Capítulo 4

"Humanamente não existe um ser que seja feliz sem que o outro também seja."

René Descartes.


O lugar tinha uma beleza estonteante. A praia virgem parecia ser uma ilha do pacífico, ou até mais bela, onde o mar, com ondas pequenas e a água tépida era um convite a um mergulho. O sol avermelhado já estava perto do horizonte, mas nenhum dos que se divertiam naquele lugar idílico pensava em se retirar, uma vez que a temperatura era de perfeitos vinte e quatro graus. Na água, Igor divertia-se em uma guerra de magos, iniciada pelos pais. Juntos, criaram uma parede de água que atingiu o filho em cheio e fê-lo cair. Rindo, o jovem levantou-se e fez uma cara de sério, berrando:

– Vocês atrevem-se a desafiar Neptuno, o Deus dos mares, míseros mortais. – Ergueu a mão, que começou a brilhar, enquanto os pais criaram uma forte barreira de proteção. – Sintam agora o poder da minha ira.

As últimas palavras foram proferidas com auxílio dos seus dons, motivo pelo qual mais soaram como mensagens do apocalipse, ao mesmo tempo que o mago parecia tornar-se um gigante e levantava uma cortina de água. Ainda a rir, os pais aumentaram a intensidade das barreiras de proteção, mas a água começou a girar muito rápido, enquanto se expandia na sua direção. Em poucos segundos ambos foram engolfados pelo remoinho aéreo e jogados no seu centro, flutuando no ar enquanto a água girava ao redor e respingava no casal que, não aguentando mais, pediu misericórdia e declarou o filho vencedor.

Igor estendeu a mão e a água coreu para a sua direção, envolvendo-o da cintura para baixo e erguendo o jovem, que se virou para o lado e disse:

– Então, sweet Caroline, desligas essa câmera e vens para aqui ou preciso te pegar?

E imagem tremeu com as risadas da operadora e, subitamente, a tela ficou escura.

Cheio de lágrimas o jovem mago desligou o equipamento de vídeo e saiu do escritório, pensando naquela semana de final de férias em que ele a sua amiga de infância e os pais passaram em um mundo idílico, o planeta preferido da sua doce Caroline cujo fim foi o mesmo dos pais.

Igor olhou as horas e decidiu fazer alguma coisa da vida porque, essa semana de pura depressão não poderia continuar. A primeira providência que tomou foi dar parte à polícia, alegando que os pais desapareceram sem deixar rastros.

Interrogado pelos investigadores, disse que tinha voltado da Europa e eles não o pegaram no aeroporto nem os encontrou em casa. Um mês depois, tornou-se o principal alvo das investigações dos policiais que passaram a suspeitar que o filho estivesse de olho na fortuna da família. Apesar de todas as suspeitas, nada encontraram e tiverem de se dar por vencidos ao fim de mais outro mês, encerrando o caso sem solução.

Igor também sentiu necessidade de fazer algo útil para não sucumbir à depressão e, apesar de não precisar, foi procurar um emprego. Elaborou o curriculum recorrendo aos seus poderes de forma a materializar um já pronto e foi à procura de uma ocupação. Pelos seus conhecimentos não teria dificuldade em arrumar trabalho e, por isso, optou por escolher as empresas mais conceituadas no ramo da engenharia elétrica, dando preferência às que desenvolviam pesquisas, que era a sua paixão.

Já na primeira tentativa, um grupo de engenharia muito conceituado que lhe agradou bastante, viu que as coisas não seriam tão simples. Com sorte, arranjou uma entrevista no mesmo ato porque procuravam um especialista.

Sentado na nada confortável cadeira ao estilo universitário em uma pequena sala onde respondeu um questionário extenso, aguardava que o entrevistador aparecesse quando se deparou com um homem que entrou e passou a observá-lo, compenetrado.

Tratava-se de um sujeito dos seus quarenta anos, jovial e muito simpático que tinha um sorriso franco que agradou o jovem. Em silêncio, ele leu o questionário e, após, ergueu o rosto, expressando um certo espanto.

– Igor Montenegro, é? – Mais afirmou do que perguntou. – Sou Levi Vargas, presidente desta empresa e estou deveras fascinado com as suas respostas, filho. Quando o supervisor viu o questionário impressionou-se de tal forma que me chamou, uma vez que, em geral, não trato das contratações. Eu tenho engenheiros com trinta anos de carreira que seriam incapazes de responder tudo isto com exatidão, eu jovem. Onde e quando aprendeu, para ter tanto conhecimento assim?

Nesse momento, o jovem mago viu o erro que cometeu. Ele tinha apenas pouco mais de dezenove anos e jamais poderia ser um engenheiro formado, muito menos um com tamanho conhecimento. Não havia como dar uma explicação plausível que o convencesse, mas era o que precisava de tentar, até porque tinha interesse naquela empresa.

– Bem, senhor Vargas...

– Pode chamar-me de Levi – interrompeu.

– Bem, Levi – continuou com um pequeno sorriso e procurando mentir o menos possível. – Eu sempre fui um grande apaixonado por física desde criança e, como meu pai era cientista, tive acesso a uma grande quantidade de informações.

– Você disse "era"?

– Infelizmente, Levi, os meus pais desapareceram há dois meses e já foram dados como mortos.

– Sinto muito, filho – disse, sem jeito.

– Eu também, senhor, mas nada pode ser feito. – Igor sorriu, mas o interlocutor viu a tristeza que ele emanava. – Bem, resumindo é isso: tive muito acesso e bons professores. Passei os últimos dois anos estudando no exterior, em Londres, e agora vou tentar uma transferência para a federal, uma vez que cheguei a iniciar o curso de engenharia em Oxford.

Ele achou que deu uma explicação convincente, já que esteve muitas vezes em Londres com a grande amiga de Caroline, que era de lá, e o pai foi de fato um físico com algum renome, inclusive internacional, caso fossem investigar.

– Isso é excelente, filho – disse Levi, confirmando sua suposição. – Imagino que esteja precisando do emprego, mas não lhe posso dar o cargo de engenheiro sem um diploma, apesar do seu conhecimento fabuloso. Que tal você começar como estagiário e à medida que avança na universidade, vamos promovendo para cargos mais decentes?

– Acho ótimo. – Igor sorriu porque gostou do lugar e não ligava mesmo para o dinheiro. O que lhe importava era uma forma de ocupar o tempo para não pensar a toda hora nos pais. Fazer uma faculdade também não seria má ideia. – Tenho a certeza de que não se arrependerá.

– Estou certo disso, filho. – Levi levantou-se e estendeu a mão. O aperto do rapaz era firme e ele gostou disso. – Você começa no dia primeiro. Traga os horários da faculdade para podermos fazer as dispensas das aulas assim que começar os estudos.

– Assim farei – respondeu. Levantou-se e, após despedir-se, retirou-se.

Igor saiu satisfeito, sem notar que era observado por uma garota que estava sentada em um sofá na sala de espera, lendo. Ela acompanhou-o com o olhar e ficou tão interessada que pousou o livro e apenas prestou atenção nele até que Levi apareceu. Levantou-se e abraçou o pai.

– Oi, pai – disse, voltando o olhar para a saída. – Quem é aquele gato lindo de morrer?

– Olá, filha. – O pai riu. – Aquele gato, como tu dizes, talvez venha a ser uma das melhores aquisições da história da Vargas Engenharia, mas por hora vai começar como estagiário porque está no início da universidade. E tu, estás pronta para o primeiro semestre?

– Claro! – Ela riu. – Bah, pai, tomara que ele vire meu colega.

– Acho melhor pensares mais nos estudos, filha. As aulas começam já no mês que vem. Vamos para casa?

No caminho, foram em silêncio por algum tempo, até que Levi interrompeu:

– Vais mesmo querer estagiar lá? – Encolheu os ombros. – Eu acho que o ideal seria apenas estudar, pelo menos no primeiro ano.

– Claro que quero. – Ela riu. – Se aquele gato lindo de morrer pode, por que motivo eu não poderia?

– Aquele jovem perdeu os pais há pouco tempo e deve estar precisando de trabalhar para se sustentar, enquanto tu não.

– Bah, coitado dele. – Ficou compadecida, pensando. Não chegou a vê-lo direito, mas achou-o bem do seu agrado.

― ☼ ―

Igor começou a trabalhar, atirando-se a isso de corpo e alma. Por ser sério, educado e esforçado, caiu logo nas boas graças dos superiores. Foi colocado a trabalhar nos laboratórios de pesquisa, coisa que lhe agradou muito. O trabalho de um estagiário não era nada de especial e precisava de fazer um pouco de tudo, em especial aquilo que os outros não queriam ou não gostavam. Assim, era colocado a arrumar pilhas de anotações e documentos, redigir relatórios técnicos, limpar amostras e também como moço de recados ou entregas. Nunca se queixou de nada e fazia sempre tudo o que lhe pediam com esmero e boa vontade. Em pouco tempo passou a ser muito apreciado por todos os colegas. Como ele imaginou, a atividade ajudou a amenizar a dor pela perda.

Certa vez, quando estava no laboratório principal do seu setor, deparou-se com dois engenheiros, os dois principais chefes do departamento e que mantinham uma acirrada discussão sobre determinada solução matemática para um circuito experimental. Uma vez que estava sentado ao lado organizando alguns arquivos no computador, via e ouvia tudo, muito divertido. Aquele era um problema cuja resposta ele conhecia há alguns anos e, vendo que o impasse dos dois cientistas não teria qualquer resultado, não se aguentou quieto e disse:

– Os senhores me perdoem, mas estão ambos errados, muito errados – levantou-se e aproximou-se deles, estendendo a mão para que lhe dessem o marcador. Os engenheiros pararam de falar e olharam para ele com a cara mais espantada deste mundo. Foram de tal forma surpreendidos que um deles entregou a caneta para Igor, que se dirigiu ao quadro branco. Muito tranquilo, apagou tudo e, antes que eles começassem a berrar desesperados, recomeçou a escrever as novas equações, enquanto explicava. Ao terminar, virou-se para o par e disse de forma professoral, apontando para atrás de si:

– Entenderam? – sorriu, gentil. – A solução que escolheram para aquela diferencial era inadequada.

Devolveu a caneta e voltou para o computador enquanto os dois, de olhos esbugalhados, olhavam ora para o quadro ora para Igor.

– Ele tem razão – disseram ao mesmo tempo. Um deles continuou. – Onde você aprendeu isso, filho?

– Meu pai era cientista. Convivo com essas equações desde criancinha porque gosto de matemática e ele me ensinava – respondeu. Levantando-se, continuou. – Desculpem, mas preciso entregar isto para o Levi. Com licença.

O jovem saiu da sala carregando uma pasta de documentos e relatórios, pensando que aquilo era, de certa forma, tempo perdido, já que poderiam recorrer ao computador para armazenar as informações. Na metade do caminho, parou em um bebedor e tomou um gole de água e, quando ergueu a cabeça, deparou-se com a garota dos seus sonhos no fim do corredor. Era quase tão alta quanto ele com cabelos castanho-claros e um olhar de anjo. Cada vez que a via, sentia o coração acelerar e ficava louco para falar com ela, mas a moça era de outro setor além de ele ser tímido. Agora que ela estava a menos de vinte metros dele, pensou em criar coragem e, devagar, avançou pelo corredor. Ela ergueu o olhar e ambos se encararam por poucos segundos, dando mais coragem ao jovem para avançar.

Estava tão compenetrado e determinado que chegou a sentir um susto quando uma pessoa interpôs-se à sua frente, segurando o seu braço.

– Oi, Igor, tudo bem? – Após o choque, ele olhou com desagrado para a colega, também uma linda mulher. – Tu ficou de confirmar se poderíamos sair esta noite, lembras?

– Desculpe, Anita – respondeu ele, procurando a outra garota com os olhos. – Infelizmente tenho um compromisso...

– Tens uma namorada, Igor? – perguntou chateada. – Nem me diz uma coisa dessas...

– Não, não tenho – respondeu, perdendo a oportunidade de se livrar dela. – Nem sempre um compromisso envolve uma namorada.

– Mas então – disse ela, aproximando-se mais e encostando-se a ele, provocante –, não vejo nada de mal em...

– Desculpa, Anita, mas não posso, ok – disse, interrompendo um pouco brusco. – Agora preciso de levar estes relatórios para o Levi.

Desviou dela e seguiu pelo corredor, tentando localizar a outra colega, mas ela já devia ter ido para o seu departamento porque não teve jeito de a encontrar. Frustrado e maldizendo a colega em silêncio, deu meia volta e seguiu para a sala do presidente.

― ☼ ―

Era início do semestre na UFRGS e, como sempre, os veteranos aguardavam os calouros para as costumeiras brincadeiras de péssimo gosto, que variavam muito de faculdade para faculdade.

Os mais brincalhões, em geral, eram os da medicina e os menos da física, cujas pegadinhas eram muito raras. No meio disso, havia uma gama de todos os tipos de brincadeiras, mas algumas delas eram estúpidas ou perigosas e outras beiravam o assédio sexual e estupro. Não foram uma nem duas as vezes que certas brincadeiras acabaram em desastres e às vezes até morte, contudo, os novatos nunca se davam conta desses detalhes, talvez por estarem envolvidos com todas aquelas novidades.

Igor ingressou na Faculdade de Engenharia Elétrica no mês de fevereiro de 2016, poucos tempo depois do pretenso desaparecimento misterioso dos pais. Logo no primeiro dia, sentiu um baque ao se deparar com a garota mais bela em quem já pôs os olhos e sua colega de trabalho, ainda por cima sentada ao lado. Quando os olhares de ambos se encontraram, ela sorriu e Igor correspondeu, meio sem jeito. Logo no início da aula, um representante do diretório acadêmico dos estudantes convidou os calouros para uma festa em sua homenagem, argumentando que era importante para o entrosamento entre todos.

A festa fora marcada no Diretório Acadêmico e compareceram bastantes alunos. Apesar de aprontarem algumas brincadeiras com os calouros, não faziam nada demais e a atmosfera era animada e pacífica. Os móveis tinham sido retirados e a sala era grande o bastante para caberem todos com folga. Ao lado da entrada, foi improvisado um balcão onde ficavam as bebidas.

Igor, sempre tímido e meio deslocado, aproveitava para observar Eduarda, a caloura por quem estava apaixonado, lembrando-se da tentativa frustrada de aproximação uma semana antes e concluindo que seria uma excelente oportunidade de tentar mais uma vez. Ela devia ter os seus dezoito anos, perto de um metro e setenta e cinco, talvez pouco mais, olhos verdes, intensos, e cabelos castanho-claros, ondulados, além de um corpo escultural. Por conta disso, estava cercada de rapazes que conversavam, a maioria absoluta de veteranos, e respondia-lhes de forma cortês, sorrindo e bebendo com moderação. Sem jeito, Igor manteve-se um pouco afastado, encostado ao balcão e aguardando o momento oportuno.

Vendo que a observava, um colega aproximou-se.

– Essa gata é muito gostosa, cara – disse baixinho a título de cumprimento e estendendo um copo de algo que Igor imaginou ser qualquer coisa menos saudável. – Vou adorar comer a mina e vai ser hoje. Essa aí vai passar na vara de todo mundo, mas só dos veteranos. Com vocês, vai ter que ser outro dia.

– Não bebo – comentou Igor, recusando o copo –, e acho que pra fazer isso vocês teriam de conseguir o consentimento dela, senão é estupro.

– Mas bah, aqui tem que beber, tchê – insistiu o outro, erguendo a voz –, e se tu falar prá guria, vai ter. Vamos, toma o copo e bebe.

Igor sentia-se encurralado. Sabia que nem precisava muito dos seus poderes para invocar uma força sobre-humana capaz até de matar o mais forte dos homens porque já era muito forte por natureza. Por outro lado, se fizesse isso estaria a entrar na faculdade com o pé esquerdo e ainda arrumando muitos inimigos. Além do mais, para piorar as coisas, sentia uma necessidade desesperada de salvar a garota por quem caíra de amores. A conclusão lógica era que necessitava de ganhar tempo para não precisar de recorrer à violência. Desse modo, perguntou:

– Como eu vou saber se esse treco aí – apontou a bebida –, não está batizado com alguma química?

– Olhando não vai – confirmou o outro, debochado –, mas tu pode tê certeza de que está com um jererê bagual para ajudar vocês a desinibir. Menos o das guria, claro, porque o delas tá um pecado, pode crê. – Terminou com uma risada muito maldosa.

Agora Igor já sabia o que eles pretendiam e sentia-se furioso com a baixaria que planejavam, uma verdadeira orgia com as meninas. Voltou a olhar para Eduarda, todo derretido, e tomou a decisão de lhes dar o maior susto da vida deles, agradecendo a Ezequiel por lhe ter ensinado um ou dois truques que ele não conhecia.

– Então, tchê – disse o colega, interrompendo-o. – Estou esperando. Vai beber ou vamos ter que forçar?

– Eu não posso beber – respondeu Igor, pondo o seu plano em prática e fazendo cara de nervoso. – Eu passo mal e a bebida me transforma num monstro assustador.

O jovem mago deu um passo atrás, fazendo cara de medo. Preocupado, notou que algumas meninas se tornavam eufóricas em excesso enquanto outras pareciam ter a vista fora de foco e sacudiam a cabeça tentando forçar a visão turva a se desanuviar. O diretório acadêmico ficava ao lado de um bar, o Centro de Vivência. Da sua porta, bastaria atravessar o corredor, aberto de um lado, descer as escadas para o RU e entrar à esquerda na casa arredondada e quase toda feita de vidro. Aquela região do Campus do Vale era um enorme gramado em declive que terminava em um pequeno riacho, já fazendo divisa com o município de Viamão. Igor calculou que seria ali que iriam pôr em ação os seus planos nefastos porque, de noite, aquele lugar era um breu.

O colega avançou e o jovem fez menção de fugir. Jaime, Igor veio a saber o nome depois, gritou:

– Gurizada. Olha aí o cara não quer bebê e tá sabendo do enrosco. Ele vai cagoetá. Pega o mala.

Aqueles que estavam junto à Eduarda eram os mais próximos e cercaram-no de imediato, enquanto Igor fingia procurar escapar. Já a moça, tentava olhar para eles, forçando a visão e dizendo:

– Mas bah, deixem ele em paz. – A sua voz tornou-se pastosa e pesada, provocando surpresa na garota. – Vocês drogaram-me!

Cambaleou e agarrou-se à parede, cada vez mais confusa. Igor tropeçou pelo corredor de saída do diretório e agarraram-no, imobilizando o jovem. Um deles aproximou-se e apertou o nariz do rapaz, enquanto outro trazia um copo com um líquido azul dentro e dizia:

– Este é tri forte. Vamo nessa.

Com o nariz tapado e a cabeça erguida à força, não lhe restou alternativa a não ser ingerir a bebida, que era fortíssima e lhe queimava a garganta, provocando muita tosse. Rindo, os rapazes terminaram e soltaram-no. Igor deixou-se cair de quatro, tossindo sem parar, e um deles disse, gozador:

– Deixa ele pro Valdinho faturar, né, Valdinho? – apontou para um colega quieto, no fundo da sala. – Assim tu arruma um namoradinho.

– Vocês vão ver: Deus castiga – respondeu Valdo, irritado e pensando em ir embora. Na verdade, ele nem sabia o motivo de ter vindo, pois sempre era maltratado pelos colegas que debochavam da sua condição homossexual. No fundo, sentia carência de mais entrosamento com os colegas e falta de amigos, acabando por cometer o erro de ir às festas onde acabava discriminado, embora a maioria das garotas não fosse assim.

Para Igor, o plano ia sair melhor que a conta porque aquele pequeno corredor de saída impedia a visão direta pelos outros. Ninguém mais prestou atenção no jovem mago, mas muitos prestavam em diversas meninas, planejando levá-las para o gramado e começar a festa. O primeiro som emitido por ele, ninguém ouviu por causa da música, mas o segundo ronco foi tão alto que chamou a atenção de todos, até dos dopados.

Igor neutralizara as toxinas da bebida sem dificuldade, mas debatia-se no chão e roncava ou rosnava de forma macabra, às vezes fingindo que sufocava, agarrando o rosto e pescoço. Desejando evocar algo muito assustador, ele lembrou-se de um filme um tanto antigo do Franquenstein e achou a ideia excelente. Os seis garotos que o atacaram foram os primeiros a ver, uma vez que estavam perto da entrada, e não acreditaram nos seus olhos quando se depararam com aquilo. Primeiro os braços do Igor começaram a inflar e ele gritava com uma voz muito grave, depois foi a vez do resto do corpo inchar e o jovem cresceu a olhos vistos, só que com o rosto oculto. De repente, parou de se debater e de gritar ou rosnar, ficando quieto.

Um dos rapazes olhou para aquilo e depois para o copo de cerveja que tinha na mão, boquiaberto. Voltou a olhar para a frente no exato momento em que viu o calouro mostrar a face, mas não havia mais nada do bicho de olhar sonhador e corpo esguio. Ali, estava um verdadeiro monstro, que se ergueu ameaçador. O pé-direito do diretório acadêmico tinha pouco mais três metros de altura e a abominação quase alcançava o teto, devendo ter bem uns dois metros e setenta. A cabeça era quase quadrada, do tamanho de um balde de água dos grandes e as orelhas pareciam enormes e peludas. Os olhos, injetados de sangue, lembravam duas bolas de pingue-pongue imersas em sangue e prestes a expelirem lava, demonstrando muita insatisfação. Os braços dele pareciam mais com torres de músculos maciços, maiores que o seu tórax. Nas mãos fortes e cheias de calos, o estudante o agrediu em primeiro lugar tinha a certeza de que caberia a sua cabeça com folga. O monstro abriu a bocarra, dando para ver imensos dentes amarelos com os caninos superdesenvolvidos e babando um pouco, tal como um louco assassino poderia fazer. Por último, aquilo deu um urro aterrorizador. Era tão grande que quase ocupava os dois metros de largura do corredor. Com ambas as mãos, deu um soco nas paredes, cujo reboco caiu no ato e o piso estremeceu, aparecendo rachaduras por todos os lados. O jovem voltou a olhar para o copo e gritou, assustado:

– Por acaso vocês trocaram os copos? – largou o dele no ar e virou-se, correndo para a janela, o único ponto de fuga possível no momento. – Corre que isso é assombração e pode ser de verdade.

Sem pensar, atirou-se sobre o vidro que se estilhaçou pelo chão, saindo do outro lado aos tropeções, desesperado. Ninguém se fez de rogado quando o monstro apareceu no campo de visão dos outros e gritando, nem mesmo as garotas drogadas. A criatura deu mais um passo e a sala inteira tremeu, apavorando todos. Como barrava o único caminho que levava para a saída da sala, os estudantes começaram a gritar e a correr de um lado para o outro, baratinados e sem saberem o que fazer, até que acabaram seguindo o primeiro colega que saiu pela janela. Mais vidros quebraram e muitos cortaram-se, mas ninguém ligava para isso. Em menos de dois minutos, ficaram apenas quatro meninas, três delas desmaiadas de susto. Ao virar o rosto para o lado, o monstro deu de cara com o tal Valdinho, que estava paralisado de medo e de olhos fixos e arregalados, tentando entender como aquilo era possível porque a sua razão dizia que tal coisa não existia. A fera gigantesca fez sinal para que ele se aproximasse.

Igor ficou com pena por ver o colega morrendo de medo, mas precisava de manter as aparências e Valdo tremia tanto que até se ouvia. Fez novo gesto para que se aproximasse, desta vez imperioso, reforçando a ordem com um resmungo que parecia um trovão. Valdo olhou para a janela, mas a rota de fuga estava impedida por Igor em ambos os lados. Por isso, aproximou-se da criatura, tremendo ainda mais e tão pálido que o mago teve vontade de rir e revelar-se. Em vez disso, apontou as garotas desmaiadas e da sua garganta brotou uma simples palavra, grave, rouca, assustadora e difícil de entender:

– Ajuda as gurias. – Voltou-lhe as costas, liberando o caminho da saída e aproximou-se da Eduarda, que estava consciente, mas apavorada e também paralisada de susto, incapaz até de falar.

A garota olhava a aberração aproximar-se e, apesar de estar dopada, o seu coração disparou. Quando a criatura enorme abaixou-se e tocou em si, sentindo aquelas mãos quentes e rijas tocarem no seu corpo, toda a sua coragem abandonou-a de uma vez e ela perdeu os sentidos, coisa que vinha a calhar para Igor que saiu da sala com a menina, caminhando apressado para se afastar dali. Quando estava longe o suficiente para não ser flagrado, retornou à sua forma normal e ficou olhando a moça por uns segundos, apaixonado.

Sentindo-se carregada, ela chegou a recuperar uma consciência parcial e abrir os olhos meio desfocados para o rosto do colega. Pôs os braços em volta do seu pescoço e encostou a cabeça no ombro dele, como se o seu salvador fosse Orfeu em pessoa. Por questões de segurança, Igor foi mais para dentro do Campus em vez de seguir para a rua.

Usando os seus dons, manteve a garota no ar e pegou no bolso dela a carteira com os documentos, encontrando um cartão com o endereço para o caso de extravio. Usando a mão em concha, projetou uma luz fraca, apenas com a força necessária para conseguir ler e obter as informações desejadas. Voltou a segurá-la a levou-a para casa pelo método mais rápido: desapareceu de onde estava para reaparecer à frente do imóvel. Repetiu o processo e transportou-se para o lado de dentro, notando que a casa estava sem ninguém. Descobriu sem dificuldade o quarto da garota e deitou-a na cama, indo procurar alguma coisa para ela beber quando voltasse a si. Pegou uma cadeira, que estava junto à sua escrivaninha, e colocou-a ao lado da cama, sentando e cuidando dela com toda atenção.

Tomou uma das mãos da moça e, antes de começar o tratamento, beijou-a com delicadeza, vendo a perfeição da sua forma. Depois, procurou concentrar-se. A mão dela começou a emitir um leve brilho com uma luminosidade azul-celeste que pulsava devagar, subindo pelo braço e espalhando-se de forma suave e constante pelo resto do corpo. Em poucos segundos, toda a garota brilhava e pulsava com cada vez mais força. Temendo que ela acordasse e o visse, Igor olhou para a lâmpada do quarto, focando seus pensamentos por poucos segundos e deixando o aposento tão escuro que ela não conseguiria vê-lo ao voltar a si.

Quando acabou, não havia mais qualquer traço da droga e, pouco depois, Eduarda acordou, ainda desorientada.

Sentindo uma mão a segurar a sua, ergueu-se assustada, dando um pequeno grito involuntário.

– Quem está aí? – perguntou trêmula. – Por que está tão escuro? Quem é você? E aquele monstro horroroso!

Com o corpo tremendo, tentou levantar-se para fugir, mas ouviu uma voz suave e sentiu uma leve pressão nos ombros:

– Acalma-te, guria – disse Igor, usando a voz suave. – Tu estás na tua casa, no teu quarto e ninguém te fez nem fará mal. Eu mesmo te trouxe aqui, porque eles drogaram as meninas e queriam abusar delas. O efeito da droga já passou. Eu eliminei e juro que não fiz nada de mal para ti.

– Mas aquele monstro horroroso? – questionou, incrédula. – E aquele guri que eles atacaram, coitado dele, tão bonitinho...

– Devia ser da droga. – Igor sorriu, feliz. – Eu preciso saber se vais ficar bem. Teus pais não estão em casa e fiquei muito preocupado.

– Meus pais viajaram e só voltam na segunda – respondeu ela, sentindo-se bem mais tranquila. – Por que não acendes a luz? Tens medo que eu veja teu rosto?

– Mais ou menos. – Igor sorriu. – Talvez eu seja muito feio.

― ☼ ―

As ruas do bairro Agronomia, em Porto Alegre, não são um local lá muito seguro para se passear a pé de noite, mas um bando de jovens corria aos gritos até que uma viatura da brigada militar passou e parou ao lado deles, que cercaram o carro implorando socorro, todos falando ao mesmo tempo. Um dos PMs desceu e aproximou-se deles, observando-os.

Notou que muitos apresentavam cortes diversos e outros estavam com sinais claros de efeito de drogas ou álcool. Com um berro de ordem, o policial mandou-os calarem-se obtendo resultado imediato tamanho era o medo que sentiam. O colega passou um rádio, solicitando apoio policial e saiu para ajudar o superior, olhando grupo de garotos desesperados.

– Agora tu – apontou para um deles –, conta pra nós o que aconteceu.

– Um monstro enorme apareceu na festa, senhor. – O jovem respondeu, ainda tremendo do susto. – Quando esmurrou as paredes, a sala até rachou!

– Era só o que faltava – disse o outro soldado –, um bando de lunático drogado. Vamo chamar um ônibus e botar todos os elemento para dentro.

Assim que chegaram mais duas viaturas, o primeiro policial decidiu ir ao local da festa para ver o que havia, enquanto os estudantes eram levados para a delegacia e o IML.

Pegando em dois dos garotos, que enfiou no banco de trás da viatura, deu meia volta, indo pela Av. Bento Gonçalves mesmo na contramão, uma vez que àquela hora não havia mais movimento e estavam a menos de duzentos metros da entrada do Campus do Vale. Com auxílio dos alunos, a viatura aproximou-se do local, parando no estacionamento mais próximo. Desceram do carro, mas os garotos não estavam nem um pouco satisfeitos em retornarem para o local. Na dúvida, os dois PMs pegaram as pistolas e avançaram devagar, de armas em punho, só que tudo era silêncio e nem mesmo encontraram a segurança interna da universidade. Quando se aproximaram do prédio, ouviram passos e agacharam-se, apontando as pistolas para a frente. O som dos passos era estranho, irregular e com um arrastar misterioso, provocando nervosismo até nos policiais experientes. No auge da tensão, um dos garotos que os acompanhou levantou-se para fugir e tropeçou, esparramando-se no chão a alguns metros deles. Os passos cessaram e logo a seguir aumentaram de intensidade, enquanto ouviam uma voz que dizia:

– Ajudem, por favor.

Os policiais levantaram-se e avançaram para a esquina do prédio, um na frente e outro cobrindo o companheiro. Assim que ele viu o rapaz com três meninas, duas delas apoiadas por ele que quase não se aguentava, suspirou aliviado e colocou a pistola no coldre.

– Vocês estão bem? – Foi a primeira pergunta. – Há mais alguém lá?

– Não, senhor, não há – disse o jovem, ainda trêmulo e cansado. – Aquele monstro horroroso pegou uma colega no colo e saiu com ela, mas, antes, me mandou ajudar as gurias.

– Escuta, rapaz, tu não tem cara de drogado. Que papo é esse de monstro? – perguntou o segundo policial. – Alucinação coletiva?

– Senhor, eu não uso drogas nem bebo. Alguns colegas botaram drogas nas bebidas das guria, mas eu garanto que o monstro era bem real. Lembrava o Hulk, só que sem ser verde! E tem mais, ele não parecia ser mau, mas assustava tanto que quase me mijei nas calças. Se ele fosse do mal, tenho certeza que não me ia mandar ajudar as gurias.

– Chama mais uma viatura para levar estes junto. – O primeiro policial ordenou ao subordinado. – Eu vou olhar a sala.

– Sim, sargento.

― ☼ ―

– Então, como eu vou conhecer o meu salvador? – Eduarda também sorriu, mas estava demasiado escuro para se ver.

– Em breve aquilo vai ter uma repercussão muito grande e quanto menos souberem sobre nós, melhor.

– Meu nome é Eduarda – afirmou ela –, e não tô nem aí para a repercussão, pois eu vou denunciar aquela sacanagem. Eles queriam me violentar e atacaram um dos nossos colegas novos. Qual é o teu nome?

– Talvez seja melhor não saberes, Eduarda – disse Igor, com toda a calma. – Eu não pretendo chamar a atenção das autoridades para a minha pessoa.

Eduarda riu e ia falar, mas foi interrompida.

– Vejo que já estás bem – continuou ele –, então, vou-me embora.

– Espera – pediu ela, erguendo-se de soco. Com as mãos, tateou até tocar o seu rosto, como uma cega que procurava enxergá-lo pelo toque, tamanho era o breu. Após, com ambas as mãos nas faces do jovem mago puxou seu rosto e beijou-o nos lábios com doçura, deixando Igor trêmulo. – Obrigada de novo. Um dia me contarás quem tu és e eu estarei esperando.

– Talvez em breve, Eduarda – disse ele, saboreando o beijo que adorou. – Até mais.

Eduarda não o viu levantar, nem o sentiu soltar as suas mãos. Era como se ele tivesse evaporado, como se nunca houvesse estado ali. A garota saltou da cama e acendeu a luz, mas estava sozinha. Baratinada, pensou:

– "Será que imaginei tudo isto?" – Meiga, sorriu e viu o copo com água no criado-mudo, além da cadeira ainda quente ao lado da sua cama. – "Claro que não e vou achar-te fácil, fácil, meu gato, a menos que não sejas da faculdade, o que seria uma verdadeira lástima."

― ☼ ―

– Sargento, a viatura chegou.

– Vamos – ordenou o primeiro policial –, vamos para a delegacia. Lá, vocês podem ligar para as famílias.

Ao ver que uma das moças precisava de mais ajuda, o policial pegou-a ao colo e o colega apoiou a outra. Dessa forma, Valdo precisou apenas de ajudar uma delas, agradecendo o auxílio repentino com um sorriso e um gesto de cabeça.

Na delegacia de polícia, o delegado estava consternado com aquilo. Tomou o depoimento isolado de todos os jovens e as histórias batiam com perfeição, excluindo a hipótese de mentiras. O exame toxicológico revelou que nenhum deles ingeriu drogas psicotrópicas, embora houvesse traços de químicos no sangue de alguns e muito álcool em outros. O policial que foi olhar a sala, dissera que as paredes estavam intactas, ao contrário do que os alunos afirmaram e, tirando a enorme baderna mais as janelas quebradas, não havia qualquer evidência de um monstro.

Após uma triagem, descobriu-se que todas as moças haviam sido drogadas e que os calouros estavam muito alcoolizados. Com isso, o titular da delegacia concluiu que os veteranos planejavam cometer um crime brutal com garotas, suspeita confirmada pelo jovem que se declarou gay e de cujo exame nada acusou, nem álcool nem drogas, o que contribuiu para o confundir ainda mais.

A peça que faltava nesse quebra-cabeças era o rapaz que eles obrigaram a beber e que deu lugar ao monstro. Sem dó nem piedade, o delegado mandou prender quatro dos organizadores por drogar, induzir ao uso de drogas e apologia ao estupro. Na segunda-feira, trataria de descobrir quem seria esse jovem misterioso e a moça que o tal monstro levou. Talvez eles tivessem algo mais a acrescentar aos relatos tão disparatados que já possuía.

Sentou-se na sua mesa, soltando um longo suspiro e concluindo que o fim de semana ia ser muito logo e mal tinha começado. Mudou de ideia, levantou-se mais uma vez e pegou um café.

― ☼ ―

Igor sentou-se na sala da sua casa, pensativo e sorridente. Estava muito apaixonado por ela desde que a vira na empresa, a mulher que julgava ser a coisa mais bela e perfeita do mundo. O beijo, então... não tinha nenhuma descrição ou comparativo para aquele toque delicado dos lábios dela. Nunca tinha sentido isso antes e estava inebriado com a sensação.

Feliz, adormeceu pela primeira vez sem os pesadelos que se tinham tornado muito piores, depois que fugiu de Santa Catarina.

O fim de semana parecia que não acabava porque Eduarda não lhe saía da cabeça e o que mais queria era vê-la no trabalho ou na faculdade. Para passar o tempo, materializava imagens tridimensionais da garota e dava-lhes alguma animação, fazendo com que sorrisse, mandasse beijos ou apenas fizesse olhares sensuais, mas até isso acabava cansando e ele decidiu dar um passeio na zona sul. Enquanto andava na beira do Guaíba, lembrou-se de que na segunda-feira passaria a maior parte do dia na universidade e estava louco para ver se teriam as mesmas cadeiras.

― ☼ ―

Sentiu-se muito contente ao entrar na aula e dar de cara com Eduarda sentada na mesa ao lado da sua. Sem resistir, ficou a olhar para ela, que lhe sorriu.

Mal havia sentado, Valdo entrou acompanhado pelo pró-reitor de graduação e dois homens desconhecidos. Olhou para a turma toda e apontou Igor mais Eduarda, dizendo:

– Aqueles ali foram as vítimas, senhor.

– Vocês dois, sigam-nos – mandou o pró-reitor. – O senhor pode retornar para a sua aula, obrigado.

Igor e a menina saíram da sala olhando um para o outro como se nada entendessem, embora soubessem muito bem os motivos, e acompanharam os três homens até uma sala administrativa. Durante o caminho nem uma palavra foi dita e, depois, fizeram-nos sentar e aguardar enquanto entravam sozinhos. Igor olhou para Eduarda, que lhe sorriu, encorajadora.

– Foste tu quem eles obrigaram a beber aquele veneno, não foi? – perguntou-lhe, sorrindo.

– Sim. – Igor respondeu, lacônico.

– Não te preocupes que eu vou denunciar tudo – disse, tentando acalmá-lo, uma vez que ele parecia assustado.

– Não estou preocupado – afirmou com uma voz tão calma que ela achou que de fato não combinava com nervosismo.

– Tu não és de muitas palavras, né? – Ela riu. – Sou Eduarda...

A porta abriu-se, interrompendo ambos.

– Venham, sentem-se aqui. – Quando se acomodaram, o delegado foi dizendo. – Sou o delegado Gustavo Finneti e este é Chico Marques, meu amigo e colega. Estamos aqui para verificar o incidente ocorrido no sábado passado, mas não se preocupem que não lhes queremos mal. Vocês estavam na festa dos calouros que ocorreu nessa noite?

– Sim – responderam ao mesmo tempo. Eduarda respirou para começar a falar, mas o delegado fez nova pergunta:

– Posso saber o motivo?

– Somos calouros – respondeu ela, irritada com a pergunta meio idiota – e eu quero denun...

– Por favor. – O pró-reitor interrompeu a moça. – Por enquanto nós fazemos as perguntas e vocês respondem. Depois podem dizer o que quiserem. Qual o seu nome, filho?

– Igor Montenegro.

– Segundo o seu outro colega, Valdo, alguns dos rapazes forçaram-no a beber um coquetel de drogas. Isso é verdade?

– Sim, é verdade. Quando descobriram que eu não bebo, forçaram-me a tomar a droga.

– Por quê?

– Porque um deles, vangloriando-se, confessou que queriam drogar e violentar as gurias – apontou Eduarda –, em particular ela. Achavam que, drogado, eu não conseguiria impedir ou denunciar.

– Vai denunciar? Lembra-se de quem são? – perguntou o outro delegado.

– Lembro-me sim, mas não pretendo denunciar a menos que tenham tido sucesso no seu intento. Pelo que se fala nos corredores, deu tudo errado e alguns até foram presos. Além disso, eu saí ileso salvo a dor de cabeça.

– Por que não quer denunciar?

– Porque um aluno alcaguete só se ferra com os colegas e tenho quatro longos e duros anos pela frente.

– Você viu o tal monstro que todos falaram?

– Fala sério. – Igor riu. – Isso aqui tá virando cenário de filminho japonês? Esses idiotas devem ter ficado drogados e começaram a ver coisas, simples assim.

– O que lhe aconteceu?

– Eu fugi dali assim que eles viraram as costas e corri para procurar socorro. Acho que tropecei e rolei pelo gramado do Centro de Vivência abaixo. Ouvi a maior gritaria, mas comecei a ficar muito tonto e desmaiei. Quando acordei, estava perto do córrego com o dia amanhecendo. Como sentia-me melhor, voltei para o estacionamento, peguei o meu carro e fui para casa.

– Covarde. – Foi o murmúrio da moça, que o magoou um pouco.

– Montenegro, Montenegro... – murmurava o delegado. Virou-se para ele e perguntou. – Escute, garoto, não foi você que no fim do ano passado teve os seus pais desaparecidos de forma bem misteriosa?

– Sim e ainda não apareceram. A polícia encerrou as investigações dando o caso como crime não resolvido. Delegado, se o senhor não se importa, eu ainda sinto muita dor quanto a isso.

O delegado olhou para Eduarda.

– E a senhorita – disse. – Que tal começar com o seu nome?

– Eduarda Vargas – respondeu, irritada.

– Eduarda, o que aconteceu com a senhorita?

– Estava tudo muito legal, o pessoal batia papo numa boa, mas daí eu vi eles tentarem forçar Igor a beber. Levantei para defendê-lo e descobri que me drogaram porque não conseguia mais ficar coerente nem de pé.

– Então viu o seu colega ser atacado – mostrou uma série de fotografias. – Pode identificar o agressor?

– Estes aqui – disse, separando cinco. – Tenho certeza porque eram eles que conversavam comigo e pararam para atacá-lo, só que acho que tinha mais um.

– E o que aconteceu depois?

– Eu fiquei zonza, ouvi roncos e também gritos. Então apareceu uma coisa monstruosa e todos fugiram, só que eu estava muito tonta. Quando o monstro tocou em mim, perdi a consciência, mas lembro que era carregada no colo por alguém. A única coisa que ficou clara para mim é que ele era loiro, mas não lembro do rosto, porque estava fora do ar.

– Quando voltou a si, onde estava?

– Na minha cama, em casa – disse, omitindo o encontro com o salvador desconhecido. – Foi a coisa mais doida que eu vi. Quem quer que seja, me deixou na minha casa ilesa e respeitou a minha integridade.

– Tem certeza que viu um monstro? – perguntou o delegado.

– Olhe – Eduarda não gostava das perguntas porque as considerava um pouco repetitivas –, eu tenho certeza que vi um monstro sim, mas se ele era real, isso são outros quinhentos. Eu sei lá que porcaria colocaram na minha bebida.

– Entendo...

– E tem mais, eu quero fazer uma denúncia formal contra eles por isso – afirmou, interrompendo, bem irritada.

– Não faz isso – sussurrou Igor. – Não vai dar em nada e tu vais incomodar-te muito.

– Cala-te, covarde – vociferou ela, virando-se para o colega, zangada.

– Senhor Montenegro – disse o delegado. – Acho que já terminamos com o senhor. Por favor, retorne para a sua aula.

Magoado, Igor saiu, fechando a porta. Caminhou até ao Centro de Vivência e tomou um refrigerante para se distrair. Apesar de a aula estar perto do fim, ele retornou para a sala.

– Senhorita Vargas – continuou o delegado. – Quatro deles foram indiciados por algumas coisas, mas, legalmente, o único crime cometido foi pôr droga na sua bebida... e nas dos outros. O senhor Montenegro tem razão porque, por causa da droga, já foram indiciados e não são necessárias mais provas. Se a senhorita levar isso avante, vai expôr a sua imagem e reputação dentro desta instituição e os próximos quatro anos podem ficar bem desagradáveis.

– Então – insistiu o outro policial, entregando um cartão de visitas. – Pense bem a respeito e, se desejar fazer a sua queixa oficial, vá à nossa delegacia amanhã para estar com a cabeça bem fria, de preferência acompanhada do seu pai, mãe ou um advogado para a orientar, correto?

Eduarda assentiu com um sinal, saiu e os policiais encararam-se.

– Uma coisa é certa – começou um deles, o superior. – Todos viram o monstro, sóbrios ou não, exceto o rapaz, mas esse fugiu antes. Considerando que não existe nenhum Godzilla metido a besta fora das telas do cinema, sobra alucinação coletiva ou pior, uma nova e desconhecida droga que não é detectável nos exames de sangue e urina. Por último, levando em conta que a hipótese de alucinação coletiva tende a ser nula, temo o pior. Só peço a Deus que não tenham inventado isso. Quero que fiquem de olho nesse rapaz por uns tempos. Não sei porquê, mas não confio muito nele.

― ☼ ―

Universidade Federal do Rio Grande Do Sul.

Restaurante Universitário

Calouros da universidade também são chamados de bichos.

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