Capítulo 6: Prioridades

Capítulo 6

Prioridades

Mônica Pereira – com suas unhas sempre feitas, roupas finas, saltos altos e cabelo liso – dificilmente seria identificada como funcionária de uma fábrica de hovercars em São Gonçalo. Claro que seu cargo era burocrático, de supervisão – coordenar os operadores dos robôs da linha de montagem não era, afinal, algo que exigisse suor ou desgaste. Mesmo seus subordinados compondo mão-de-obra altamente especializada, não se tratava de um emprego que gostasse de deixar muito explícito – e agradecia sempre por sua aparência alinhada contribuir para isso. Além do mais, estar na companhia do juiz Pedro de Castro levava as pessoas a acharem ser formada em Direito, trabalhando com advocacia ou em algum gabinete gabaritado do judiciário – carreira que, em retrospecto, ela preferia ter escolhido à Engenharia Robótica.

Chegou de elevador ao trigésimo sétimo andar do condomínio e ganhou o corredor. Após percorrer o perímetro vigiado por câmeras, entrou no apartamento de Pedro depois da rápida verificação de seu cartão de acesso. Já ter seu registro gravado na tranca da porta do parceiro a fazia imaginar se possuía o mesmo nível de acesso ao seu coração. Por mais que houvesse aberto o seu, ainda não sentia reciprocidade por parte do juiz. E, Deus – quanto mais o governo incentivava a monogamia e o matrimônio, distribuindo até bolsas-casamento para fomentar o estabelecimento de famílias heterossexuais, mais homens aparentavam buscar só uma noite de sexo...

Entrando no domicílio, a mulher olhou ao redor e exclamou, enquanto se sentava num sofá:

– Pedro? Já cheguei!

A voz do juiz veio um tanto abafada e distante, a alguns cômodos de distância:

– Aguarde um minuto! Estou terminando a barba!

No banheiro de azulejos cinzentos, Pedro, diante do espelho levemente embaçado devido ao banho recém-tomado, movia cuidadosamente o feixe luminoso do barbeador laser sobre o rosto. A tarefa durou mais alguns minutos; e ao seu término, com o juiz passando satisfeito uma das mãos sobre a pele lisa, penteou o cabelo, terminou de vestir-se e finalmente rumou à sala de estar, onde Mônica o esperava com um belo sorriso no rosto – mais forçado do que sincero.

– Como vai, amor? – perguntou ela ao levantar-se, abraçando-o e dando rápido beijo em seus lábios.

"Amor"? – Pedro conteve-se para não expressar a incômoda surpresa. – Já estamos nesse nível?

Ao falar, procurou soar mais empático:

– Recebi sua ligação na secretária holográfica. Adoraria ficar aqui com você, mas estou de saída.

O sorriso de Mônica desapareceu.

– Aonde você vai?

– Meu filho precisa de ajuda.

Sim, Pedro escolhera Carlos ao promotor Mário Valente. Convencera-se, durante o almoço e a ducha logo depois, de que o filho era prioritário em relação ao colega do Ministério Público. Ambos se revelavam impulsivos, movidos pelos próprios egos e cegos para as consequências de suas ações. Esse tipo de pessoa, aliás, aparentava atualmente cercar Pedro de todos os lados – e, encarando Mônica e sua insistência em estar com ele, perguntou-se se ela também não possuía o mesmo tipo de personalidade. Mas Carlos lutava com um problema de saúde. Dependência química. Valente aprenderia a lição ao ser enxotado por Júlio de Almeida, e planejaria melhor suas ações da próxima vez. Já Carlos poderia não sobreviver a doses muito intensas das drogas que ele jurara abandonar...

– De novo? – tanto a voz quanto o olhar de Mônica transpareciam pura frustração. – Olhe, eu conheço uma clínica muito boa no Paraná e...

– Chega, Mônica! – Pedro rebateu mais ríspido do que gostaria, atingido no mesmo nervo que sempre latejava quando falavam de seu filho. – Você sabe que eu já me cansei dessa história de mandar o Carlos para uma clínica!

Como juiz, ele sabia como funcionavam os centros de recuperação. A maioria deles estava ligada e era mantida pela própria PU, verdadeiros campos de concentração como os existentes na Amazônia que moldavam os viciados para a obediência total ao governo. Muitos dos jovens ditos "recuperados" deixavam as clínicas diretamente para as fileiras dos Arcanjos da Salvação. Outros recebiam implantes no cérebro e debandavam para as milícias neofascistas que espancavam negros e homossexuais, além dos próprios usuários de drogas. Não, ele não queria aquilo para Carlos.

– Querido, esse sistema de melhora e recompensa não está mais funcionando... – Mônica insistiu. – Você o presenteou com um apartamento. Um apartamento, em Copacabana. Desse jeito só vai consumir todos os seus recursos. Numa clínica especializada, ele poderia superar o vício e...

– Chega!

A tensão permaneceu viva no ar, mas Mônica retraiu-se.

– OK... Não está mais aqui quem falou...

– Nos vemos mais tarde – Pedro apanhou o casaco e dirigiu-se até a porta. Ameaçava voltar a chover. – Fique à vontade. Faça um lanche e assista TV, se quiser.

– Está bem. Até mais.

Os dois trocaram acenos incômodos e a porta do apartamento selou-se atrás do juiz quando ele saiu.

X – X – X

Borboletas azuis. Sim, muitas, semitransparentes. E uma raposa vermelha. Vermelha como sangue, correndo atrás do próprio rabo após esconder-se junto à cômoda do quarto, talvez com medo das borboletas. Não se podia esquecer do pássaro lilás que voava batendo as asas tão rápido que suas penas caíam e deslizavam lentamente pelo ar, roçando sua pele e causando cócegas. E claro, dos homenzinhos verdes! Cada um com a altura batendo em seu joelho, marchando feito um exército de soldadinhos. Seriam marcianos? Ah, sim! Um, dois, três... Moviam-se em fachos de luz projetados do teto, talvez seus discos voadores. Tinham cabeças grandes. Carlos riu deles.

Vieram então os elefantes laranja. Eram sete, como o filho de Pedro de Castro contou – parecendo saídos de um comercial de refrigerante do qual gostava quando pequeno. Em trotar lento, as trombas erguidas feito saxofones, cruzaram o quarto e sumiram na parede. Depois surgiram nove veadinhos, todos brancos como a neve. Saltavam felizes para lá e para cá, escalando a cômoda, os cascos usando as gavetas semiabertas como escada. Depois rolaram pelo colchão, pernas para cima, querendo que Carlos lhes coçasse a barriga. Ele estendeu uma mão...

Mas o membro, agora em carne viva, retornou coberto de sangue – grossas gotas pingando em cima do lençol.

Veio o desespero. Por que logo naquele momento? A dor aparentava visitá-lo cada vez mais cedo, punindo-o. Insistindo sobre o quão estava errado. Gemendo, sentiu as pequenas patas das formigas escalando seu corpo, ameaçando afundar as presas em sua pele a qualquer momento. Zombando dele.

Carlos curvou-se na cama, tentando não ver os oficiais da PU, em seus uniformes cinzentos e capacetes de viseiras parecendo espelhos, se aproximarem com seus cassetetes elétricos, rindo. Cercando-o na cama. Pretendiam eletrificar as formigas para que suas picadas o queimassem feito fogo, desintegrassem seu corpo. O rapaz gritou.

– Está tudo bem, amor? – uma voz conhecida, porém distante, flutuou acima das cabeças dos policiais.

– Ah! Eles vão me pegar! – tentou pedir socorro, porém ninguém podia ajudá-lo. Era impossível.

– O quê? – a pessoa familiar adquiriu desespero em sua voz.

Os PUs ergueram os cassetetes, pressionando os botões nas hastes para liberar a descarga elétrica.

– Não! Eles vão me pegar! Eles estão chegando perto!

O rapaz cobriu o peito com os braços e se contorceu, os lábios não conseguindo conter a saliva agora a escorrer por seu queixo, voando ao redor conforme se debatia. Tinha de se proteger, mas não conseguia cobrir todo o corpo! Girou violentamente sobre a cama, e a seguir todos os seus ossos latejaram num baque duro. Despencara para o chão. A baba aumentou, preenchendo sua boca e ameaçando sufocá-lo. Debateu-se mais intensamente, os olhos girando enquanto as pupilas desapareciam sob as pálpebras, restando apenas as órbitas brancas e incertas do estado convulsivo. Soltou um grito engasgado, um verdadeiro chafariz de saliva e catarro sendo projetado por sua língua sobre o carpete.

E veio o estrondo. O jovem encolheu-se, assimilando aquilo como o golpe dos policiais, efetuado com todos em perfeita sincronia, caindo sobre seu corpo...

Ergueu a cabeça, os músculos emitindo espasmos de dor. A porta do quarto estava agora aberta, a fechadura soltando faíscas. Surgiu através dela a figura de uma mulher envolvida em luz branca. Parecia um anjo, os cabelos castanhos erguidos ao ar por uma brisa que, lentamente, começou a reconfortá-lo.

– Carlos! – espantou-se a jovem conforme duas grandes asas de penas brancas desenrolavam-se às suas costas. Ela devia estar triste, pois seus olhos se encontravam banhados em lágrimas. – O que é isso?

– Isso se chama Perestroika!

A resposta foi dada por uma segunda figura – mas, se a primeira era um anjo, essa só podia ser o diabo. Apareceu cercada por trevas, vestindo sobretudo negro de gola alta e tendo cabelos brancos arrepiados, fogo e enxofre emanando de suas mãos enquanto compridas e afiadas unhas se estendiam das unhas de seus pés descalços.

Não! – bradou com todas as forças. – Vá embora!

Foi inútil. O anjo permaneceu impassível junto à porta, tal qual desistindo dele, enquanto o demônio atirava-se sobre si. Brandia, na mão direita, um punhal, a lâmina reluzindo sob as luzes do quarto.

Carlos ergueu os braços desesperado, tentando conter o ataque do inimigo... segurá-lo, empurrá-lo. O monstro, no entanto, era muito mais forte. Enterrou a faca em seu peito com todas as forças, e o ferimento encheu de fogo as veias do rapaz. A dor foi descomunal, levando-o a soltar um último grito de agonia... antes de tudo se apagar. Antes de ser vencido, mais uma vez, pelo abismo.

X – X – X

Pedro só ergueu a seringa recém-injetada no peito do filho após se certificar de que todo o conteúdo ganhara sua corrente sanguínea. Um filete vermelho escorreu do furo causado pela agulha, o juiz pressionando-o com a dobra de papel higiênico trazida na outra mão por alguns instantes. Pôde, desse modo, sentir o tórax de Carlos erguer-se e retrair-se em velocidade cada vez menor, a respiração se acalmando até parecer que o rapaz simplesmente dormia.

– Eu pensei que ele tinha parado com isso! – afirmou Jéssica, aos prantos, junto à porta.

– Não se preocupe, não é sua culpa... – Pedro suspirou voltando de leve a cabeça para a moça.

Trêmula e receosa, Jéssica conseguiu aproximar-se alguns passos.

– O que injetou nele? – indagou aos soluços.

– Morfina, dose concentrada. Anula os efeitos da Perestroika. Não é o remédio ideal, claro. Acaba causando outro tipo de dependência...

Após tomar o pulso do filho para verificar sua frequência cardíaca, acrescentou:

– Ele vai acordar em cerca de meia hora. Vamos colocá-lo de volta na cama e esperar lá na sala.

Jéssica assentiu timidamente com a cabeça, e acabou falando, cabisbaixa:

– Perdoe-me, senhor Castro... Eu não soube cuidar de seu filho...

– Já disse: a culpa não é sua. Carlos embarcou nessa sozinho. O que podemos fazer é ajudá-lo a sair.

Embora, em seu íntimo, Pedro já duvidasse se qualquer atitude de sua parte teria efeito...

Curvando-se sobre o jovem, seguraram-no com cuidado pelos ombros e pelas pernas, deitando-o novamente sobre o colchão. Tendo a pele gelada devido ao suor, Carlos mantinha uma expressão serena na face. Era de se especular estar tendo, agora, um sonho bom.

Sonhando com o momento em que estará livre do vício? – Pedro pensou consigo, ar triste.

Em seguida, amparando Jéssica com um braço, levou-a para a sala, a porta quebrada do dormitório soltando suas últimas faíscas antes de a luz na tranca eletrônica se apagar.

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