e puxou as mãos dele até aos lábios, beijando-as com toda a doçura para depois colar o seu corpo no dele num abraço apertado, enquanto começava a chorar sem parar.
– Tu estás vivo, meu amor – dizia Eduarda em meio a abraços e beijos. A sua voz era baixa, quase sussurrada. – Como senti a tua falta.
Quando se acalmaram e ficaram apenas olhando um para o outro, acariciando as mãos ou o rosto, Igor perguntou, uma vez que não podiam perder muito tempo:
– Eduarda, tu tomaste algum veneno ontem?
– Não. Eu fugi para fazer isso, mas não deu tempo – respondeu, curiosa. – Por quê? Eu lembro que comecei a passar muito mal...
– Pois é, meu amor, desfaleceste nos meus braços e limpar o teu corpo da toxina foi muito mais difícil do que com a droga da faculdade.
– Mas como?
– Acredito que ele preferia a tua morte a que escapasses, então deu um jeito de te envenenar e morrerias em grande agonia se ficasses um determinado período longe dele, mas aquele diabo sabe que te posso curar e o seu maior desejo é a minha destruição e o meu sofrimento, então temos que fugir daqui, porque ele pode seguir os nossos rastros.
– E para onde pretendes ir?
– Vamos criar um labirinto para ele se perder. Com isso pretendo ganhar pelo menos um mês. Consegues levantar? – perguntou, sorrindo. – Bem sei que estás muito fraca, só que precisamos sair daqui o quanto antes.
Eduarda tentou erguer-se, mas ficou tão tonta que Igor a pegou ao colo. Caminhou até ao sanitário e abriu o portal no box do chuveiro, atravessando-o e fechando logo a seguir. Ele notou que atravessou o portal com muita facilidade, coisa incomum quando se levava alguém que não era mago e isso intensificou a lembrança do que Ezequiel dissera mais de uma vez a respeito dela. Ainda chegaram a ouvir a porta ser arrombada, mas já era tarde para os captores, se não estivessem com Samuel. A saída do portal era numa das casas que alugou e não parou por aí, trocando de aposento e abrindo caminho para outra das casas. Igor entrou e saiu pelo menos três vezes em cada casa e, depois, foi para o sítio que comprou. Lá, abriu uma passagem para outro mundo, mas antes arremessou uma bola de plasma no casebre, que entrou em combustão e teve o cuidado de deixar energia suficiente para ele queimar por uns três ou quatro dias.
A partir daí, as passagens foram sempre por outros planos em mundos diversos. De olhos arregalados, Eduarda via os sucessivos lugares por onde entravam e saíam, cada qual mais diferente que o outro.
– Mas bah – exclamou a moça – aquela história na faculdade de múltiplos planos e das partículas subatômicas sei lá o quê era verdade?
– Sim, minha linda. – Igor sorriu. – Eu queria te mostrar algo mais, mas aos poucos e não gostava de esconder a verdade de ti, mesmo antes de namorarmos.
Por mais de uma vez ela notou que Igor retornava para o mesmo lugar de antes, criando uma sensação de círculos viciosos capazes até de confundirem um cão farejador, mas o lugar que a deixou quase sem respiração de tão lindo que era foi o Mundo de Cristal.
– Meu Deus, os meus sonhos! – balbuciou.
– O quê? – perguntou Igor, distraído e já em outro mundo.
– Aquele lugar lindo – respondeu –, eu sonhei com ele e contigo lá, muitas vezes, antes mesmo de te conhecer!
– Um dia verás melhor e de perto, meu amor, a cidade mais bela de todo o Universo conhecido, mas agora não dá tempo. O próximo será o último portal, que já tô muito cansado.
Quando ela se deu conta, estavam de volta à Terra. Eduarda não sabia se era mesmo a Terra, uma vez que estiveram em diversos mundos verdejantes e tão lindos quanto o nosso, mas, no íntimo, sentia que assim era. Sem resistir, perguntou:
– Estamos na Terra, né, amor? – sorriu, abraçada ao seu pescoço e feliz. – Eu sinto isso.
– Sim, estamos – confirmou. – Aqui é o Itaimbézinho, perto da cabana do homem que me salvou da morte certa. No momento ele está em outro mundo, mas sei que não se importará que a pegue emprestado. Talvez eu devesse ter ido direto para lá, mas prefiro o isolamento para tratar de ti.
Mal acabou de falar, chegaram à clareira da cabana, que tinha ficado tal como a deixaram. Quando iam entrar, Eduarda apontou algo escrito ao lado da porta.
– Isso, são runas! – afirmou ela, espantada –, eu brincava com elas quando era mais nova, mas as que aí estão são bem diferentes.
– É o alfabeto da língua ancestral, também conhecida como celta e não runas. Nós magos usamos essa língua quando desejamos que outros não saibam. O mais engraçado é que não as deverias ver, pois são invisíveis para as pessoas normais.
– E o que está escrito ali? – perguntou ela, curiosa, enquanto Igor a sentava na cadeira de balanço. – Eu vi com muita clareza, tanta que seria capaz de transcrever aquilo.
– É uma mensagem de boas-vindas para outros magos – respondeu –, assim saberão o que encontrar aqui.
Igor aproximou-se da lareira e pôs várias achas de lenha dentro. Quando acabou, esticou o dedo e fez sair um raio que acendeu o fogo. Depois, pegou uma cumbuca e segurou com as duas mãos. Quando soltou, uma tênue fumaça saía dela, acompanhado de um cheiro delicioso de sopa.
– Toma, come esta sopinha que te fará bem – estendeu a cumbuca, materializou um cobertor nos seus pés e pernas para a aquecer, ajeitando-o com todo o cuidado. Continuou, dizendo. – Sabes, Ezequiel diz que a probabilidade de seres uma feiticeira adormecida é elevadíssima e eu começo a acreditar nisso. Toma a sopinha que vou lá fora preparar umas armadilhas caso o despiste não tenha sido eficaz. Não demoro.
Igor saiu, deixando um globo luminoso para ela não ficar no escuro, uma vez que anoitecia muito rápido. Cerca de dez minutos depois, voltou para dentro trazendo uma rosa vermelha que lhe estendeu, sorrindo.
Quando ela parou de o beijar, Igor olhou para a cama que fora a dele. Eduarda começou a observar junto e viu que o leito aumentava de largura, tornando-se uma cama de casal. Igor pegou na noiva ao colo e levou-a para se deitar. Sem saber como, no meio do caminho ela descobriu-se vestida com um pijama muito confortável e macio, feito da mais pura seda.
– Agora, vamos ambos dormir, pois eu também fiquei cansado de abrir tantos portais em sequência – disse com um sorriso delicado. – Sem falar que tu estás muito fraca e precisas de bastante repouso. Amanhã é outro dia e veremos o resto.
– Boa noite, meu amor – disse Eduarda –, eu te amo.
– Também te amo muito, minha princesa – beijou-a mais uma vez, satisfeito e aliviado. – Sentia muito a tua falta, mas agora as coisas estão no devido lugar.
― ☼ ―
O Sol já havia raiado há algum tempo quando Igor acordou ainda abraçado à sua noiva. Com todo o cuidado, soltou-a e levantou-se. Limpou a cabana, avivou o fogo na lareira e preparou café que, com o cheiro que emanava, acabou acordando a garota que se virou e ficou a olhar para ele, sorrindo. Pouco depois, Igor retribuiu o sorriso, sentando-se na cama e beijando-a. Afastou o rosto e ergueu uma mão, estendendo a sua tradicional rosa.
– Oi, amor – disse ele. – Dormiste bem?
– A melhor noite de sono em muito tempo, Igor – respondeu Eduarda. – Esse cheirinho de café está irresistível.
– Então tenta levantar devagar que te ajudo.
Eduarda ergueu-se e, auxiliada pelo noivo, sentou-se na cadeira de balanço, resmungando:
– É muito ruim a gente sentir-se assim. – Deu uma risada fraca e continuou. – Ainda mais eu, que nunca fiquei doente na vida, exceto pela cegueira.
– Acontece, meu amor – estendeu uma xícara de café. – A toxina que te inocularam era violenta demais. Em alguns dias vais ficar boa, ganhar o teu peso de volta e eu vou cuidar de ti o resto da vida.
Eduarda começou a beber o café devagar, sentindo o calor entrando no estômago. Pensava como seria tudo no futuro, com tantas mudanças que ocorreram. Ergueu o rosto para Igor e perguntou, muito séria:
– O que vai acontecer em seguida e como vai ficar a nossa vida?
– Primeiro, precisas de ficar boa para podermos ter mobilidade, depois, pretendo levar-te para um lugar seguro.
– E onde seria isso?
– Outro mundo, onde há seres tão poderosos que até o mais forte dos magos precisa de se curvar a eles.
– E depois?
– Depois é óbvio: pretendo destruir essa criatura que eu mesmo libertei por ignorância.
– E depois? – questionou mais uma vez, preocupada.
– Depois, como? – Igor riu. – Depois vivemos felizes para sempre, tal como planejamos, não achas?
– Será? – Ela enrugou a testa. – Tu és tão diferente de mim, com esses poderes e capacidades. Daqui a uns anos, vais começar a ficar enjoado da nossa vida...
– Que é isso, Eduarda. – Igor sorriu, meigo. – Eu jamais enjoaria de ti. Se te lembrares, eu vivia muito bem contigo e sem usar os meus dons.
– Mas tu podes fazer tudo isso, visitar mundos diferentes...
– Nada disso faz sentido para mim sem ti, amor. – Igor apertou a mão dela entre as suas. – Certa vez Ezequiel disse que nós magos temos uma ligação muito estreita, sendo raro um casal separar-se e eu acredito nisso. E nós podemos viver onde quiseres.
Eduarda sorriu e olhou para ele de alto a baixo, dizendo:
– E essas roupas de príncipe encantado? – deu uma pequena risada, satisfeita com o visual dele. – Fazem parte do pacote? Todos os magos vestem-se assim?
– Os magos usam roupas diferentes sim, alguns preferem túnicas e nós guardiões ou aprendizes de guardiões temos capas cujas cores definem nossa posição perante a sociedade. As espadas, contudo, apenas os magos guerreiros podem portar. Eles são a representação dos antigos druidas guerreiros.
– Muito legal e tu estás lindo demais. – Ela voltou a rir. – Se tu vais assim prá faculdade, vou-me incomodar feio com as gurias, sem falar na Anita lá do trabalho. Elas já ficam dando em cima de ti normal, imagina lindo de morrer desse jeito. Vou precisar de andar armada!
Igor deu uma risada e comentou:
– Só tenho olhos para ti, não te preocupes. Além disso, na Terra eu uso roupas discretas.
– Então é por isso que sempre usavas roupas claras, agora eu entendo. – Ela riu, sacudindo a cabeça. – Disseste que era por força do hábito.
– Tentei contar pra ti três vezes naquela noite, amor. – Foi a vez do noivo rir. – Até troquei a roupa na tua frente, mas tu nem deste bola!
― ☼ ―
Depois do café, o jovem mago levou a noiva para a rua de forma a tomar um pouco de sol e sentou-a na cadeira da varanda. Após, saiu a procurar algo, encontrando sem dificuldades e retornando com um pedaço de raiz de um tipo especial, grande e rijo.
Eduarda ficou observando o noivo, que se tinha sentado ao seu lado e permanecia estático, fitando a raiz enquanto ela sofria uma metamorfose lenta, tomando a forma de um pequeno bordão para a garota apoiar-se. A vara agora tinha cerca de um metro e, no topo, havia uma esfera de madeira onde caberia a mão em concha. Quando acabou, ela era tão lisa que parecia ter sido torneada.
Igor olhou para o resultado final, satisfeito. Depois, com a mão livre, irradiou tanto calor sobre a esfera da ponta que ela acabou carbonizada para, em seguida, transformar o carbono em diamante.
Uma vez pronta, estendeu-lhe, sorrindo:
– Pronto, agora terás um pouco de apoio e não ficas dependendo apenas de mim – disse, piscando o olho. – Esse bordão está impregnado de energia minha e talvez consigas fazer alguma coisa nova com ele, mas antes, quero que tu relaxes que vou fazer uma coisa em ti.
– Oba. – Ela riu, sapeca, pegando o bordão.
– Deixa de bobagem que estás demasiado fraca. – Ele não resistiu e riu. – Eu também desejo isso, mas noutra ocasião, quando estiveres bem. Agora apenas quero despertar certas capacidades adormecidas em ti.
– Que capacidades? – A sua curiosidade foi despertada.
– Acho que és uma feiticeira latente ou adormecida – explicou o noivo –, e desejo despertar isso, então segura esse bordão, relaxa e fecha os olhos.
Eduarda obedeceu e ele pegou a sua cabeça com suavidade, deixando os polegares na fonte. Ela sentia-se muito confortável e emanava dele uma sensação de paz e amor muito grandes. Devagar, foi perdendo a consciência, embalada pelo sentimento transmitido. Quando abriu os olhos, ele estava com o rosto perto do dela e beijou-a, para depois se afastar.
– Eu dormi! – afirmou a título de constatação. – E deve ter sido por muito tempo porque o sol andou um bom bocado!
– Não foi bem isso, mas algo parecido e que te proporcionou um descanso adicional – comentou Igor. – Olha o bordão.
Eduarda desviou o olhar para o objeto que ainda segurava e notou que o diamante brilhava com força. Arregalou os olhos.
– Sou eu que tô fazendo isso!? – perguntou, espantada. – Vem cá, esse troço é um diamante de verdade?
Igor fez um aceno afirmativo e ela achou o máximo, sorrindo muito.
– Mas agora poupa as tuas energias. Para apagar a luz, basta desejares. Tenta visualizar o bordão opaco. Ele está carregado de muita força minha e vai facilitar, como se amplificasse os teus poderes adormecidos, agora nem tanto.
Ela obedeceu e o bordão apagou-se. Rindo, disse:
– Acho que vou gostar disso – riu mais um pouco. – Muito mesmo. Agora começo a entender como certas coisas aconteceram, as cadeiras daqueles quatro idiotas no Centro de Vivência, por exemplo, e outras coisinhas mais.
– Amor, jamais deixes alguém saber disso porque até hoje há medo e desconfiança a nosso respeito – avisou Igor, muito sério e preocupado. – Já basta o estrago que fiz em Santa Sofia por tua causa.
– Quanto tempo tu demoraste para aprender? – perguntou ela.
– Descobri os meus poderes com apenas um ano – explicou o noivo. – Os meus pais eram magos de quarto nível e reconheceram logo o meu potencial. Passei quase toda a minha vida na Cidadela, sendo ensinado.
– Não entendo nada disso – afirmou, franzindo a testa, gesto que ele era apaixonado. – Devias me ensinar do início, mas antes me explica por que somos assim. Eu nunca acreditava nessas coisas de magia!
– Bem, meu amor, segundo os mais notórios cientistas da alta magia moderna, os nossos poderes são consequência do cérebro ter menos setores ociosos. Em outras palavras, as nossas mentes são mais utilizadas, cerca de cinco a dez por cento.
– Então somos mais inteligentes? – perguntou Eduarda. – Na verdade, não me sinto mais inteligente que muita gente lá na faculdade.
– Bem, os setores ativados do cérebro nem sempre precisam estar ligados à inteligência. A nossa magia vem da capacidade de moldar a matéria e energia ao nosso bel-prazer. Mas tu és muito inteligente sim, amor.
– Isso cheira um pouco a física quântica, não é? – Eduarda arregalou os olhos.
– Claro, pura mecânica quântica. – Igor riu. – É a capacidade de moldar e metamorfosear as partículas subatômicas, usando para isso as ondas de pensamento, que nos permite criar tudo o que fazemos. Lembra-te que ondas também são partículas, embora desprovidas de massa.
– Tá, e esses mundos, a Cidadela, o que são?
― ☼ ―
Em Porto Alegre, uma viatura policial encostou em frente a uma casa. Dois policiais saíram e bateram à porta. Pouco depois, alguém abriu e eles mostraram os distintivos.
– Polícia, queremos falar com Igor Montenegro.
Valdo abriu mais a porta, olhando para ambos e dizendo:
– Olhem, ele viajou já faz algum tempo. Aqui fico apenas eu que cuido da casa para ele porque somos amigos e ele pediu.
– Como é o seu nome?
– Valdo Menezes.
– Pois bem, Valdo, nós temos um mandado de busca. – O delegado mostrou-lhe uma folha de papel. – Então, com licença.
O jovem saiu do caminho para eles entrarem e ficaram olhando a casa com toda a atenção. O primeiro delegado perguntou:
– Suponho que a esposa foi com ele, não é?
– Esposa?! – Valdo não entendia mais nada.
– Sim, esposa. Eduarda Vargas Montenegro, segundo estes papéis.
– Temo que haja algo muito estranho, pois Eduarda casou com aquele cafajeste do Samuel e não com Igor. Ela e Igor eram noivos, mas Samuel aprontou alguma coisa e fez Duda largar meu amigo.
– Nestes papéis consta que ela é casada com Igor Montenegro.
– Afinal, o que foi que ele fez de errado, posso saber?
– Faz pouco tempo, alguém andou pesquisando sobre a esposa dele nos computadores da polícia federal e ele foi filmado saindo da delegacia, mas não entrando, isso junto com outra pessoa que não pôde ser identificada. Além disso, há digitais dele numa cena de crime na cidade de Santa Sofia, sem falar nas descrições de muitas testemunhas que o viram lá.
Valdo ficou pensativo e concluiu que Igor atingira seu objetivo e talvez até tenha resgatado a noiva, mas deve ter precisado de usar muita violência. Logo depois, lembrou-se de uma notícia que deu na televisão, notícia que ele rira e ignorara por ser estapafúrdia.
– Por acaso Santa Sofia não é aquela cidade que falaram que teve um sujeito metido a Lanterna Verde flutuou no ar e lançou raios? – Valdo riu a bom rir ao ver a cara de pouco à vontade dos policiais. – Fala sério. Bem, senhores, já que têm um mandato, nada posso fazer, mas agradecia se não bagunçassem muito porque eu que vou ter que arrumar de volta. Afinal, nós já nos conhecemos lá da faculdade, há dois anos. Qualquer coisa basta perguntar.
– Sim – confirmou o delegado. – Lembro daquela festa dos calouros. E Igor mais Eduarda foram os jovens atacados, não é?
– Isso mesmo. – Valdo riu. – E acho que aquilo acabou virando um romance. Bem, fiquem à vontade.
O garoto não demonstrava, mas estava era morrendo de medo, em especial quando soube que foram filmados.
― ☼ ―
– Igor. – Eduarda deu-lhe um pequeno safanão. – Até parece que tu entraste em transe.
– Desculpa – disse, quase dando um salto. – Fiquei lembrando coisas. Acho mesmo que é melhor te contar do início...
― ☼ ―
Nome fictício. N.A.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top