Pesadelos

A primeira coisa que fiz quando cheguei em casa, depois daquela tarde agitada na propriedade do velho, foi me trancar no quarto. E não falei com ninguém quando passei pela a sala. Até acho que nenhum deles se importou muito com isso.

Mas mesmo assim, pelo os cantos dos olhos, pude captar quando Mariane me seguiu com a cabeça enquanto subia às escadas. Mas claro, ela tentava inutilmente disfarçar o interesse detrás da capa de um bestseller.

Cheguei justamente numa hora em que todos estavam ocupando as poltronas diante da TV.

Parecia A Família Feliz do comercial de margarina. Se não eram felizes pelo menos pareciam tranquilos.

Mamãe, muito concentrada, costurava uma camiseta bem antiga minha. Em vão, pois eu não pretendia usar aquilo nunca mais, nem mesmo depois daquele conserto.

Já o Senhor Pedro, assistia futebol ao lado de Mariane, que estava numa posição de Buda, lendo um livro.

Todos alí fazendo coisas diferentes em seus mundos paralelos, apesar da distância, sentia se uma certa força de união pairando entre eles.

Parecia que nada tinha acontecido conosco nesses últimos dias. E isso me fazia muito mal. Era como se eu fosse o único que estivesse se importando com alguma coisa.

Como se viesse colhendo sozinho, as consequências de tudo àquilo que houve no passado.

Sei que isso era um sentimento egoísta de se pensar, tratando se principalmente das perdas que os três já tinham sofrido. Mas a impressão que eu tinha, sobre o modo como me ignoravam, e o jeito como Mariane estava se comportando ultimamente, era como se eu tivesse que pagar por tudo aquilo também. Entende? Como se agora fosse a minha vez de perder e sofrer.

"Todo mundo já sofreu nessa família. Agora é a vez dele"

"Vamos deixá-lo sofrer só mais um pouquinho, afinal, porque ele seria o único poupado?"

Recapitulando todas as sequências trágicas, vemos que minha mãe já tinha sofrido muito com a traição e a morte do marido. Em seguida, seu irmão Pedro, também com a traição e a morte da esposa estava inundado em dor, e em terceiro Mariane, remoída com a descoberta terrível do modo como a mãe morreu.

E eu? O que tinha sobrado pra mim? Da última fatia do bolo do sofrimento? Será que a morte de meu pai já não era o bastante? O fato de saber que ele nunca foi esse exemplo de homem que sempre achei que fosse, também já não era o suficiente?

"Claro que não, garoto! Você precisa sofrer mais. Sua dor nem se compara com a nossa!"

Então era isso! Era preciso mais dor! Precisava sentir com eles o gosto amargo que carregavam.

Bom, acho que já podem ficar satisfeitos então. Não havia mais agonia e amargura do que essa, de não ter a atenção da menina que amava.

"Ótimo! Que seja assim"

Mesmo pensando forte nessas suposições um tanto alienadas, eu confiava nos sentimentos de Mariane e não queria acreditar que talvez ela estivesse apenas fazendo joguinhos para me punir.

Estava precipitando meus julgamentos, e não deveria mais ficar pensando nessa teorias ridículas de conspiração contra minha pessoa. Não demorou muito para que jogasse fora todos esses conceitos fantasiosos e imaturos no mesmo instante.

****
Depois de checar com precisão a fechadura, assegurando me de que estava realmente bem trancada, sentei na cama e tirei o envelope da cintura. Coloquei o papel amarrotado sobre os lençóis e o alisei com cuidado por várias vezes, na tentativa de desamassá-lo.

Depois disso o segurei em minhas mãos, e fiquei pensando, o que me impediria de simplesmente abrir o envelope e começar a ler o enigmático conteúdo daquela carta.

Então lembrei que não era certo fazer algo assim. Michele não era a minha mãe. E que direito eu tinha de fazer isso? Seria correto ler as últimas palavras da mãe de alguém, antes mesmo da própria filha? Descartei a curiosidade mandando embora tudo de ruim que poderia vir em consequência dela, e resolvi guardar o envelope na gaveta da minha escrivaninha.

Deitei de lado e adormeci rapidamente. Estava exausto e um pouco com dor de cabeça. Evidentemente não tinha nascido mesmo pra coisas envolvendo planos, espionagens, furtos, tramas e invasões à domicílio. Esse mundo realmente não era para mim. E a enxaqueca só aumentava, cada vez que lembrava da casa de Alfredo, mas ainda assim, finalmente, tinha conseguido tirar um cochilo.

***************

Quando meu corpo se imergiu profundamente até a parte da superfície firme do Lago, pude perceber que ainda sentia oxigênio nos meus pulmões, apesar da água de certo modo ainda tentar me afogar.

Enquanto sentia o terreno arenoso sob meus pés, notei que minha respiração tornava se cada vez mais adaptável ao novo hábitat e os meus batimentos já não pareciam tão frequentes, apresentando aos poucos um ritmo muito mais calmo e silencioso, como se já não houvesse nenhum órgão dentro de mim.

A sensação era de um imenso vazio mas também de paz e serenidade, como se o tempo tivesse paralisado meus sinais vitais. Se aquilo era morrer, acho que não era tão ruim assim então, porque todo o desespero tinha ido embora, junto com o sangue e as árvores retorcidas que tinha visto segundos antes de descer até o fundo do lago. Antes mesmo da água começar entrar pelo o nariz.

Admirava como uma criança, cada detalhe que flutuava diante dos meus olhos em câmera lenta. Via com encanto a proeza dos minúsculos peixes indo e voltando, bem próximos do meu rosto. Fiquei de certa forma aliviado quando percebi que a água já não possuía nenhum vestígio do vermelho que tinha tomado conta de tudo minutos atrás e tudo agora era límpido e cristalino, com leves feixes de luz vindas da superfície, penetrando com vigor na profundidade. A escuridão tinha ido embora, trazendo um dia claro e bonito lá em cima.

Tentei segurar um dos peixinhos, mas ele escapou ligeiramente das minhas garras me fazendo rir por um leve segundo. Aquilo tudo parecia tão surreal e fiquei muito confuso com o que estava acontecendo.

Estava mesmo no fundo de um lago? Afinal, eu estava vivo ou estava morto?

Se estou morto porque ainda consigo sentir todas as sensações? Consigo até sentir o gosto doce da água nos meus lábios, e também consegui sentir perfeitamente a textura do pequeno anfíbio quando passou pelas as minhas mãos.

E se estou vivo porque simplesmente não consigo nadar e voltar a superfície?

Eram muitas perguntas que circulavam na minha cabeça, mas nenhuma delas era tão complexa como encontrar uma explicação razoável e científica para um ser humano estar à metros de profundidade de um lago e ainda assim respirar normalmente.

Olhei novamente para o solo e vi que pisava levemente em algumas algas e em outras espécies de plantas aquáticas. Logo percebi que elas foram tomando formas estranhas.

Fiquei prestando atenção com olhos arregalados, enquanto as algas em sincronização pareciam dançar juntas algum tipo de balé.

Era muito bonito de ver. E era tudo tão cristalino, que eu podia jurar, que estava de frente para uma daquelas super telas gigantes, com uma qualidade de imagens de alta definição. Isso era outra coisa que me intrigava. Eu estava nas profundezas de um lago, então, acredito que tudo deveria ser turvo e escuro, mas não, tudo era esplendidamente claro e radiante.

Ainda deslumbrado com o movimento dançante das algas, fui notando que elas vagarosamente se aproximavam de mim. Não fiz ação nenhuma e esperei pra ver o que aconteceria. De repente, as algas lançaram os meus pés e subiram minhas pernas, envolvendo todo o meu corpo em questão de segundos. Como tinha dito antes, não senti nenhum tipo de medo disso e deixei acontecer.

Depois de alcançarem a altura do meu queixo, simplesmente pararam e súbitamente desapareceram como mágica, agitando a água ao meu redor, como um leve e fraco redemoinho.

Me assustei dessa vez, mas me contive novamente, voltando a traquilidade anterior.

Mas quando as águas enfim se normalizaram, reparei em um pequeno objeto brilhante que veio à tona descendo até mim, boiando majestoso e se mantendo no mesmo nível dos meus olhos.

Franzi o cenho, identificando imediatamente o pingente de coração dourado. Prontamente o segurei em minhas mãos, evitando que caísse aos meus pés.

Como ele tinha surgido alí?
Será que alguém o tinha jogado nas águas? Será que essa mesma pessoa sabe que estou aqui embaixo?

Enquanto mirava o objeto me questionando com perguntas sobre o surgimento dele, visualizei também a figura de uma outra mão tocar meus dedos com leveza. Eram mãos bem femininas, que logo envolveram as minhas como uma concha.

Levantei o olhar e inesperadamente vi Mariane, linda, bem diante de mim.

Seu sorriso estava tão harmônico e generoso, de um jeito tão complacente, que meu espírito entrou em um total estado de mansidão e plenitude.

Nesse momento, eu só soube admirar o modo como os seus cabelos se moviam na água com vivacidade e energia. Estava em êxtase, e apenas sussurrei o seu nome com tom de dúvida.

Mais uma pergunta pra lista_ Porquê estava ali também? Estava morta? Se estava, será que se sentia viva assim como eu? Ela parecia tão calma. Não parecia está preocupada com o fato de estarmos submersos em águas profundas.

Resolvi não procurar mais explicações, e achei que seria muito mais proveitoso e agradável se deixasse as objeções para trás, e apenas gozasse do meu momento de apreciação.

Enquanto desfrutava de toda excelência de sortilégios que se mostrava pra mim, fui envolvido novamente pelas as mãos de Mariane, pondo o colar no meu pescoço com extrema docilidade. Ela e suas mãos, junto com a nudez, me estremeceram por inteiro, e tive medo de não conseguir controlar meus instintos. Mas fiquei firme e minha única reação foi tocar no coração de ouro suspenso no meio do meu peito.

Joguei as pupilas castanhas para baixo, contemplei a jóia tão estimada, e pensei em voz alta:

"Mas isso não é meu"

Ainda preso naqueles pensamentos de não me char no direito de usar tal objeto, e sem tirar os olhos do meu tórax nem por um instante, ouço a voz amável de Mariane.

"Ainda não acabou"
Disse, num certo tom de profecia.

Não tinha gostado do jeito de como aquela frase tinha sido dita. Era quase como se dissesse que algo muito ruim estava prestes a acontecer e que eu deveria me preparar.

Levantei a cabeça outra vez procurado entender o real sentido daquelas palavras, e fitei o rosto dela em busca de respostas. Mas Mariane não estava mais alí fazia tempo, e sim outra pessoa, que tinha tomado o seu lugar com olhos famintos cravados em mim.

A pessoa era muito parecida com Mariane, um pouco mais velha eu acho, e de uma pele bem mais clara, que notei, aos poucos, foi mudando de coloração.

A pele da mulher foi se transmutando de amarelada para um cinza esverdeado, e vi quando suas veias foram ficando escuras e saltadas quase em relevo.

Seus cabelos cor de mel foram substituídos por fios brancos e ralos, enquanto as feições de seu rosto criavam rugas profundas.

E todo o seu corpo parecia entrar lentamente em decomposição.

Então, foi que tive a compreensão de que estava diante de um cadáver. Aquela mulher estava apodrecendo vagarosamente perante à mim, e eu não tinha como fugir de tal criatura. Sim, a mulher já não era humana, então poderia classificá-la como uma Criatura, afinal o que estava ali era algo sem definição. Ela tinha se transformado numa Criatura demoníaca e maligna.

Era insuportável ter que olhar para um ser tão abominável, mas simplesmente eu não conseguia me mexer. Estava congelado no meu próprio corpo e meus membros não me obedeciam. Quis gritar, mas também logo vi que seria outra coisa inútil a se fazer, pois minha garganta estava entalada com o medo e o pânico.

Quando achei que não poderia ficar pior, assisti com ânsia, o momento em que de repente, saíram de todos os orifícios do rosto da criatura, algumas espécies de algas verdes. Eram as mesmas algas que me envolveram minutos antes e que agora estavam alí, saindo de todos os buracos da mulher cadáver.

Era tudo tão atroz de se ver.

O estado de putrefação da mulher, e aquele cheiro de carne podre, era o mais terrível.

O terror me assolava enquanto a Criatura mantinha os olhos em mim com certo furor. Foi então que senti o ar me faltar e toda a água ao redor se tornou barrenta e nebulosa, trazendo dezenas de peixes mortos.

Se ainda tinha algum rastro de vida em mim, com certeza estava partindo naquele momento. Procurei o ar com intensidade cada vez mais e a única coisa que eu adquiria com essa minha ação desesperadora era a confirmação de que estava mesmo morrendo.

( mais uma vez, creio eu)

Estava me afogando, e a mulher horrenda apenas acompanhava à tudo com olhos petrificados.

Mesmo com a morte me sugando, eu vi com evidência, quando ela se aproximou e puxou o colar agressivamente de meu pescoço, desaparecendo entre a escuridão das águas. E então, foi nessa mesma hora que a criatura se relevou com exatidão.

Era Michele.

Perplexo, escutei quando meu coração meramente parou de bater. Eu ainda fui capaz de ouvir seu último batimento e me vi morrendo.
Como é possível isso?

********************

Abri as pálpebras vendo o teto do meu quarto e levantei meu tronco respirando com dificuldade, tentando fazer contato com o oxigênio.

Tinha sido só mais um pesadelo. Uma continuidade de um outro que tinha tido meses atrás.

Passei as mãos pelos os cabelos lembrando perfeitamente como tinha sido o primeiro. Bem semelhante com o sonho dessa noite. Então acredito, pela sequência de tudo que ocorreu, que isso tenha sido uma espécie de continuação. Como a segunda parte de um filme de terror.

Eu tenho quase todas as cenas do primeiro pesadelo gravadas.

Uma das cenas, lembro de estar voando sobre o lago e de repente caindo nele. E depois disso vejo tudo ao redor se transformando em trevas.

Em seguida, o sangue na água, as árvores contorcidas e o meu afogamento.

Creio que nessa noite tenha sido a última parte do sonho. O fim de um momento crucial, onde estou submerso nas profundezas da morte com Michele.

Depois de tudo o que já nos aconteceu, depois de todos os segredos da nossa família serem revelados, eu até conseguiria entender o pesadelo que tive naquela primeira noite em que dormi com Mariane. Era tudo sobre a morte da mãe dela. Então, esse não seria diferente.

Sonhos sobre o passado me perseguiam, até mesmo os passados que não vivi estavam sempre neles.

Apesar de achar que eu era apenas um sensitivo que conseguia ver os acontecimentos de um tempo anterior, as palavras de Mariane não saíram da minha cabeça...

"Isso ainda não acabou"

********************

Em silêncio, pensava e tentava me recompôr da luta que tive para enfim abrir meu olhos e fugir de tudo aquilo.

Ainda refletindo, quase infarto novamente, com o toque do meu telefone. Outro susto! Assim meu coração não aguenta.

_ Meu Deus!
Saltei, soltando os fios de meus cabelos.

Estiquei meu braço e peguei o aparelho de cima da cômoda.

_ Oi, André.
Normalizando a respiração e tentando me acalmar.

_Onde você se meteu?_ Quase como uma cobrança_ Faz horas que eu te mandei um monte de mensagens e você nem um sinal de vida...

"Desculpa aí! Mas é que eu estava dando umas voltinhas pelo o mundo dos mortos e voltei quase agora"

_ Foi mal, cara. Mas é que eu acabei cochilando e dormi mais do que devia_ Olhei para o despertador e vi que já passava das dez da noite. Ótimo! Agora não terei mais sono para o resto da noite. Continuei _ Mas o que foi? Aconteceu alguma coisa?

_ Não... Não é nada. Eu só liguei mesmo pra avisar que o pessoal da escola decidiram finalmente fazer a nossa festa de despedida, e eu queria saber se você estava afim de ir.

Desde o começo do mês, os alunos do terceiro ano, estavam decidindo se fariam ou não, uma festa de despedida para celebrar o último ano na Duque de Caxias. E até que enfim essa festa iria acontecer.

_Quer dizer que vai ter mesmo a festa...
Ajeitei o corpo na cabeceira.

_ Pois, é... Depois de tanto falatório, a senhorita Ana acabou concordando em liberar para nós o espaço da quadra pra sexta à noite.

A senhorita Ana, nossa Diretora, era avessa há qualquer tipo de festinha na Escola que não fosse por um motivo cultural e de aprendizado.

_ Não está muito em cima?

_ Eu também acho que não vai ser uma tarefa muito fácil organizar tudo em tão pouco tempo. Mas essas foram as condições da Senhorita Ana... Ela disse que só permitiria uma festa na quadra se fosse logo pra esse final de semana... Acho que a nossa Diretora quer se livrar o mais rápido possível de nós _ riu e continuou_ Mas disseram que já está quase tudo arranjado então isso não vai ser um problema na verdade. Tá todo mundo tão empolgado com essa despedida, que a maioria já se comprometeu em ajudar com alguma coisa_ suspirou_ Eu nem sabia de nada também. Quando cheguei em casa foi que recebi um telefonema de um dos organizadores da festa, me pedindo pra confirmar a presença de alguns e repassar a notícia para o resto da turma.

_ Eu não sei se vou, André _ Sem pestanejar, afinal precisava relaxar.

_ Acho que seria bom pra você se distrair um pouco...

_ Tenho minhas dúvidas.

Me preparava para desligar quando ouvi novamente os gritos de André ainda do outro lado do fone.

_ Bem... Parece que Mariane não teve dúvidas... Ela confirmou presença sem nem hesitar... Mas você é que sabe. Qualquer coisa é só me avisar. Tchau.

André desligou e todo esse tempo em que estive calado, só ouvindo pensei que talvez Mariane não tenha mesmo esquecido de mim. E que pra ela as coisas estavam normais e de boa.

Fiquei um pouco triste e enquanto olhava pra carta, mandei a mensagem para André confirmando a festa.

****************

AngellMoura










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