O Porta Retrato
Olhei, sem pestanejar para André, com entusiasmo e grande euforia. Em retribuição ele apenas sorriu.
Empurramos a porta por mais um centímetro e entramos com prudência até nos darmos conta de que aquela passagem nos levava direto para a cozinha.
E logo nos deparamos com um apito azucrinante que se espalhava por todo o ambiente. O barulho insuportável vinha de uma chaleira que fervia água em um antigo fogão.
O velho rabugento tinha saído sem ao menos se lembrar que tinha abandonado seu café quase pronto. Me preocupei por um segundo com esse fato, acho mesmo que se ele percebesse que tinha deixado algo borbulhando pra trás, seria bem capaz de voltar correndo. Automaticamente apaguei o fogo, com um simples toque em um dos botões do forno.
_ Tem certeza que não mora mais ninguém aqui além dele?_
André estava um tanto nervoso. Não parecia ser mais tão divertido invadir a casa de alguém.
_Numca ouvi falar que tivesse família_ Tentei acalmá-lo.
Saímos da cozinha e chegamos na sala de jantar que possuía apenas uma enorme mesa de madeira, que me fez lembrar dos cavalheiros da Távola Redonda. Seguimos para os outros cômodos e vimos um corredor estreito onde ficavam alguns quartos. Esse mesmo corredor também nos levava para a sala de visitas.
_ Precisaríamos de um dia inteiro só pra vasculhar os quartos_
Falou André, desestimulado com a quantidade de compartimentos que o lugar apresentava. E ele não estava errado.
Pelo o que pude contar rapidamente, a casa tinha sete grandes aposentos na parte de baixo, e olhando para cima das escadas, notamos que haveria bem mais. Talvez uns nove quartos no andar de cima.
_ Isso é uma casa ou um hotel?_
André não tinha feito uma piada. Ele estava mesmo começando a ficar zangado com aquela casa.
_ Da Transilvânia, só se for.
Calculei quanto tempo levaríamos para revistar tudo em tão poucos minutos até o dono retornar. Com certeza não ia ser uma tarefa muito fácil.
_ Acho melhor a gente se dividir_
Sugeri com as mãos na cintura.
_ Tem razão_ André concordou, dando também o seu palpite_ Então vamos fazer assim, eu fico com a parte de cima enquanto você fica com os compartimentos daqui de baixo.
_ Beleza!
Diante da minha reação positiva, André seguiu para as escadas.
Mas de repente parou no meio do caminho e gritou para mim lá do alto:
_ O que estamos procurando afinal? Você não me falou.
_Qualquer carta velha com o nome Michele Direcionada ao Senhor Alfredo, você traz pra mim.
_ Entendi. Mas vou logo avisando, vai ser como procurar uma agulha no palheiro. Essa casa é uma bagunça.
Não achei necessário entrar em muitos detalhes com ele sobre o que deveríamos encontrar na casa do velhote. Apenas falei o quanto era importante conseguir achar esse papel e pedi sua ajuda logo depois. E mesmo com bastante receio, André aceitou de boa o plano de invadir a casa de um estranho. Agora ele estava alí comigo, revirando gavetas e armários, sem a mínima noção se acharia alguma coisa _ Armários e gavetas com cheiro detestável de mofo e Naftalina.
Depois de frustradas tentativas, entrei na última porta da minha direita e senti que tinha tirado a sorte grande. Era justamente o quarto principal. O lugar onde o maluco passava suas noites de insônia e amargura. Percebi na hora por causa da cama desarrumada com um certo aspecto de vida. Digo isso no sentido de que os outros primeiros que entrei estavam completamente vazios e mortos.
Não que a casa já fosse totalmente inerte, mas pelo menos o restante dela dava pra se saber que ainda havia sinais de presença humana. Tais coisas como um copo de água em cima da pia, uma chaleira no fogão e um ardor de perfume barato pelo o ar, me fazia lembrar que ali de certa forma morava um ser humano.
E vida era algo que não tinha encontrado nos outros quartos vizinhos. Só tinha visto muita poeira, muita escuridão e algumas paredes sujas com o Nada.
Então, quando olhei para aquele quarto com mobília e roupas penduradas, instantâneamente concluí que poderia ser o ninho oficial do dono da casa. E pensando nas suas deficiências de um corpo frágil e debilitado, se eu fosse ele, também teria escolhido a parte que me fosse mais acessível para o banheiro e cozinha. Assim, não teria um mínimo de trabalho sequer com o sobe e desce de escadas.
Afinal, quinze degraus não é nada favorável para um senhor doente da coluna.
Achei melhor não perder mais muito tempo com teorias ou raciocínios vagos, então, me foquei para os criados mudos ao lado da cama.
No entanto, para minha decepção, só me deparei com uma infinidade de sungas estilo samba canção e meias. Muitas meias! Todas em tom escuro. O cara era Dark mesmo. Não tinha mesmo cor nenhuma no dia a dia dele. Nem uma meia branca? Não, tudo era cinza e preto, dos móveis às roupas íntimas.
Segui para a cama e ergui o colchão, na esperança de topar com alguma coisa escondida, mas só o que encontrei foram molas soltas e nuvens de pó, que me fizeram espirrar com tanta força que minhas narinas arderam como brasa. Creio que tinha acabado de aspirar milhões de ácaros naquele momento, se bem que não estava muito preocupado com a saúde dos meus pulmões porque eu só queria mesmo era encontrar essa bendita carta o quanto antes.
(Bendita?)
Não foram nem cinco minutos a demora de André no andar de cima, quando de repente, o vejo entrando no quarto onde eu estava. André tinha uma leve expressão de tristeza no rosto quando me encarou e eu já adivinhava que ele não tinha achado porcaria nenhuma.
Mas mesmo assim, tive que perguntar:
_ E aí? Achou alguma coisa?
_ Não há nada lá em cima.
_ Nada?
_ Está tudo vazio... Só o que encontrei foram mais alguns compartimentos absolutamente abandonados... É de dar medo!
A descoberta de André não tinha sido novidade pra mim, afinal também tinha me deparado com dormitórios exatamente iguais como ele descreveu.
_ Então, só o que nos restou, foi a sala.
Apontei para a direção que nos levava até este cômodo.
_ E os banheiros.
André deu a ideia mas me olhando com um certo absurdo.
"Quem guarda cartas no banheiro?"
Respondi com o olhar antes de falar:
_ Acho que não se guarda esse tipo de coisa num banheiro.
Ele balançou a cabeça duvidando disso.
Mas pensando bem estávamos na casa de um doido varrido, então não podíamos descartar tais possibilidades. No entanto, ficou decido que se não tivéssemos sucesso na sala iríamos direto para os banheiros. Quem sabe não teria alguma gaveta por lá, cheias de cartas de amor e de despedidas, para que se distraísse, sempre quando estivesse ocupando o sanitário?
Nossa!Que nogento!
Fomos para a sala e ficamos por um bom tempo parados, analisando cada canto.
"Se eu fosse ele, onde esconderia a última mensagem da única mulher que amei?"
Além dessas e outras perguntas, só o tic tac de um relógio preso na parede ecoava na minha cabeça naquela hora.
_ Esse cara é sem noção mesmo!_ André nem por um segundo tinha deixado de ficar impressionado com aquele ambiente. Continuou_ Olha só essa decoração? Nem a minha vó usa mais isso_
Terminou sua crítica, tocando em um abajur vermelho bastante deteriorado.
Permaneci calado enquanto ele seguia com suas observações negativas sobre os enfeites da casa.
_ Meu pai do céu! Que coisa mais macabra!_ Segurou o bicho empalhado com repulsa_Que horror! Parece que acabou de sair de Psicose. Só faltava mesmo agora a gente encontrar uma velha morta e empalhada na dispensa.
Eu poderia ter achado a comparação dele fantástica, afinal já estive naquela casa uma vez e minha impressão foi a mesma. Mas infelizmente não estava no clima para piadinhas. Eu só queria mesmo sair dali o mais rápido possível.
Depois das gracinhas do André, fiquei apenas pensativo por mais dois segundos, quando de repente, uma luz no fim do túnel se acendeu ofuscante em minha mente.
_ André.
_O que..._ ainda estudando a coruja minuciosamente.
_ Se você fosse um cara meio pirado, mas também completamente apaixonado por uma mulher..._ Consegui chamar a atenção dele_ E de repente ela morresse, te deixando de lembrança um única carta... Onde você a guardaria?
André pôs a coruja no lugar e me olhou revisando a minha pergunta.
_ Hum, deixa eu ver _ Disse procurando a resposta pelo o ar_ Sei lá!... Mas eu acho que faria tipo um memorial... sabe, quase como um altar. Assim, teria tudo sobre ela em um mesmo lugar... Onde eu pudesse acender algumas velas... Chorar... Cultuar a imagem dela sempre que sentisse saudade...
Meus olhos brilharam junto com a minha alma.
Parecia até que tinham apertado alguns botões ou colocado pilhas novas em mim, porque tudo de repente se acendeu e minha mente clareou, indo embora qualquer sombra ou fumaça que não me deixava pensar direito.
Caminhei em sua direção a uma mesinha perto da instante.
Fiquei de frente para a mesinha de mogno onde André antes estava. Era um aparador que ficava próximo das escadas. Estava repleto de porta retratos antigos no qual eu os vinha encarando desde o começo da minha pergunta.
Com o coração quase saltando pra fora peguei uma das fotografias. Era a mesma que o Rabugento tinha mostrado para mim e Mariane na primeira vez que estivemos lá. Era aquela fotografia do casamento de Michele com Pedro que mostrou pra mim e Mariane.
Foram longos minutos reparando em todos os detalhes daquele porta retrato, as pequenas flores entalhadas, os sorrisos dos noivos, o peso da madeira, a alegria singela de meus pais e por fim a nítida expressão melancólica de um magrelo ao lado da noiva.
Era uma sensação estranha aquela. De novo estou nessa casa olhando para aquela imagem mais uma vez.
Suspirei quase levemente e me dediquei a olhar o lado oposto do porta retrato, onde se introduzia a foto. Sem mais demora desmontei com destreza e rapidez, enquanto André em silêncio só observava minha ação. Não sei se era porque eu já esperava encontrar alguma coisa, mas não demonstrei nenhuma reação de surpresa quando vi um envelope amarelado escondido atrás da fotografia.
"Esteve lá, esse tempo todo"
Segurei o papel e reconheci logo de cara a letra que vinha impressa nele. Era uma daquelas dedicatórias endereçadas no estilo
De: Fulano
Para: Cicrano
Nem precisei abrir para ver o restante do conteúdo. Eu sabia que tinha achado o meu tesouro.
_ Não me diga que achou? _
André com curiosidade.
Busquei fundo o ar dessa vez, ainda olhando fixamente para o meu achado.
_ Então vamos logo sair daqui._
André falou com um certo tom de ordem e pressa diante da minha despreocupação.
assenti, como se voltasse de algum transe.
Coloquei o envelope dentro da calça prendendo na cintura. Nessa hora, André já se dirigia para a saída com o celular nas mãos.
_ Vou avisar pra eles que já achamos.
Disse rapidamente, enquanto procurava um número na sua lista de contatos.
O segui, concordando.
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Durante todo o caminho até o lago, Alfredo não parou um só instante sequer de reclamar e de se mal dizer.
"Olha, menina, quer saber de verdade o que eu acho? Eu acho que você deveria ter chamado mesmo uma ambulância para o rapaz. Teria sido mais prático "
"Eu não deveria ter vindo! Essa é que é a verdade! "
"É Por causa desse tipo de coisa que eu proíbo as pessoas de nadarem nesse lago... Mas ninguém me Escuta!"
"Eu não quero me responsabilizar por isso. Está me ouvindo? Espero que não me venha nenhum tipo de problema por causa disso. Já estou bastante velho pra ficar me metendo em confusão"
A garota ruiva que havia descido do carro andava agora bem à frente dele. Não aguentava mais ouvir as queixas e protestos. Mas fingia que não escutava e continuava o guiando até o local do evento.
Depois de um longo tempo, puderam ver o rapaz caído no chão, às margens da lagoa.
A garota aflita se apressou até o rapaz desfalecido e se ajoelhou.
Alfredo se aproximou devagar e pela primeira vez se mostrou realmente preocupado com a situação.
_ Ele não parece mesmo nada bem_ Disse, enquanto examinava as feições do rapazinho_ Não sei não viu, garota... Mas eu acho que o seu namorado já partiu dessa pra melhor.
Ele nunca foi muito bom em tentar confortar as pessoas. Essa era a verdade. O velho não sabia lhe dá com certos tipos de situações. Nem tão pouco sabia tranquilizar ninguém.
A garota o olhou como se não estivesse acreditando que ele fora capaz de falar algo assim.
Ele continou ignorando o olhar de desprezo que lhe era lançado e continuou:
_ Já verificou os pulsos dele? A respiração? Os batimentos cardíacos?
_ Ele não está morto!
Ela respondeu áspera.
De repente um som abafado vindo de algum lugar surgiu entre eles assustando o velho.
Curioso, procurou ao seu redor em busca de encontrar o local de onde estava vindo aquele barulho. E não acreditou quando viu a garota enfiando as mão no bolso e tirando um celular.
_ Oi.
Ela atendeu rapidamente.
_ Achamos. Já podem acabar com o teatrinho aí.
Disse a voz do outro lado.
_ OK... Me encontro com vocês no lugar combinado_
Desligou o telefone e pôs de volta no bolso.
_ Espera um pouco... _ Alfredo com cara de protesto_ Você não tinha dito que estava sem telefone?
Ela ficou sem ação diante da indagação, mas se manteve quieta, procurando uma alternativa para maquiar a sua mentira. É claro que estava esse tempo inteiro com o telefone, só que teve que omitir esse fato para que os planos corressem conforme tinham programado.
O rapaz ainda deitado e imóvel, por um segundo tossiu, voltando à vida, salvando assim sua namorada de ter que se explicar com o velhote.
Ela sorriu feliz quando viu o namorado abrindo as pálpebras, e logo o ajudou a se levantar.
_ Amor, você não morreu _ Ainda com o teatro.
_ O que aconteceu?_ Mais tosse.
O rapaz foi se erguendo aos poucos.
_ Acho que agora já podemos ir embora_ Disse a garota rapidamente, enquanto o Senhor os olhava com desconfiança_ Muito obrigada por ter vindo, mas acho que não precisamos mais de ajuda... Está tudo bem agora... Adeus!
O casal saiu apressados como se estivessem fugindo dele, alí parado catatônico. Em questão de segundos, sumiram entre as árvores, deixando ele sozinho e pensativo com o que tinha acabado de acontecer. E ele teve certeza, que tinha acabado de caír em alguma brincadeira besta dessas de adolescentes.
Reclamando mais do que nunca, fez o caminho de volta de onde nunca deveria ter saído.
"Miseráveis!"
"Bando de desocupados!"
"Uns vagabundos, isso sim!"
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André e eu estávamos atravessando a cerca quando ouvimos o vento trazendo os nossos nomes. Olhamos para o horizonte e esperamos o casal correndo chegar até nós.
Quando enfim a garota passou pela a abertura da cerca, pudemos perceber o quanto ela estava eufórica e ofegante com a corrida, e com o que tinha feito horas antes.
_ Isso foi intenso!
Disse, recuperando o fôlego com as mãos no joelho.
O rapaz forte que vinha com ela quase não passava pela a abertura por causa do seu tamanho, também falou:
_ Vocês tinham que ter visto a cara dele.
Riu.
_ E quando ele me viu com o telefone? Quase os olhos saíram da caixa.
Completou a garota.
_ Obrigado, pessoal. Valeu mesmo.
Estava realmente grato, afinal se não fosse pela a ajuda deles, eu não teria conseguido me livrar sozinho de Alfredo e assim não teria como procurar pela a casa a carta de Michele.
Marcos bateu nos meus ombros como se dissesse _ De nada.
Cada passo tinha sido conversado com extrema precisão e cuidado, de como deveríamos proceder para invadir a casa do Alfredo. E é claro também como poderíamos fazer para tirá-lo de casa, para que pudéssemos revistar tudo com calma, até achar a carta de despedida da mãe de Mariane.
_ E agora? O que você vai fazer com isso ?_
Perguntou André.
Tirei o envelope da cintura e respirei fundo.
_ Vou dar de presente.
Aquela carta seria uma oferta de paz que eu selaria com Mariane. Um jeito de me aproximar dela. Amolecer seu coração e talvez fazer com que ela perceba de uma vez por todas que sou capaz de tudo por ela. Até mesmo me arriscar entrando em casa de loucos, em busca de coisas que sabia que era importante pra ela.
E quem sabe perceber também que eu não era como meu pai e que me importava com os sentimentos dela.
Depois de tudo, resolvemos sair de perto das cercas pois já estava escurecendo e não era muito confortável ficar no meio do mato à noite. Fomos cada um para um lado e acertamos que nos falaríamos mais tarde.
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Alfredo girou as chaves e atravessou a porta entrando na sua sala sombria. Sentou no sofá e descansou as pernas sobre a mesinha de centro. Logo veio todo o pensamento do que tinha ocorrido há pouco. A garota misteriosa na sua porta e sua história mal contada, a caminhada até o lago, o despertar súbito do rapaz, a mentira sobre o telefone e a maneira agitada como o deixaram sozinho no lago.
Relembrando com ênfase todas as cenas, acabou se dando conta do que tinha deixado em andamento na cozinha, antes de abandonar o seu lar para seguir o chamado de uma desconhecida qualquer. Lembrou do seu bule com café fervilhando no fogão.
Deixando pra trás a dor do cansaço, dirigiu se rapidamente pra lá, na esperança de que a água não tivesse se evaporado.
Chegando próximo ao fogão, notou que o forno estava desligado. Um Detalhe: Ele recordava que não tinha feito aquilo antes de sair.
"Eu tenho certeza que não apaguei esse fogo"
"Ou será que apaguei?"
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