Capítulo 7

"Dificuldades preparam pessoas comuns para destinos extraordinários."

C. S. Lewis.


Naquele fim de dia particularmente quente Ezequiel, sentava-se tranquilo na sua varanda, meditativo. Agora que o Sol se havia posto e uma brisa quase imperceptível pairava por toda a clareira onde erigira a sua cabana, ambas feitas por meio dos seus poderes, aproveitava para apreciar o seu momento de contemplação da natureza, saboreando o único vício que mantinha ao longo dos últimos séculos: fumar o seu cachimbo.

Começou o ritual de preparação, cujo primeiro passo era a limpeza cuidadosa do artefato, fazendo isso com toda a atenção e sem pressa nenhuma. No final, soprou para longe os pedaços de tabaco velho e analisou a sua obra. A seguir, de uma bolsa de couro preta já velha e surrada, começou a encher o cachimbo de tabaco, calcando-o com o polegar e aspirando deliciado o aroma que emanava. Por último, quando estava tudo terminado e aprovado, materializou um graveto e fez com que incendiasse a ponta, acendendo o seu cachimbo. Deu uma forte baforada e recostou-se na cadeira, relaxado, olhando a fumaça que soprou e que formava anéis que cresciam a cada um que era criado. Nessa visão, lembrou-se do Igor, que fazia uma grande careta cada vez que começava a fumar, alegando que aquilo não era saudável em absoluto, além de demasiado fedorento. Com saudades, sorriu.

Certa vez, o jovem mago perguntara por que motivo ele não usava os seus dons para pular direto para a última etapa e Ezequiel explicou que era por causa do prazer. Após tal resposta, o garoto encolheu os ombros e saiu com uma proposta que, naquela ocasião, fê-lo gargalhar durante um bom tempo: "Então, aproveite e comece por plantar o tabaco. Assim o serviço fica completo e eu livre dessa fedentina por algum tempo."

Sorrindo com a lembrança, recostou-se mais, deu uma baforada no seu cachimbo preferido e balançou a cadeira bem devagar, cujas correntes rangeram um pouco. A seguir, inclinou a cabeça para trás e soltou a fumaça, apreciando os sons da natureza, o barulho sutil de alguns morcegos que apenas uns poucos homens podiam ouvir, os macaquinhos que se retiravam assobiando após terem ganho bastantes pedaços de alimento do ancião e os grilos que faziam uma verdadeira orquestra ao cair da noite. Nessa hora, sentindo saudades do jovem mago, perguntou-se onde estaria Igor e se ele teria conseguido resolver os seus problemas.

Já desaparecera há quase dois anos, no meio da batalha em que ele e o dragão muito a custo contiveram aquela sombra maligna, que acabou fugindo. Pelos seus conhecimentos adquiridos há dezoito séculos, ele imaginava onde estaria agora o rapaz e aguardava ansioso o momento de o poder ver de novo. Uma coisa que o deixava intrigado era o fato da maldita aberração ser tão poderosa quanto Igor a ponto do jovem mago não ter condições de o derrotar, mas ele e Saci conseguiram deter a criatura. Ezequiel acreditava inclusive que seria capaz de a conter sozinho, embora o risco fosse demasiado alto, e isso deixava-o ainda mais pensativo quanto ao rapaz, muito, mas muito mais poderoso que ele.

O ancião acreditava que ele voltaria, apesar da ordem que dera para que se afastasse da cabana. Esse rumo de pensamento fê-lo voltar a pensar na maldita criatura e, mais uma vez, perguntou-se o que Igor tinha que tornava o demônio mais forte.

Ergueu o cachimbo para nova tragada quando um som sutil fez-se presente, um som que não pertencia ao ambiente e muito menos combinava com ele, como um raspar e depois um arrastar. Ele não fora o único a ouvir, já que Saci se ergueu, olhando na direção do mato e, depois, virando-se para o ancião.

– Bem sei, Saci – disse, apertando o cachimbo na mão. Levantou-se e pegou no bordão. – Vamos ver esse portal e quem atravessou. Fique preparado.

Ezequiel murmurou algo e o cajado começou a brilhar com muita força, iluminando cada canto por mais obscuro que estivesse. Na dúvida, também gerou uma barreira pessoal, fazendo seu corpo brilhar de forma fantasmagórica em um tom azul.

Um arbusto moveu-se com uma lentidão enervante e os dois viram uma mão suja surgir, afastando-o. Logo a seguir, um homem bastante ferido avançou, cambaleando agarrado ao ventre e caiu no chão aos seus pés.

– Macacos me mordam – praguejou, ao reconhecer o mago em quem pensava segundos antes. – Saci, feche o portal, rápido.

O cachorro penetrou dentro do arbusto por alguns segundos e retornou pouco depois, mas na sua forma verdadeira porque era incapaz de fechar ou abrir portais quando transformado em cão. Ezequiel abaixou-se para olhar o mago e notou que sofreu um castigo apreciável, talvez até mortal, segundo lhe parecia. Parou a mão sobre o enfermo e murmurou algumas palavras.

Com isso, o corpo desfalecido enrijeceu e flutuou no ar, permanecendo a vinte centímetros do ancião. Com cuidado, levou-o e deitou-o em um catre. Colocou uma das mãos em cima do seu abdômen, que começou a brilhar, pulsando. Quando conteve a hemorragia e curou o amigo, fez com que ficasse limpo da sujeira toda e, após, tratou os hematomas e cobriu-o. Agora, apenas o sono faria o resto do serviço.

Permaneceu alguns segundos olhando para Igor e tentando imaginar que força tão poderosa seria aquela para derrotá-lo de maneira fulminante, pois a extensão do poder daquele jovem era grande demais. No estado em que se encontrava, ele demoraria a se recuperar e só pedia à Deusa que não fosse mais uma vez vítima de amnésia.

Foi para a varanda e ajudou o dragão a retornar à sua forma de cão. A seguir, voltou a acender o cachimbo, sentando-se a meditar, mas agora com o semblante carregado pela preocupação. Saci olhou para ele e o velho sorriu.

– Bem sei que ele é forte, Saci – comentou –, mas a minha grande preocupação é aquela coisa que está solta por aí e que nós não conseguimos destruir, uma coisa que com toda a certeza é a responsável pelos maus-tratos infligidos a ele, uma pessoa tão poderosa que me poderia matar apenas com o olhar. Não é pela recuperação dele que me preocupo, porque isso sei que acontecerá em pouco tempo, mas sim o que está por vir. Só espero que o nosso silêncio em relação a ele e ao que o aguarda não seja um erro. E pior, espero que não tenha acabado de acontecer um paradoxo. Ele não devia estar aqui, agora.

– "Estou certo que devemos manter certos eventos em segredo, Ez." – A voz do dragão ecoou na sua mente. – "É demasiado perigoso e importante. Ele terá de passar por isso, mesmo se perecer. Acredito nele do fundo do coração e nós dragões não somos de nos enganarmos. Quanto a paradoxos, não creio porque meu irmão de raça ainda não surgiu."

– Espero. – Finalizou com um suspiro.

― ☼ ―

Igor acordou atordoado, sem entender nada até que a consciência retornou aos poucos. Tinha a sensação de ter despertado e dormido diversas vezes, onde lembrava-se de alguém lhe ter dado água. O primeiro pensamento coerente que teve foi para a sua querida Eduarda e sentiu uma tristeza enorme porque ela o abandonara, embora acreditasse que Samuel usou algum tipo de feitiço que lhe era desconhecido. Ainda conseguia sentir na imaginação o seu corpo colado a ele, vestindo apenas a roupa íntima após o banho quando topara casar-se com ela antes de se formarem. Sem pensar, moveu a língua nos lábios como se estivesse a sentir o beijo dela naquele momento, mas não ousava abrir os olhos porque sabia que o momento fugiria e o peso da derrota viria com tanta força que seria devastador. Para sua infelicidade, apenas esses pensamentos foram suficientes para o trazerem à sua fria realidade e uma lágrima minúscula correu do seu olho, solitária. Tudo o que desejava naquele momento era o conforto da não existência, mas uma voz rompeu o silêncio:

– Parece que esse negócio de o salvar vai virar moda, filho, não é? – questionou Ezequiel a título de cumprimento. – Eventualmente, eu preferiria uma visita normal em vez disso. Como se sente?

Igor abriu os olhos quando reconheceu o proprietário da voz, mas não se mexeu, permanecendo apático.

– Vamos lá, filho. – Ezequiel apareceu no seu campo de visão, estendendo uma xícara de café. – Se não se levantar e alimentar, em breve será apenas um cadáver. Nesse caso, não valeria a pena ter vindo aqui. Por outro lado, se encarar a sua realidade, então podemos tentar resolver os seus problemas, juntos.

Igor virou o rosto e ergueu-se com alguma dificuldade, sentindo-se muito fraco e tonto. Ezequiel voltou a estender-lhe o café e o odor suave que emanava daquela xícara despertou-o de vez, além de lhe provocar água na boca. O jovem pegou nele, bebendo devagar e sem falar uma palavra que fosse, nem de agradecimento. A bebida tirou-lhe um pouco do mal-estar que sentia e a mão parou de tremer.

Compreendendo a sua situação, o velho mago deu-lhe o espaço desejado, sabendo que ele viria para a vida em breve, feliz por estar na frente de um lutador e não de um derrotista. Em silêncio, permanecia observando, pensando.

Saci levantou-se e caminhou até ele, deitando-se aos seus pés. Igor olhou para o dragão com ar agradecido e depois virou o rosto para Ezequiel. Tomou mais um gole, pousou a xícara na mesinha ao lado da cama, respirou fundo e perguntou:

– Quanto tempo já passou?

– Que não nos víamos ou que você dormiu?

– Por favor, Ezequiel – resmungou. – Desculpe-me, mas não estou com o humor nos melhores dias.

– Tudo bem, filho. Você dormiu uma semana e deve estar demasiado fraco. Então não se levante de soco que...

– Uma semana!? – exclamou Igor, exaltado e levantando-se de chofre, bem ao contrário do recomendado. – Como pode...

Não terminou a frase, pois precisou de toda a sua habilidade para não cair de cara no chão. As pernas tremiam, sem lhe obedecerem e tudo começou a girar à sua volta. Por mais que tentasse, não conseguiu segurar-se muito tempo e começou a resvalar, mas Saci foi mais rápido e ajudou-o no momento exato, escorando-o e fazendo-o sentar-se de volta. Um pensamento gentil, porém firme, insinuou-se na sua mente:

– "Precisas de te acalmar e pôr tudo às claras. Qualquer tentativa que fizeres sem estares preparado para isso, será a tua ruína. É isso que queres? Que ele triunfe e te leve o teu bem mais precioso enquanto o teu corpo quase imortal apodrece debaixo da terra?"

– Tens razão, Saci, obrigado. – Igor suspirou. – Estou fraco demais até para me mover.

– "Ótimo" – respondeu Saci. – "Agora descansa um pouco."

Ezequiel levantou-se, aproximou-se dele e murmurou algumas palavras, fazendo com que Igor, sem qualquer transição, sentisse como se tivesse saído do banho, além de estar vestido com as suas roupas, também limpas.

– Vamos, filho. – Estendeu a mão, oferecendo apoio. – É importante que coma algo e sente um pouco. Você ficou demasiado tempo deitado.

Igor agradeceu o auxílio e acabou sentado em uma cadeira, a mesma que usara na primeira vez que viu Ezequiel. Nenhum deles falou nada e Saci não se manifestou mais, até porque os dragões não eram lá muito palradores. Nesse meio tempo, o mago serviu uma sopa que ele sorveu devagar, sob supervisão. Quando acabou, sentiu-se bem melhor e Ezequiel começou a falar, achando que já era hora de esclarecer as coisas:

– Pra começar, Igor – disse, sentando na cadeira ao lado –, vejo que já se lembra de tudo ou quase tudo e eu gostaria de respostas, mas também quero ajudá-lo, então espero que me conte o que se passou... desde o início.

– Se eu disser que é tanta coisa que nem sei por onde começar, o senhor acreditaria?

– Acredito sim – respondeu Ezequiel. – Então, que tal começar pelo nome que mais saiu da sua boca nos últimos sete dias: Eduarda.

Ao ouvir essa palavra proferida por ele, Igor sentiu um nó na garganta, tão forte que parecia que ia perder a respiração. Quando aquilo tornou-se insuportável, ele baixou a cabeça e umas poucas lágrimas escaparam, caindo do seu rosto.

– Entendo – disse o velho, triste. – Ela está viva?

Igor encolheu os ombros, dando a entender que não sabia e o amigo esperou mais um pouco para que se recuperasse.

– Desculpe, Ezequiel – respirou fundo, tentando acalmar-se um poco. – Sofri um grande choque por causa dela.

– Tudo bem – disse ele. – Você conheceu a moça na Cidadela, que nível é o dela?

– Ela não tem poderes...

– Impossível – contestou o ancião. – É muitíssimo raro um mago apaixonar-se por uma moça que não seja feiticeira e isso é questão de química, pura química.

– Nesse caso o impossível aconteceu – insistiu Igor. – Ela não tem a menor ideia de que existimos.

– Pode ser uma adormecida, mas isso ver-se-á noutra ocasião, quando tudo for resolvido – disse o amigo, dando o assunto por encerrado, para o momento. – Agora, vejamos: quando você apareceu a primeira vez, em choque, dizia que todos morreram, que estavam todos mortos. Depois que se foi e conseguimos afugentar aquele negócio dos infernos, eu fui à Cidadela e não encontrei viva alma lá, Igor. O que aconteceu com as cerca de quarenta mil e quinhentas pessoas que viviam no Mundo de Cristal?

– Eu guardei os seus corpos em um lugar muito bem protegido, sem falar que eram mais de cinquenta mil porque estávamos no encontro anual. Os últimos que coloquei lá, foram os meus pais.

– Mas quem fez isso, aquele ser preto que enfrentamos aqui há dois anos? – Ele arregalou os olhos. – Pela Deusa, devemos ser os últimos magos vivos! De onde veio essa maldita criatura? Só lhe falta o cheiro de enxofre e os chifres!

– A culpa disso é minha. – O jovem mago baixou a cabeça e suspirou.

– Acho melhor você contar tudo do início, filho.

Ezequiel recostou-se na cadeira e fechou os olhos, ouvindo na íntegra a história triste e aterradora que o jovem sofrera. Igor fizera uma descoberta incrível, mas o preço que pagou por ela foi alto demais para ele e por pouco não lhe levou a sanidade.

Por quase três horas ele contou quase tudo e bem detalhado, exceto por uns poucos itens de menor importância ou pessoais que não interferiam nos acontecimentos. Depois, o velho fez perguntas por mais uma hora, algumas respondidas de imediato e outras ficaram em branco.

O dia já ia no fim quando as perguntas acabaram e ambos ficaram calados por um bom tempo. Por último, Ezequiel disse:

– Vamos lá para fora que você precisa de andar um pouco e eu quero pensar.

Igor levantou-se e Saci ficou ao seu lado, oferecendo o lombo para ele se apoiar, enquanto Ezequiel pegava a bolsa do seu cachimbo e tabaco. Sentou-se na cadeira favorita e apontou a outra para o hóspede.

Tonto, Igor ficou a vê-lo acender o cachimbo, mas, quando a fumaça veio na sua direção, ensaiou a sua primeira magia desde o combate e ordenou à fumaça que fizesse um desvio, contrariando de vez a direção da suave brisa. Ele sempre reclamava que a fumaça fazia questão de pairar para cima de quem não fumava e mais uma vez a prática comprovava a teoria. Por precisar de pouca energia nessa ação, foi bem-sucedido e Ezequiel teve vontade de rir, mas permaneceu concentrado durante um bom tempo, tanto que Igor dormitou alguns minutos até ser acordado pela sua voz:

– Podemos tirar umas quantas lições importantes disso tudo. A mais óbvia é que ele o odeia com todas as forças do seu ser e deseja destruí-lo a qualquer custo, em especial provocando sofrimento; a segunda é que ele sugou o conhecimento e poder de uma multidão de magos e por isso é tão forte, em hipótese; terceiro: ele, de alguma forma, tem uma conexão consigo que lhe permite encontrá-lo onde quer que vá, mas pode demorar até mais de dois anos, dependendo da situação; quarto: ele aparenta poder manipular outras pessoas; quinto: ele pode abrir portais, mas não é lá muito hábil; sexto: ele parece gostar e quer assumir a forma humana como definição, tornando-se mais vulnerável do que um mago.

– Esqueceu da sétima: ele pode derrotar-me com uma certa facilidade. Muita, na verdade.

– Para mim, essa sétima e a terceira estão ligadas – corrigiu o velho. – Ele não pode derrotar um dragão e isso já é alguma vantagem. O que eu estranho muito é que mesmo tendo absorvido a força de todos os magos, você afirmou que era muito mais forte que eles, ou seja, não é a segunda opção que dá à criatura o poder de o derrotar, filho. Diga uma coisa, você afirmou que os corpos estão intactos?

– Sim, intactos e perfeitos, como se bastasse soprar uma essência divina nos corpos para voltarem a viver.

– Bem, Igor, a primeira coisa que necessitamos é que você recupere as energias e, depois, aprenda coisas novas, coisas que não conhece. Não será a sua poderosa magia que o destruirá e isso você já está careca de saber. Como ele pode voltar aqui e atrapalhar todos os nossos planos, apesar do Saci, vamos mudar por algum tempo para outro lugar, mas agora você vai engolir uma boa sopa e dormir.

― ☼ ―

No terceiro dia de repouso, Ezequiel começou a preparar a viagem, movendo-se tranquilo enquanto Igor tomava um chá. Ele tentou ajudar, mas o sábio mandou-o poupar as forças. Abriu o armário, cochichou alguma coisa e surgiu um par de mochilas que pegou. Após, retirou e vestiu uma capa de cor de vinho por dentro e dourada por fora.

– Então o senhor, apesar do nível dois, é um guardião! – afirmou Igor. – De quê, já que nunca vi essa cor?

– Sou o guardião de toda a sabedoria ancestral, filho. – Ele riu, debochado. – Nada mais apropriado para o homem mais velho dos treze planos, não acha?

– Acredito que sim – respondeu Igor. – Mas lembre-se de que são quinze planos.

– E a sua capa, Igor? – questionou, Ezequiel. – Ela ficou de tal forma destruída que não podia ser identificada, ela e as suas outras vestes.

– É porque ela é branca – disse Igor, cabisbaixo. – Toda branca.

– Por que não disse? – perguntou, sacudindo a cabeça de forma reprovadora. – Tem vergonha dela? Achou que omitindo isso no seu relato não haveria interferência?

– Não – respondeu Igor – apenas porque não me parece relevante. Mestre ou aluno, que diferença faz a esta hora?

– Olhe, filho, eu já vi centenas de magos, milhares, e nunca um com poderes tão fortes como os seus, então orgulhe-se disso. Agora reconstrua as suas vestes e vamo-nos embora.

Igor nada vez a não ser pensar, coisa que deixava Ezequiel fascinado. As suas roupas mudaram sem transição e ele parecia muito diferente. Uma camisa de seda com mangas compridas, folgadas nos braços e justas nos pulsos, surgiu no lugar da camiseta e as calças, de um tecido muito confortável, tinham uma aparência mais normal que os jeans. A capa pendia nos seus ombros quase até aos pés, oscilando com a suave brisa e fazendo um barulho sugestivo de pano ao vento, toda ela branca. Nos pés calçava uns sapatos confortáveis e, na cintura, portava uma espada em dourado flamejante com um cabo todo ornamentado de pedras preciosas, envolta em uma bainha de um material desconhecido e cor vermelha, intensa e brilhante. À exceção da arma, tudo o resto era branco e Igor parecia a encarnação de um nobre espadachim do século XVIII. Mesmo sabendo o que esperar, Ezequiel arregalou os olhos e afirmou, rindo:

– É Magnífico mesmo, bem melhor. – Deu outra risada. – Com essas vestes e essa barba loura, você até parece um príncipe nórdico do passado, filho. Se a sua garota o visse assim, babaria toda.

Mais sério, continuou:

– Tenha orgulho de ser o que é e dessa capa, Igor. Por favor, não a esconda mais.

– Eu prometo, Ezequiel. Onde vamos? – perguntou o jovem, tentando ignorar o comentário sobre Eduarda. – Ainda me sinto demasiado fraco para abrir um portal e muito menos para treinamentos mais intensos.

– Um a mais não pesará no Saci. – O sábio apontou o cachorro, sorrindo. – Pronto, meu amigo? Volte à sua forma.

Mesmo já tendo visto duas vezes, Igor ficou maravilhado com a metamorfose incrível de um cachorro, enorme é verdade, em um gigantesco dragão de uns vinte metros. Quando acabou, Saci virou o pescoço para ambos.

– "Podem montar" – disse ele. – "Espero que fiquem confortáveis."

– Mas onde vamos? – perguntou mais uma vez.

– Vamos para o mundo dos dragões, no oitavo plano – respondeu Ezequiel. – Apenas prepare-se que levaremos uns cinco dias para chegar lá.

– Cinco?! – Igor espantou-se. – Por quê?

– Os dragões não efetuam mais de um salto e, também, não passam mais de um plano por vez. Precisam de algum tempo para se restabelecerem após abrirem um portal. Bem mais do que nós.

– Quem sabe eu tento abrir um – disse Igor, contrariado com tanta demora. – Pouparíamos muito tempo.

– Errado – insistiu Ezequiel. – Tempo é o que mais temos. Estes cinco dias serão ótimos para que você recupere as suas forças. É pura perda de tempo desperdiçá-los de outro jeito.

– O senhor tem razão. – Igor sorriu. – Não é por acaso que é o guardião da sabedoria.

– Claro que não é. – Ezequiel riu. – Vamos.

Ambos montaram no Saci, uma experiência inédita para Igor que achou a sua posição confortável. O ser enorme deu dois passos e o terceiro foi um salto forte, que terminou com o desdobrar das quatro asas para alçar voo. Igor sentiu uma pressão intensa, como se estivesse em um avião sob forte ascensão e calculou que o ser alado devia ter uma energia e vigor impressionantes. Concluiu que Saci não devia estar a usar toda a sua força de forma a não os afetar com as taxas de aceleração.

O dragão foi ganhando altura, talvez uns mil metros pelos cálculos do mago, e seguiu planando com as enormes asas todas abertas, coisa que provocou em Igor uma deliciosa sensação de liberdade que ele jamais havia vivenciado, nem mesmo quando usava os seus dons para voar. Sentindo o seu pensamento, Saci disse apenas para ele:

– "É uma sensação incrível, não é, Igor? Eu também tenho esse sentimento de liberdade e felicidade quando voo. Agora vou abrir o portal. Muitas vezes eu voava com a neta de Ezequiel, quando ela era jovem, e fazíamos verdadeiras loucuras só pelo prazer que isso nos proporcionava." – Ele expeliu chamas pelo nariz e uma fenda formou-se a cerca de cinquenta metros deles, provocando um estrondo como se um trovão tivesse acontecido por perto. Saci mergulhou, passando para o quarto plano e fechando a abertura. Estavam agora em um mundo avermelhado e um tando árido, com duas luas no zênite que o iluminavam bem. Se não fosse o fato de ter atmosfera respirável e a gravidade ser quase idêntica à da Terra, qualquer um juraria que estariam em Marte.

Saci seguiu planando enquanto podia, até que alcançaram a orla de um bosque esparso por onde corria um rio estreito, serpenteando entre as árvores. O dragão pousou e o par desceu.

– Hoje paramos aqui para Saci descansar – disse Ezequiel, sentando-se encostado a uma árvore.

Igor foi até ao regato tomar água. Agachou-se e juntou as mãos em concha, colhendo um pouco do líquido cristalino e puro, bebendo-o com prazer, enquanto Ezequiel, debochado, pegou uma garrafa da mochila e começou a tomar a sua água.

– Cuidado para não se afogar, viu? – afirmou. O jovem virou o rosto para ele, que sorriu e estendeu a garrafa. Igor sorriu de volta e não quis perder tempo explicando que ele foi ali porque desejava andar um pouco, mas o dragão falou por ele:

– "O jovem Mago desejava caminhar até ao rio, Ez. Para ele, certas coisas são novidades. Coitado, tão poderoso e tão perdido para algumas das grandes maravilhas do Universo."

– Admito que é verdade. Quando quero ir a determinado local, apenas abro um caminho direto para lá. Não preciso de pausas intermediárias. Por isso, não conheço tão bem todos os planos exceto pelas aulas de astronomia planar. Quero dizer, eu conheço os caminhos para todos os planetas irmãos da Terra e estive em todos eles porque faz parte do aprendizado básico de um nível um, bem como sei as coordenadas de mais de dois mil mundos pelo currículo de um Guardião dos Portais, mas nunca parei para os apreciar e isso agora entristece-me. Estive em algumas centenas desses planetas, em especial quando acompanhava uma amiga que adorava explorar certos mundos, mas não tenho o conhecimento pleno deles como a Carol tinha. Talvez agora eu tenha entendido o que o Guardião Supremo me disse sobre faltarem alguns anos de vida.

– Pois saiba, filho – confessou Ezequiel –, que eu imaginava que assim fosse e faço questão de que conheça as principais características destes mundos. Isso também é uma arma potencial.

– De que forma pode ser uma arma?

– A geografia do lugar pode trazer armadilhas para certas formas de vida e você pode usar isso a seu favor.

Igor terminou de olhar o horizonte e virou-se para o guardião que voltou a beber e sorrir, abanado a cabeça. Disposto a uma pequena vingança, concentrou-se um pouco enquanto caminhava de volta para os amigos. A água do rio começou a erguer-se, devagar, como se um esguicho de um gêiser a atirasse para cima, só que o estranho era que o fluido fez uma curva elegante e seguiu o mago. Ezequiel não tinha prestado atenção até ouvir a risada mental do Saci. Olhou para a frente e viu o jovem sendo seguido pelas águas, ficando boquiaberto. Sem resistir à brincadeira, Igor fez o jato de água entrar na boca do sábio que acabou engasgado.

– Se Maomé não vai ao rio, o rio vai a Maomé. – Ezequiel saltou para o lado e a água virou-se para a garrafa de forma a enchê-la. Igor continuou. – Achei que poderia desejar mais água, já que me estendeu a garrafa.

– Seu, seu... engraçadinho – resmungou o sábio, mas acabou rindo.

Saci permanecia deitado e Ezequiel usava os seus poderes para fazer alguns pedaços de madeira voarem e formarem uma pequena pira porque tinha intenção de acender uma fogueira. Quando estava no fim e viu o dragão olhar para a lenha, disse:

– Nem se atreva a espirrar na madeira, Saci. Da última vez virou tudo carvão em três segundos e tive que catar mais lenha.

Igor foi obrigado a rir, mesmo com toda a tristeza e preocupação. Depois, não teve mais tempo, porque o sábio começou a lhe despejar uma torrente enorme de informações daquele mundo.

Na manhã seguinte, o velho levou-o a um passeio pela floresta, aprofundando-se cada vez mais nela que ficava um pouco mais densa, mes não muito. Curioso, Igor acompanhava-o em silêncio e prestava muita atenção em tudo. O tom de vermelho intenso daquele mundo em contraste com o forte verde-escuro da mata era bonito e parecia que ele via tudo pela lente de uma máquina fotográfica com um filtro de infravermelho. As árvores eram muito espaçadas entre si e a vegetação rasteira rareava. Os poucos animais que viu eram apenas pássaros e insetos e o silêncio do lugar, que nem vento tinha, era lúgubre.

Absorto nesses pensamentos, Igor nem se deu conta da transição entre a superfície e o interior da montanha onde entraram, de tão sutil que foi, até porque as árvores continuavam a existir lá dentro e o teto da caverna era tão fosforescente que parecia dia. Quando pararam, estavam na entrada de uma clareira gigantesca, com o diâmetro aproximado de três campos de futebol e tão redonda que só podia ser artificial. No centro dela, havia um edifício abobadado feito de um tipo de material que parecia um mármore azul, também fosforescente. O prédio devia ter bem os seus cinquenta metros de raio e o ponto mais alto da abóboda parecia ser de outro tanto.

– Aquele edifício – explicou o mago –, é o último legado de uma civilização que deixou de existir há uns seiscentos mil anos. Você já pensou que o Homem ainda era pouco mais que um macaco e eles cruzavam o espaço por vários mundos do quarto plano? Desconfio, inclusive, que eram capazes de pular entre planos com as suas máquinas.

– Estou impressionado. – Igor começou a andar, acompanhando o parceiro. – O que lhes aconteceu?

– Não tenho a menor ideia. A abóboda está intacta, apesar dos milênios, mas nunca consegui entrar. Conheci este mundo há quase dois mil anos por causa de um amigo que vinha aqui explorar e, nas minhas andanças exploratórias, acabei encontrando isto. Certa vez investiguei a possibilidade de viajar no tempo para poder conhecer esse povo pois deve haver verdadeiros tesouros de conhecimento neste prédio, só que é inexpugnável. Nenhuma arte mágica pode abrir. Até parece que ele consegue neutralizar os nossos poderes.

– Certa vez, na Cidadela, discuti com uma grande amiga minha a possibilidade de um deslocamento temporal. Nós concluímos que, em teoria isso seria bem possível, mas não logramos conseguir uma forma fazer acontecer. Contudo, talvez seja melhor não brincar com o tempo.

Continuaram andando por um caminho de pedra e ladeado por canteiros de flores vermelhas tão bem cuidadas que se poderia jurar que havia alguém a tomar conta. Quando chegaram perto da abóboda, Igor viu que as pareces mostravam vários desenhos que pareciam de ficção científica, com naves espaciais e até um modelo correto do Universo com os planos. Ezequiel fez sinal para seguirem por um caminho que a circundava e, ao fim de uns minutos, chegaram à entrada.

– A porta está virada para o norte geográfico do planeta, tal como a pirâmide de Gizé, e as pinturas dão uma ideia muito precisa dessa civilização – explicou. Apontou para a esquerda e continuou. – Olhe a estátua.

Igor deu a volta ao redor da estátua até ficar de frente e impressionou-se porque os seres que construíram aquilo podiam passar por humanos exceto por terem três olhos, o terceiro no meio da testa. O sujeito estava parado e tinha a mão esquerda estendida enquanto a direita permanecia junto ao peito. Rodopiou por ela algumas vezes, prestando atenção em tudo e afirmou, convicto:

– Esta estátua tem uma finalidade específica, mas não estou certo qual é. A mim, parece um aviso, um alerta, talvez de perigo.

– Confesso que nunca me preocupei com a estátua exceto pela aparência humana deles – admitiu o sábio –, mas agora que diz isso, sinto que tem razão e talvez por isso a construção seja inexpugnável.

Igor ergueu a mão direita e tocou na mão da estátua, sentindo algo.

– Isto tem energia e vibra – exclamou para o amigo. – Deixa ver se eu sinto algo mais.

Fechou os olhos e concentrou-se, mas o fluxo era muito fraco. Por algum motivo que não soube dizer, levou a outra mão ao peito e as emanações ficaram um pouco mais fortes. Ezequiel aproximou-se e segurou o seu ombro. Permaneceram calados por quase uma hora até que Igor soltou a estátua.

– Isto é uma prisão muitíssimo especial – afirmou com toda a convicção. – O que está preso aí é imortal e considerado a encarnação pura do mal, que jamais deve ser solto. Isto, Ezequiel, é uma fortaleza nos dois sentidos, destinada a impedir quem quer que seja de entrar aí ou sair.

– Bem vejo – comentou o sábio arrepiado. – Graças à Deusa resistiu a todas as tentativas que fiz de abrir, que não foram poucas. Vamos retornar que Saci já deve estar pronto.

A passagem para o próximo plano foi similar. Saci subiu muito alto e abriu a fenda, mergulhando por ela e planando para se recuperar. Desta vez, contudo, voaram por mais duas horas antes de pousarem. Aquele mundo era verdejante e muito belo, tão parecido com a Terra que enganaria qualquer um. O povo era agradável e simpático que conhecia os viajantes. Eram seres que se encontravam no equivalente ao século XIII, mas em termos de espírito eram muito diferentes e bastante hospitaleiros. Igor conhecia bem alguns lugares do planeta, mas Ezequiel quis ficar em uma clareira de uma densa floresta bastante afastada da civilização. Quando pousaram, Saci bebeu água no ribeiro e depois dormiu, enquanto Ezequiel aproveitava para treinar o jovem.

– Essa faquinha metida a besta que você carrega na cintura é só para enfeite ou sabe usá-la? – perguntou.

– Deseja terminar a sua vida tão cedo, Ezequiel? – Igor cruzou os braços em tom de desafio. – Saiba que eu sou o melhor espadachim da Cidadela.

– É o que veremos – afirmou, rindo. Ergueu as mãos e invocou um sabre de respeito, colocando-o na altura da cabeça à moda samurai, mantendo os braços dobrados num ângulo de noventa graus. Da lâmina, saía um brilho vermelho, muito suspeito, e ele disse. – En garde!

Igor puxou a sua espada que também começou a emitir um brilho forte, só que dourado. Com toda a calma, aproximou-se com a arma em riste e, quando ambas se tocaram, saíram faíscas e pequenos raios entre o vermelho e o dourado. Após o primeiro toque, começaram a esgrimir e Igor riu, porque Ezequiel era enérgico demais para uma espada tão pesada. Em cinco minutos não aguentaria mais o peso e estaria à sua mercê. Mais um embate rápido e, quando as lâminas tilintaram em meio a crepitares de raios, Ezequiel fez um giro rápido desnorteando o adversário e usou o lado chapado da arma como raquete, arremessando um raio contra o jovem, que caiu atordoado com os fortes choques elétricos recebidos. Recuou dois passos e ergueu a espada na vertical, bem entre os olhos.

Igor levantou-se e olhou boquiaberto para o oponente, sem acreditar que ele era capaz de fazer aquilo. Avançou e posicionou-se para o enfrentar mais uma vez, mas o resultado foi similar, para seu grande espanto: o parceiro trocou alguns golpes e depois usou a espada para arremessar pequenos raios de choques. Na quarta tentativa, Igor ergueu a sua barreira pessoal, mas ela estourou com violência ao tocar a lâmina do oponente. Atordoado, o jovem procurava pela sua espada que havia voado com o embate.

– Chega – comandou o velho. – Lição número um: nunca julgue alguém pela aparência, filho. Eu já manipulava uma espada antes do seu ancestral mais antigo de que tenha conhecimento haja nascido e mantenho-me bem afinado; segunda lição: barreiras de proteção podem ser neutralizadas se for possível identificar a sua natureza e criar uma magia inversa. A sua tarefa nos próximos dias será aprender a criar uma barreira individual que seja aleatória.

– Mais um pouco e chamo o senhor de Obi Wan.

– Pois acredite, filho, que pode tirar algumas excelentes lições desse filme.

– Como o senhor pode entender tanto de filmes um tanto quanto modernos se vive tão isolado?

– Ora, meu filho. – Ezequiel riu bastante. – O que é a televisão senão ondas eletromagnéticas? Quando quero uma distração diferente, crio uma TV e vejo um bom filme.

– Por essa eu não esperava. – Igor deu uma risada franca e sacudiu a cabeça. – Mas o senhor tem toda a razão. Confesso que prefiro uma boa música.

– A música é mais fácil de fazer. – Ezequiel riu. – Dá inclusive para inventar uma melodia do nada.

― ☼ ―

Os dias subsequentes foram uma série de surras que o jovem levava, embora fossem cada vez mais difíceis de aplicar porque ele aprendia com uma velocidade impressionante. Intercalando as aulas de esgrima e de magia para criar uma barreira eficiente, Ezequiel mostrava dados sobre os planetas por onde passavam, dados esses muito detalhados. No quinto dia, quando iam decolar para o último trajeto que terminaria no mundo dos dragões, Ezequiel disse:

– Filho, você está prestes a ir para o planeta mais secreto e bem guardado do oitavo plano. Sei que a partir do momento em que Saci abrir o portal, você aprenderá o caminho, mas deve prometer que jamais irá para lá sem consentimento a menos que seja uma grande emergência. Os dragões não gostam de intrusos e podem tornar-se perigosos até para o mais poderoso dos magos, sem falar que nem o Guardião Supremo em pessoa tem o direito de aparecer sem a devida autorização, entendeu?

– Eu prometo, Ezequiel – respondeu. Afagou o pescoço do Saci e continuou. – Acredito que o nosso amigo Saci confia em mim, senão jamais nos teria trazido até aqui.

– Pode ter a certeza. Vamos, Saci?

Uma risada mental ecoou nas cabeças dos dois e o gigante ergueu-se aos céus, ganhando altura com uma velocidade alucinante. Enquanto observava o solo tornar-se cada vez mais longínquo e tudo menor, Igor perguntou:

– Ezequiel, por que motivo os dragões são tão reclusos? Não há registros a respeito na Cidadela, senão eu saberia.

– Bem, não se trata de algo que os magos mais antigos gostem de contar – explicou Ezequiel – mas você tem a obrigação e o direito de saber. Em uma antiguidade bem remota, quando os druidas eram dispersos e desorganizados, divididos em clãs espalhados por toda a Europa e bem antes de ser criada a Cidadela, eles descobriram os dragões. Na verdade, fomos descobertos por eles, que gostaram muito da Terra. Um grande pacto de amizade foi firmado entre dragões e celtas, em especial porque eles podiam viajar pelos planos, já que os druidas que não eram de primeiro nível dependiam de cápsulas planares para trocarem de plano e, como você sabe, as cápsulas planares têm capacidade e tempo limitados e só seriam descobertas alguns séculos depois. Para nossa infelicidade, um grupo de druidas megalomaníacos quis dominar tudo e todos. A maior parte desses druidas era de primeiro grau e bastante poderosos. Decidiram inicialmente escravizar os dragões, dominando-os com artes mágicas. Havia vários deles na Terra que, sob o jugo desse grupo que se passou a chamar de bruxos negros, fez tantos horrores que os dragões começaram a ser caçados pelos mundanos, em vez de venerados. Um druida, ajudado por um estrangeiro que apareceu do nada na hora mais propícia, revoltou-se e conseguiu salvar os dragões, anulando o feitiço de domínio. Esse druida estrangeiro, que era muito poderoso e jovem, conseguiu derrotar os bruxos aliados dos romanos na tentativa de destruir a assassinar a última região celta do mundo. Foi uma batalha dura que juntou uns poucos druidas, meia dúzia de guerreiros e uma população desesperada contra centenas e mais centenas de soldados romanos. Anos depois, esse druida ergueu a Cidadela como sendo o nosso reino e tornou-se o primeiro Guardião Supremo e o único com o direito de entrar no mundo dos dragões sem pedir autorização. Anos depois, entregou a capa e retirou-se.

– Mas quando foi isso? – perguntou Igor. – O senhor fala como se houvesse presenciado e participado dessa guerra.

– Lá pelo século II ou III – respondeu. – Sim, eu estava presente e lutei pela nossa liberdade. Foi uma guerra violenta.

– Nunca fui muito fã de história e agora vejo que foi um erro.

Os dois pararam de falar no exato momento em que Saci abriu o portal por onde atravessaram e entraram naquele mundo mítico. Por coincidência era noite e foram iluminados por uma lua amarelada, enorme. Estavam sobre um oceano revolto e voando a grande altitude. Dez minutos depois, depararam-se com um penhasco alto onde, no topo, havia um pequeno porém imponente castelo. À volta e atrás, vários picos imensos e cheios de cavernas circundavam-no. Saci voou direto para a torre mais alta do castelo e pousou. Os magos desceram e Ezequiel agradeceu ao amigo. O grande dragão ergueu-se no ar e rumou para uma caverna em um dos diversos picos.

– Que castelo é este e a quem pertence? – perguntou Igor, curioso. – Pelo que noto, os dragões vivem nas cavernas!

– Este é o meu castelo – explicou o mago. – Aqui está toda a sabedoria armazenada pelo homem e outras espécies que interagiram com ele em vários séculos, mais de vinte mil anos de história. Este local é um dos mais seguros do Universo, por conta dos dragões, e contém os documentos originais de tudo o que existe na biblioteca da Cidadela.

– Sinto uma barreira de pura magia em volta – comentou o jovem – e acredito que seja bem difícil abrir um portal aqui.

– Não é possível abrir – reforçou Ezequiel. – Vamos para dentro que eu estou com fome e desejo uma refeição decente.

― ☼ ―

Já era o segundo dia em que estavam no Castelo e Igor recebia lições exaustivas de esgrima e truques de combate, além de precisar de ler diversos livros que o Guardião da Sabedoria lhe passava. Ele, que já tinha um conhecimento muito extenso, ficou impressionado com a gama de novas coisas que aprendia porque Ezequiel sabia com toda a precisão o que procurar naquela sopa de livros que havia ali.

Ao entardecer desse segundo dia, Saci apareceu no castelo e chamou-o ao terraço da torre.

– Olá, meu amigo – disse Igor a título de comprimento. Olhou para o lado e viu mais dois dragões tão grandes quanto Saci.

– "Deverás vir conosco, Igor" – afirmou, lacônico como sempre. – "Sobe nas minhas costas."

O mago obedeceu e os dragões alçaram voo, em silêncio. Curioso, Igor perguntou, usando a comunicação mental pura, para surpresa dos outros gigantes alados que não estavam habituados a ver humanos transmitindo pensamentos:

– "Posso saber onde vamos, Saci?"

– "O conselho dos anciões deseja vê-lo" – explicou o dragão, na sua calma proverbial. – "Eles souberam o que aconteceu e estão demasiado preocupados."

Não disse mais nada e o jovem também não insistiu. Sabia que não corria perigo com Saci, porque sentia os seus pensamentos muito amistosos. Tranquilo, apreciou a paisagem interessante daquele continente, em que predominavam gigantescas cordilheiras e picos tão altos que em alguns o ar era rarefeito para os seres humanos, apesar da atmosfera mais densa daquele planeta. Voavam a grande altitude e Igor precisou de recorrer aos seus poderes para conseguir respirar. Ele estranhou o fato do dragão ter feito isso, porque devia saber que não poderia sobreviver ali sem os seus poderes, a menos que aquilo fosse algum tipo de teste ou pré-requisito. Pouco tempo depois, Saci mergulhou sobre um pico tão grande que se desatacava dos demais. Daquela distância era possível ver que o objetivo consistia em uma caverna cuja entrada era tão pequena que o mago desconfiou da sanidade do dragão em querer voar para ali. Ao fim de algum tempo notou que estava com uma perspectiva bem errada, porque o pico não parava de crescer junto com a entrada, que agora era maior que uma catedral de bom tamanho, o que lhe trouxe uma noção mais precisa do tamanho da montanha e da velocidade absurda em que vovavam. Ao transporem a abertura em forma de fenda, viram-se em um recinto circular gigantesco, talvez com uns setecentos metros de diâmetro – uns sete campos de futebol – e bem uns trezentos e cinquenta de altura, cujo teto abobadado possuía muitos afrescos pintados com arte demasiado abstrata para um ser humano, todo ele fosforescente em cores diversas, predominando o laranja.

– "Este é o local mais sagrado, onde há incontáveis gerações o nosso povo se reúne para tomar alguma decisão importante para o bem do todo" – explicou Saci. – "Jamais um ser vivo que não um dragão entrou nele, nem mesmo o nosso grande amigo e salvador humano, então, aproveita bem a ocasião. Desculpa o ar rarefeito, mas sei que tu podias resistir a isso. Aqui, não há outra forma de entrar."

– "Obrigado pela honra, Saci!" – Igor inclinou-se. – "Não te preocupes com o ar."

Deste que se aproximavam do local, o jovem vinha ouvindo algo que o incomodava um pouco, como se fosse um enxame a zunir baixo e sem parar. Agora que penetraram na caverna, o zumbido aumentou forma considerável, atrapalhando a sua concentração. Fascinado, viu que à volta de todo o recinto havia vários patamares dispostos a cada vinte e cinco metros de altura e dois de distância. Neles, quietos e organizados, centenas e mais centenas de dragões aguardavam. Foi nesse momento que Igor descobriu que o zunido que ouvia eram os milhares de pensamentos trocados entre eles. No exato centro geométrico do fenomenal pavilhão que era aquela caverna, havia uma torre de uns sessenta metros de altura por uns trinta de diâmetro e foi lá que Saci deixou a sua carga, voltando a levantar voo.

– "Deves aguardar no patíbulo. Em geral as reuniões são conduzidas daqui, mas o nosso ancião optou por te deixar no centro."

Igor seguiu-o com o olhar e viu que ele se deslocava para um estrado maior, como uma meia lua dos seus quarenta metros e que se sobressaia das demais plataformas, estando bem de frente para a gigantesca entrada da caverna e à metade da altitude. Saci colocou-se ao lado de um dragão enorme, bem maior que ele, mas cujo couro era acinzentado e sem brilho, ao contrário das cores lustrosas da maioria deles. O mago concluiu que deveria estar de frente para um espécime muito velho daquela civilização.

O ancião começou a "falar" e todos os zumbidos cessaram no ato. Sabendo que aquilo deveria ser primordial para si, prestou toda a atenção:

– "Irmãos e irmãs: declaro iniciado o conselho" – começou por dizer com um pensamento muito claro. – "Desta vez a reunião foi a pedido do... (ininteligível, mas Igor presumiu que se referia ao nome do Saci) que prevê um grande perigo lá fora, em especial no terceiro plano, um perigo que nos leva para uma nova reunião do conselho após mais de mil anos sem nos encontrarmos para um debate."

– "A nossa espécie é velha, muito velha, e já viu bastantes crises ao longo dos aeons. Somos as entidades que mais vivem no Universo conhecido e por isso somos muito poucos, mas é um dever saber o que se passa ao nosso redor para que uma desgraça não se abata sobre os dragões e" – fez uma pequena pausa e continuou – "(Saci) trouxe, junto com Ez, o Grande Guardião, notícias assustadoras da Cidadela, porque estão todos mortos, pelo menos na aparência."

Por uns poucos segundos, Igor ouviu o zumbido intenso, mas logo parou e o líder tornou a falar:

– "Este homem é um mago da Cidadela, o último junto com o guardião Ez e eles têm dificuldade em enfrentar a grande ameaça. Segundo o guardião, o perigo é tão grave que ele pode até destruir toda a vida no terceiro plano, começando pela Terra, mas o pior é que ele pode se deslocar entre planos e parece que só o poder dos dragões é que a pode conter, mas não destruir."

– "Pelo que sabemos, esse humano é o responsável direto pela catástrofe da Cidadela." – Um deles expeliu uma chama, identificando quem foi que se expressou. – "É certo que há atenuantes, mas..."

– "Nós temos uma dívida muito grande com a Terra e a Cidadela" – identificou-se outro, com uma chama mais intensa. – "Eu fui um dos salvos pelo Guardião e seu amigo."

– "Insisto que a dívida é muito discutível, já que foram os humanos que nos aprisionaram e escravizaram. Lembrem-se que nós vetamos a humanidade até estar evoluída o suficiente" – afirmou mais uma vez o primeiro dragão a contestar. – "O fato de nos terem liberto não deixava de ser uma obrigação deles."

– "Discordo veementemente" – disse outro dragão. – "É verdade que eles nos aprisionaram, mas foi um grupo pequeno e maldoso. Os nossos salvadores arriscaram a própria vida para nos libertarem e nunca nos pediram nada em troca. Eu, pelo menos, sinto-me em dívida com os druidas humanos."

Vários dragões jorraram fogo em apoio ao último comentário e o primeiro dragão disse:

– "Rendo-me à opinião da maioria, mas foi esse humano que soltou a entidade. Ele é que cometeu o crime."

– "Não podemos considerar um acidente e um triste acaso da natureza como um crime." – O pensamento do Saci era forte como se gritasse e muito seu conhecido, nem sendo necessário ver a chama dele para saber quem foi. – "Igor tem cem vezes mais virtudes do que falhas e considero um dever ajudá-lo em troca do que fizeram por nós. Eles sacrificaram-se por nós e agora é a nossa vez de ajudar a consertar as coisas."

– "Exato" – continuou o ancião – "e acho que está na hora de contribuirmos para pagar a dívida. Desde que nos libertaram, lá na Terra, que o nosso povo tornou-se desconfiado quanto aos humanos e até hoje apenas o Guardião Ezequiel tem o direito de se deslocar neste mundo, mas eu proponho que Igor, mago da Cidadela e qualquer outro sobrevivente que pudermos salvar, tenha acesso franqueado. Acho que está na hora de acabar com os medos e as desconfianças, já que, no passado, eramos excelentes amigos e aliados. Sou de opinião que temos de suspender o veto, pois os magos há muito que evoluíram."

– "Apoiado." – A resposta mental uníssona foi tão intensa que o mago cambaleou, levando as mãos à cabeça.

– "Nesse caso, tentaremos resgatar os magos que conseguirmos e trá-los-emos para nosso mundo onde cederemos um continente para eles."

Igor achou que era a hora de se manifestar. Para deixar claro que era ele o autor, ergueu o punho de onde jorrou uma luz forte, como um holofote.

– "Meus amigos" – começou a dizer, parando a luz. – "Agradeço de coração essa ajuda que propõem, mas eu não posso abandonar tudo. Primeiro, alguém demasiado importante para a minha vida foi aprisionada por essa ameaça e prefiro morrer a não tentar salvá-la. Depois, eu ainda tenho esperança de reverter o mal. Agradeço mais uma vez a vossa oferta e peço autorização para me deslocar por aqui porque é dificílimo combater aquilo e posso vir a precisar de um lugar para fugir de forma a me proteger ou recuperar de um revés, mas, enquanto houver uma centelha de vida em mim, eu pretendo lutar de modo a conseguir exterminar aquilo. Quero dizer, também, que a Cidadela e o Mundo de Cristal estarão sempre abertos aos dragões, nossos melhores amigos. Se eu reverter o mal, farei disso uma realidade porque as nossas fronteiras jamais foram fechadas e sempre serão bem-vindos."

Após esse curto e inflamado discurso fez-se silêncio total e depois todos os dragões lançaram chamas para o ar, provocando uma elevação considerável da temperatura e fazendo Igor erguer a sua barreira de proteção.

– "E como é que deseja levar a cabo os seus planos, jovem mago?" – perguntou o ancião.

– "Ainda não sei, mas sei que jamais poderei desistir dos meus pares" – disse Igor. Inclinou-se de leve e continuou. – "É a minha natureza ajudar quem precisa, mesmo que não seja da minha espécie, o que nem é o caso."

O dragão mais velho ficou a observar aquela criatura tão pequena e incompleta, pertencente a uma espécie de cuja vida escoava-se de forma demasiado rápida para os seus padrões e compreensão. Ele já vivera muitas centenas de milhares de anos e sabia que estava cada vez mais perto da transição, embora ainda faltassem uns bons milênios, mas aqueles seres viviam míseros cem anos, alguns deles uns poucos milhares, talvez como aquele exemplar ali presente. Em compensação, ele via a tenacidade e a determinação da espécie humana e tudo o que ela criara desde que se conheceram há cerca de dois mil e duzentos ciclos. Sim, eles eram diferentes. Sim, eles eram incompletos e cometiam muitos erros, talvez por viverem tão pouco para adquirirem a verdadeira sabedoria, mas também tinham tanta nobreza na alma quanto um dragão.

– "Assim será, jovem mago que se chama Igor. O mundo dos dragões estará sempre aberto para a sua essência e terá a nosso apoio incondicional enquanto existir, mas devo adverti-lo que em breve o senhor passará por uma grande provação e pesará nos seus ombros todo o futuro de duas espécies de seres vivos. Lembre-se disso, quando a mudança ocorrer. Mais, não poderei informar."

Houve uma nova torrente de espirros de fogo que Igor imaginou ser uma forma de aplaudir e soube que ganhara um presente inestimável. Para acompanhar o ânimo geral, ergueu a mão esquerda e um raio de energia plasmática jorrou para cima com um estrondo imenso, mas ele teve o cuidado de fazer com que não tocasse o teto e, para dar efeito, criou uma enorme esfera de energia cinquenta metros acima da sua cabeça.

Quando os ânimos se acalmaram, o ancião continuou:

– "Em breve teremos uma nova reunião para os anciões tomarem a decisão final em relação ao tipo de apoio adicional para os humanos. Obrigado pela presença de todos."

Nessa reunião, tão curta e objetiva, o mago notou como as duas espécies tinham tantas diferenças. Em pouco tempo ele tomaram uma decisão que, em qualquer país da Terra, levaria dias ou semanas a acontecer. Mesmo na Cidadela, onde os magos decidiam tudo de forma muito mais rápida, não chegavam a tão grande objetividade. No fundo, acreditava que a telepatia podia estar envolvida nesse processo acelerado. Outra grande prova das diferenças foi que assim que a reunião foi dada como encerrada, todos eles começaram a retirar-se de forma ordenada em grupos, voando para a saída. Em nenos de cinco minutos haviam apenas quatro dragões, entre eles o primeiro ancião. Saci esvoaçou até à plataforma onde Igor estava e pousou, acompanhado pelo mais idoso que encarou o jovem nos olhos.

Ele, o líder dos dragões e rei de um mundo, baixou a cabeça num cumprimento quase humano e arremeteu, despedindo-se:

– "Adeus, Mago Igor. Ainda conversaremos mais, no futuro. Tu tens a verdadeira essência de um dragão."

– "Obrigado por um elogio tão grande e nobre, senhor."

Saci virou-se para ele:

– "Sobe, que te vou levar para o castelo."

– "Se quiseres ir com teus pares, Saci, posso transportar-me direto para lá sem dificuldades."

– "Não serás capaz, por causa da barreira mágica."

– "Essa barreira não me segurará, Saci. Nunca saí de lá porque não desejava contrariar as vossas leis, mas posso inclusive abrir um portal direto para o castelo."

– "Nesse caso, ficarei com os meus. Ver-nos-emos em breve."

– Obrigado por tudo, Saci – disse, em voz alta.

Igor desapareceu dali para voltar a aparecer bem nos calcanhares do Ezequiel que deu um berro de susto, saltando e colidindo com a parede. Quando o viu, perguntou:

– Onde você estava? – arregalou os olhos ao dar-se conta de que ele usara seus poderes sem impedimentos. – Como conseguiu usar seus dons aqui?

– Saci veio chamar-me para o acompanhar a participar da assembleia deles – explicou, contando tudo e terminando por dizer, debochado. – A barreira deste castelo nunca foi impedimento para mim. É apenas difícil.

– Que diabo, ainda bem que você está do nosso lado. Vamos treinar. – Ezequiel passou ao plano prático, fazendo sinal para que o seguisse ao pátio. – Já conseguiu acertar a proteção mutante?

– É difícil – confessou Igor – mas acho que consegui resultados positivos entrelaçando diversos feixes de partículas diferentes. Ando pensando em usar gravitons rotacionais junto...

– Vamos ver, defenda-se – interrompeu Ezequiel que atacou com o bordão sem lhe dar tempo de se proteger. Entretanto, Igor já conhecia o amigo bem o suficiente para não ser surpreendido e desviou-se da primeira investida com um giro de cintura enquanto ativava a sua barreira pessoal. Contudo, o guardião era insistente nos ataques, disparando vários tipos de coisas umas atrás das outras em verdadeiras rajadas energéticas e de objetos diversos, sem sucesso. A seguir e de surpresa, empunhou a espada e desferiu as investidas mais fortes que conseguia, ainda em vão.

Quando ficou cansado, disse:

– Chega. Está muito bom, muito bom mesmo. – Deu uma risada traiçoeira que Igor não chegou a captar. – Mas eu quero é ver uma coisinha, pois talvez você não possa resistir a isto.

Mal terminou, bateu palmas, murmurando algo na língua anciã. Um trovão enorme, seguido de um furacão de poder respeitável atingiram o jovem em cheio. Surpreendido, Igor foi atirado e jogado para tudo quanto era lado, como se estivesse no meio de uma tormenta violenta, até que rolou atordoado por toda a extensão do pátio.

Ele ficou muito zangado quando o velho mago começou a rir a bandeiras despregadas. Gargalhava sem parar e, cada vez que olhava para o aluno, ria mais ainda, tanto que chegou a se dobrar sobre si mesmo, segurando o estômago que doía do esforço.

Apesar de muito zonzo, Igor decidiu dar-lhe o troco e estendeu a mão na sua direção, torcendo o pulso. O bordão, que estava na mão esquerda do mago, virou-se para trás e deu-lhe uma vergastada mediana no traseiro, fazendo com que Ezequiel perdesse o equilíbrio e começasse a correr para tentar recuperar-se, acabando estatelado perto do amigo e com o cajado deslocando-se no ar na sua direção como se lhe fosse bater mais. Furioso, tentou segurá-lo, mas só conseguiu quando Igor desandou a rir da cara dele e o bordão voltou a ser apenas isso, um pedaço de pau.

Não resistindo, voltou a rir e os dois ficaram sentados bem cinco minutos. Quando pararam, Ezequiel disse, levantando-se:

– O ar ainda é seu ponto fraco na barreira. Ele pode penetrá-la e não sai. Aprenda a controlar isso e será indestrutível.

– Indestrutível pode até ser – arrematou Igor, com uma pequena careta. – Mas também serei um cadáver indestrutível, morto por sufocamento.

– Aprenda a contornar os problemas e dificuldades. Isso, são apenas detalhes insignificantes.

― ☼ ―

Igor acordou muito angustiado. Ergueu-se e olhou pela janela do seu quarto em uma das torres do castelo do Ezequiel. O sol vermelho nascia naquele momento e em uma hora despontaria o seu irmão amarelo, porque o mundo dos dragões situava-se em uma estrela dupla e tinha três luas, o que provocava efeitos incríveis com as sombras e as paisagens, que mudavam de aparência e cor com o passar das horas.

Lavou o rosto e trocou de roupa, subindo até ao topo e encostando-se à mureta de pedra. A paisagem que tinha ali era deslumbrante, com as cordilheiras a se iluminarem tingidas de vermelho, mas nem assim aquela agonia passava e ele sabia muito bem do que se tratava, até bem demais, para sua infelicidade.

Quando sentiu a presença do Ezequiel, já ele estava ao seu lado, olhando para o mar. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo e a única coisa que se ouvia ali era o barulho do suave vento fraco, quase uma brisa que soprava do mar, mas que estava um pouco gelado. O guardião foi o primeiro a falar:

– Bem, meu filho, embora eu tenha uma forte ideia do que se trata, gostaria de saber o que o incomoda tanto.

– Estamos aqui há seis longos meses, Ezequiel. – Virou o rosto para o encarar nos olhos. – seis longos e intermináveis meses e eu não sei como ela está nem o que ele pode estar a fazer por lá. Tenho medo do que venha a encontrar quando sair daqui.

– Deixe-me dizer uma coisa para acalmar o seu espírito, Igor, embora isso não seja regra. É muito raro para nós magos separmos. Quando amamos, esse amor é para durar uma vida e é por isso que você está tão agoniado. Mesmo depois que a nossa cara metade se vai, é incomum um de nós voltar a casar, exceto quando a essência dela volta em outro corpo ou após muio, muito tempo mesmo. Por outro lado, é notório que os magos, em geral, só amam seus pares, tirando raríssimas exceções. Logo, ela deve ser uma feiticeira adormecida e, como feiticeira que é, também sente esse amor intenso e único. Por isso, filho, ela jamais deixará de o amar.

– Mas ela está sob domínio daquele monstro...

– É muito provável que esse domínio vá enfraquecendo aos poucos e sua Eduarda deve libertar-se em breve.

– E o que ele fará depois disso? – questionou Igor, ainda mais preocupado. – Temo que a mate. Eu devo estar lá, quando ela se libertar. Aquele demônio preto já matou todos os que eu mais amava!

– Não me parece que a mate – afirmou Ezequiel, pensativo porém cauteloso. – Até porque ela é uma arma para ser usada contra você, mas, de fato, isso pode ser preocupante.

Igor virou-se de costas para a mureta, encarando Ezequiel. O vento tinha amainado e agora só se ouvia o som fraco das ondas batendo na rocha, duzentos metros abaixo deles. Sentindo o cheiro do iodo na atmosfera, tão intenso quanto nos mares da Terra, suspirou forte e continuou:

– Por que não me contou que foi o senhor que liderou a luta naquela guerra contra os bruxos e fundou a Cidadela? Suponho que é por isso que sabe tanto sobre batalhas, muito mais do que eu que fui treinado como Guardião da Segurança aos seis anos.

– Mestre ou aluno, que diferença faz, filho? – Ezequiel sorriu, misterioso. – Não foi você que me disse isso? Eu tive uma ótima ajuda naquela época e tenho sérias dúvidas se teria sido vitorioso sem ela, mas sim, aprendi muito sobre combates, em especial até ao século XVIII.

Igor nada mais disse, ficando calado a pensar. Ao fim de quase dois minutos, rompeu o silêncio, dizendo:

– Já decidi; eu vou atrás dela.

– Você não está pronto, Igor – retrucou, preocupado. – Melhorou muito, mas está longe de poder derrotar aquela criatura...

– Não me interessa. – Enquanto falava, suas roupas mudavam para o conjunto branco com a capa pendendo nos ombros. – Preciso de a encontrar e já esperei demais. O senhor fique aqui e aguarde, que talvez precise de ajuda. Voltarei quando puder. Até breve e obrigado por tudo.

Igor começou a flutuar, envolto na sua barreira pessoal e acenou para o amigo, sorrindo.

– Você manda e eu obedeço, meu filho, mas ao menos tome um café – tentou Ezequiel sorrindo, mas o mago flutuava cada vez mais alto. Saci aproximou-se e pousou ao lado do velho. Ambos viram-no abrir um portal e desaparecer, fechando-o logo a seguir.

– "O que aconteceu?" – perguntou.

O mago olhou para o amigo de longa data e disse:

– A voz do coração não perdoa os jovens, meu caro. Ele foi atrás dela e tentar conter a sombra, mas temo que aconteça o pior.

– "Jamais surgiu um mago tão forte como ele, Ez. Basta ver que nem mesmo nós os dragões conseguimos abrir um portal neste penhasco e ele nem precisa de se esforçar, só que lhe falta um pouco da maturidade centenária dos magos. Nós tínhamos algo para ele, mas agora terá de esperar. Contudo, ainda nos veremos muitas mais vezes, antes e depois. Além disso, bem sabes o que vem agora e que o silêncio era imperativo. Paradoxos do tempo são demasiado perigosos."

– Sim, falta-lhe uma certa experiência, mas sobram muitos outros predicados. Não é por acaso que é um eleito e vocês jamais o levariam ao conselho. Fizeram isso porque se lembraram muito bem do passado.

– "Isso é um fato... e mais um paradoxo."

– Bem – Ezequiel encolheu os ombros. – Agora já sabemos o que vai acontecer, pelo menos em parte. Pela Deusa, espero que dê tudo certo.

― ☼ ―

Obi Wan Quenobi, personagem do filme Star Wars, um cavaleiro jedi.

Graviton – De acordo com a Teoria Quântica dos Campos, o graviton é uma hipotética partícula subatômica, sem massa, que seria responsável pelos efeitos da gravitação. N.A.

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