Despedidas

Quem cria as regras? Afinal o que é certo ou errado? O certo te leva para o céu mesmo ou isso foi inventado para seguirmos um padrão? Um paradigma que nos foi imposto como uma lavagem cerebral?

Eu tinha tantas dúvidas sobre o que me era permitido sentir. Sobre o que me levaria a ser um anormal. E sobre essa sensação de culpa por ter dividido a cama com a minha própria irmã e ainda assim desejá-la profundamente...

E apesar de todo esse desatino, eu não me via com uma aberração ou algo do tipo. Só conseguia me ver como uma pessoa insignificante reduzida pela a dor, meramente vítima das circunstâncias.

Não acho que cometi algum pecado. Pecados são Pecados se você sabe que são. Nesse caso, específicamente, nós não sabíamos da grande heresia que estávamos cometendo.

Então não era justo sofrer castigos. Éramos tão inocentes quanto uma criança. Até aquela noite...

Se você não tem conhecimento dos erros e faz, talvez haja perdão pra você. Mas se tem plena consciência e mesmo assim continua, então se prepare para a sua estadia no inferno. Não foi desse modo que nossos pais nos ensinaram? Pelo menos foi dessa maneira que minha mãe cristã me doutrinou.

"Se você for um bom menino e fizer só coisas boas, vai direto pro céu. E quem sabe pode até ver seu pai um dia. Mas se for um moleque levado e fizer somente coisas erradas e ruins, não haverá perdão e você pode até ir pro inferno"

( Bom, sabendo agora do que meu pai fez em vida, tenho minhas dúvidas se ele ganhou o céu... )

Afinal, quem eu deveria realmente obedecer? As regras religiosas? A normalidade?O bom senso ou o meu coração?

Meu Deus, se está aí, por favor me ajuda!

Não acreditava que naquela altura do campeonato ainda estava pensando nas possibilidades de ficar com Mariane, mesmo horas depois da minha conversa com o Surfista.

*************

Quando cheguei do maldito encontro, estava psicologicamente exausto, e segui diretamente para o banheiro. Precisava de um longo banho quente e demorado. Já passava das nove da noite e fiquei extremamente aliviado quando percebi que todos já dormiam em seus quartos. Não estava muito afim de encarar ninguém. Só ansiava mesmo por um jato de água na cara e nada mais.

Me livrei da roupa, entrando no box. Liguei a ducha e deixei escorrer pelo o rosto. As gotas rolavam sobre a pele misturando se com as lágrimas que saíram dos meus olhos castanhos. Estava chorando e nem tinha reparado. Chorar estava sendo algo tão rotineiro e natural que nem percebia mais quando começava ou mesmo quando terminava.

Depois de minutos debaixo do chuveiro o desliguei e apoiei as costas no azulejo da parede. Alcançei a toalha pendurada num dos ganchos e enquanto enxugava a face úmida, de repente, ouvi sua voz.

_ Quando vamos parar de chorar?

Devagar tirei a toalha que tampava minha visão e me deparei com Mariana entre a vidraça embaçada do lado de fora do box.

_ Mariane?
Perguntei, me cobrindo com a toalha na cintura.

Ela arrastou a vidraça para o lado abrindo o compartimento e entrou, dividindo assim comigo o mesmo espaço. O recinto era tão minúsculo que pude sentir sua respiração próxima o bastante para que eu ficasse extremamente desorientado.

_ Eu não sei se consigo ser a mesma.

Ficamos nos encarando em silêncio e minhas mãos não me obedeceram. Toquei em uns dos fios que caíam sobre a sua testa e os coloquei por detrás de sua orelha. Meu coração gelou.

_Nunca mais seremos, Mariane._
Sussurrei.

Eu estava mesmo preocupado com essas questões sobre o que seria certo ou errado, mas naquele momento, eu só estava concentrado e em tudo que poderíamos fazer debaixo daquele chuveiro. Mas precisava ser forte.

Eu pensava e pensava. E a minha cabeça não parava um só segundo.  Mas no meio de todo aquele frenesi, por um segundo  e meus pensamentos se dissolveram quando a vi cair no chão de joelhos, com as mãos no rosto em soluços.

Não! Aquilo nunca ia dar certo. Nunca! A culpa sempre nos acompanharia. Sempre depois de algum contato físico mais íntimo acabaria nos punindo e nos odiando.

_ Vem...
Tentei ergue-la e guiá-la para fora do box mas Mariane parecia uma pedra.

_Eu não posso mais ficar um segundo aqui..._ Ela
Com a voz embargada, tentando completar o raciocínio.

_ Eu sei..._ Sabia que precisava ser forte_ Eu sei.

Finalmente a Levantei com delicadeza e ficamos alinhados de pé um para o outro. Quando por fim, Mariane pronunciou palavras amargas porém necessárias para nossos ouvidos.

_ É Preciso que eu vá de uma vez por todas.

Mordi os lábios com força e quase pude sentir o gosto doce de sangue.

Balançei a cabeça timidamente. Compadecida, tocou no meu rosto com as pontas dos dedos.

_ Eu não pretendo te tirar de mim._ Continuou, enquanto se perdia na vermelhidão dos meus olhos_ Mesmo que eu não esteja mais aqui... Sempre estarei com você, Alexandre. Sempre estará comigo.

Tomei suas graciosas mãos e as beijei.

Novamente se desmanchou e me abraçou tão forte que mal pude puxar o ar dos pulmões. E logo depois se soltou dos meus braços e saiu dalí.

Ela tentou. Só Deus sabe o quanto. Tentou mesmo fazer aquilo funcionar. Mas seus princípios eram bem mais sólidos e resistentes. E sinceramente, tínhamos que ser muito contidos e insensíveis para continuar com as nossas vidas como se não soubesse do nosso funesto laço.

Quando ela saiu, me deixando sozinho, a única alternativa depois daquilo, era me curvar no chão friorento e gritar. Mas só tive forças para um chorinho abafado. E cá entre nós, esses são um dos piores tipo de choro que alguém pode ter.

**********

Me deparar com Mariane no dia seguinte, organizando suas coisas para partir, não foi algo fácil de se ver. Através das frestas da porta do quarto, eu acompanhava toda movimentação. Só escutava o barulho do sobe e desce de escadas da tia na procura incansável de objetos pessoais da sobrinha espalhados pela a casa.

Enquanto as sombras passavam de um lado para o outro pelo o corredor, só tive vontade de ficar quieto, sentado no parapeito da minha janela. E com os braços esticados, brincava com os galhos que por centímetros não adentravam pelo o meu quarto.

Arranquei uma das folhas e a coloquei na boca. Ainda mastigando, recordei do dia que fiz Mariane comer uma folha como aquela. E de repente sorri, lembrando do quanto foi engraçado vê-la confiar num garoto que mal conhecia. Afinal não se deve experimentar nenhum tipo de planta ou mato que não se conhece. Mas ali, ela já confiava em mim. Não porque era seu primo ou parente, mas porque ela já estava gostando muito do primo desajeitado e tímido (E lógico, por acreditar também que eu não teria motivos para envenena-la)

Depois das memórias daquela tarde nas árvores, degustando brotos de siriguela, fiquei com a concepção vazia, focando o olhar a cima das copas. E percebi que os pardais tinham sumido. Não havia sons de pássaros e aquilo me assustou de certa forma, aliás nunca tinha acontecido isso antes. Pra onde foram todos?Aquela tarde deveria ser mesmo um dia de luto. Até pra eles.

*********

Mariane estava no quarto dobrando algumas camisetas e pondo na sua maleta de oncinha. Não tinha muita coisa na cabeça naquela hora. Só sabia que precisava arrumar suas malas antes que o táxi chegasse, lá pelo o meio da tarde. Depois das blusas, foi a vez de guardar seu estimado relicário dourado.

Enquanto o admirava na caixinha de jóias, lembrou de todos os dias agradáveis que tivemos juntos pelos os campos e pelo o lago. E até se autorizou um sorriso sutil e fugaz. Ainda com o sorriso de meia lua, guardou o talismã de volta no estojo, colocando no cantinho da bagagem. Depois sentou, quase jogando o quadril com tudo na cama e suspirou fortemente encarando a parede azul céu.

De repente o rangido da porta invade seu silêncio, e mamãe surge como um felino em busca de atenção.

_ Ainda precisa de ajuda com alguma coisa?_
Se ofereceu, sem cerimônia.

_ Não. Já cuidei de tudo. Obrigada._
Mariane mexia os dedos sobre as pernas, não como nervosismo, mas em desconsolo.

Mamãe se manteve no mesmo lugar, com receio de não parecer que queria se livrar dela o mais rapidamente.

_ Eu queria te entregar uma coisa na verdade_
Falou suavemente, e com cuidado pôs as mãos no bolso do seu vestido de estampas floridas. Mariane observava enquanto sua tia retirava um papel dobrado ao meio e logo depois disso direcionando o mesmo a ela.

_ O que é isso?

_ Algo que nunca deveria ter tirado de você...

Mariane se levantou e deu alguns passos e pegou o papel de suas mãos.

_ Estava com a senhora esse tempo todo _ Disse, quando reconheceu a carta de amor que eu tinha escrito pra ela no dia de seu aniversário _ Pensei que tinha perdido.

_ Resolvi devolver porque... acredito que assim, será melhor pra todos nós, se não houver mais nenhum tipo de mentira e segredo nessa família. E vendo o quanto já lhe foi tirado, não seria justo privar você disso também.

_ Essa carta... Ela é tão importante quanto a de minha mãe_Disse Mariane, quebrando o silêncio, enquanto percorria os olhos pela minha caligrafia feia e miúda _ A única diferença, é que esta aqui só me traz coisas boas.

_ Palavras escritas parecem ser mesmo o forte dessa família_ Mamãe comovida_ E com o avanço de toda essa tecnologia, escrever a mão passou a ser uma prática rara então, acredito que você tenha algo bastante especial consigo... Afinal, quem hoje em dia se presta a sujar o dedo de tinta pra dizer o que sente... Só alguém de alma muito doce e um grande apreciador faria algo tão sublime e encantador assim... Se eu fosse uma garota desse tempo, e de repente recebesse um bilhete parecido, me sentiria muito envaidecida... E uma garota de muita sorte.

Mariane aceitou sorrir indo de encontro a jovem senhora e a abraçou.

_ Obrigada por considerar isso.

_ Não agradeça, querida_ Afagou os ombros da sobrinha com zelo_Afinal de contas ela é sua e nunca deveria ter saído de perto de você. Eu só espero que possa me perdoar por mais essa também_ mamãe a segurou para encará-la _Porque pra lhe ser bem sincera, eu já estava bem cansada de guardar coisas que já não me pertenciam totalmente. E mais ainda, de lutar contra o inevitável... Eu só quero continuar vivendo sem precisar mais mentir ou mesmo magoar as pessoas que eu amo... Eu nunca quis machucar ninguém, Mariane. Juro que não. Minhas aspirações eram tão despretensiosas. A única coisa que eu queria da vida, era uma casa e uma horta... Não era muito, era?

Mamãe deixou cair uma lágrima e se jogou nos braços de Mariane. Lembrando de tudo que tinha passado e de sua história mal dirigida, se sentia pequena e frágil.

Chorou por tudo em cima da garota. Chorou por um menino órfão que teve que enganar. Chorou pelo o irmão que ela sabia que nunca tinha sido feliz. Chorou por Mariane por ter que mandá-la embora. E chorou por Michele, por morrer tão jovem e tão louca. E pelo o marido infiel.

Ainda hoje minha mãe não deixou de chorar. E as vezes ainda a escuto falar...

Me perdoa, filho.

Não adianta muito dizer pra ela que já a perdoei há tempos. Acho que Mamãe acabou esquecendo que um dia fiz isso. Ou finge esquecer só para se punir...

****"""****"""****

Continua...





Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top