|Capítulo 35 - Velhos Conhecidos¦

     O trepidar do coletivo fazia os órgãos de Aveta revirarem dentro do corpo. Ela estava com a cabeça jogada para trás e abraçada à bolsa que pegara na saída. Laerte não disse muita coisa, ela sabia que era questão de tempo até ele exigir uma resposta e temia por esse momento.

     — Estamos chegando — ele falou. — Vem, temos que levantar.

     Aveta o seguiu até a porta traseira, não foi necessário que acionassem o botão de parada, já que um dos únicos homens presentes no ônibus o fez. Quando desceram os degraus e sentiram o cheiro que vinha da rua, a princesa fechou os olhos e inspirou a brisa livre, havia se esquecido de como era bom estar fora do castelo.

     — Onde você mora? — questionou, voltando a olhar para o príncipe.

     — É ali. Depois daquele bar. — Apontou para frente.

     — Antes de irmos — Ela o puxou, para que parasse —, você vai saber quem eu sou, Laerte. Mas será que, só por agora, poderia esquecer isso?

    O rapaz olhou para baixo e depois assentiu, estava com os braços cruzados.

     — É bom andarmos rápido — falou. — Não temos muito tempo. — Estendeu a mão a ela, que segurou com força.

     O casal saiu depressa em direção à residência, mantinham as faces voltadas para o chão para correrem menos risco de serem descobertos.
Assim que chegaram ao portão, Laerte notou a luz acesa e puxou o trinco do lado de dentro, pondo a mão entre as barras da grade.

     — A Cecília está aqui em casa — falou. — Laerte deu passagem para Aveta e voltou a fechar o portão.

     Existiam alguns degraus antes da varanda da frente. Eles subiram com certa rapidez e a moça esperou que o príncipe batesse na porta. Segundos depois das quatro pancadas fortes, ouviram o som de chinelos se arrastando no chão, então a maçaneta girou e a escuridão da varanda deu lugar à luz da sala.

     — Laerte? — perguntou a senhora de cabelos acobreados. — O que está fazendo aqui, meu filho? — Olhou para Aveta, depois tornou a escrutinar o rapaz, com confusão expressa na face.

     Laerte puxou a princesa para dentro da residência e fechou a porta, deixando a mulher ainda mais perplexa.

     — Cecília, eu vim ver o meu pai uma última vez — disse. — Mas eu não tenho tempo para explicar.

     — Eu estava com ele lá, até agora há pouco. Vim lavar umas louças e tirar o pó dos móveis. E o jogo dos reis? — perguntou. — Essa moça, quem é? — continuou com o interrogatório, parecia demasiado confusa.

     — Eu sou Aveta, senhora. Muito prazer — respondeu a jovem com cordialidade.

     — O prazer é meu, mas...

     — Eros está em casa? — o príncipe quis saber.

     — Está. Por quê? — disse ela. — Quer que eu vá até lá, chamá-lo?

     — Se for possível, eu preciso dos documentos dele para entrar no hospital.

     As linhas de expressão de Cecília tornaram-se ainda mais demarcadas. Os seus olhos passeavam pelas figuras em sua frente, sem entender o que se passava.

     — Ceci, eu saí escondido do castelo. Aveta é minha parceira de jogo. Eu tenho pouco tempo para ver o meu pai. Por favor, eu só preciso da sua ajuda — Laerte suplicou.

     A mulher piscou algumas vezes, rápido, depois movimentou a cabeça em sentido afirmativo, soltando o ar pela boca.

     — Tudo bem, eu vou pegar os documentos lá em casa — disse Cecília. — Espere aqui — completou e deixou o lugar.

     Aveta observou aquela casa, era muito mais acolhedora que o lar onde crescera “amparada” pela madrinha a maior parte do tempo. Apesar de simples com seus quadros abstratos nas paredes e vasos de flores de plástico espalhadas pelo ambiente, tinha um ar único, um cheiro de lar que há muito ela não sabia o que era. Laerte também parecia preso em lembranças, aquele lugar foi sempre o seu porto seguro. 
A princesa, por sua vez, imaginava como alguém poderia abandonar aquele cantinho do céu, como fizera a mãe do príncipe. Talvez ela tivesse seus motivos, não era ninguém para julgá-la, mas a primeira impressão lhe dizia que aquele lar não era um lugar para se deixar.

     — É tão diferente — disse ele.

     — O quê? — Ela se aproximou do príncipe.

     — Do Castelo das Pedras. Vai ser uma grande mudança se vencermos, é como se eu trocasse de vida — respondeu Laerte encarando as escadas que levavam ao andar superior, onde ficava seu quarto.

     — Eu queria dizer que quem faz o nosso lar, somos nós mesmos. Mas seria uma mentira — disse a jovem.

     Laerte a encarou.

     — Eu morei muito tempo com a minha madrinha. Mas eu nunca senti que aquela era minha casa. Era só um lugar onde eu dormia e sentia rancor. — Aveta deixou a bolsa sobre a poltrona caramelo que ficava em um dos cantos.

     — Não ama a sua madrinha mesmo? — perguntou Laerte.

     — Seria capaz de amar alguém que te criou por obrigação e não por amor? Alguém que te agrediu em palavras e fisicamente? Alguém que todos os dias humilhava a imagem de quem você ama, só para que você se sentisse mal? — despejou as palavras de maneira que o tom carregado de sua voz mais pareceu o início de um choro, mas ela não chorava por motivos como aquele. — Eu acho que não.

     — Eu não imaginava — afirmou Laerte, um tanto constrangido por ter feito a pergunta anterior.

     A porta foi aberta com um solavanco apavorado e por ela passou uma figura ainda não conhecida pela princesa. Era um homem alto, de cabelos ruivos e sardas espalhadas pela face. Lábios finos que faziam contraste com o nariz um tanto avantajado, e olhos verdes, destoantes de todo o resto da estrutura facial. O tom grosseiro com o qual abrira a porta fora substituído por um sorriso.

     — Cara, eu não acredito que é você! — Ele estendeu o braço e tocou a mão de Laerte, sacudindo o braço do segundo, que retribuiu dando dois tapas em seu bíceps. — Minha mãe falou, mas eu não consegui acreditar — continuou, enquanto a mulher entrava no cômodo, com alguns papéis em mãos.

     — Eros, sua mãe falou sobre o que eu pedi? — indagou o príncipe.

     — Sim, mas como você vai se passar por mim? A gente é bem... diferente.

     — Eu tenho umas fotos três por quatro nas minhas gavetas. Vou pôr em cima da sua, mas pode ficar tranquilo que não vou comprometer seu documento.

     — Tranquilo, Laerte. Não esquenta. — O moço de beleza peculiar deixou os olhos indiscretos pousarem sobre Aveta. — Não vai me apresentar a moça?

     — Eu sou Aveta. Parceira do Laerte. No jogo, eu quis dizer — corrigiu antes que o príncipe pudesse contradizer sua fala.

     Não sabia em que pé andava a relação dos dois, verdadeiramente.

     — Está tudo aqui. — Cecília estendeu as mãos. — A menina também vai?

     Aveta balançou a cabeça em confirmação.

     — Depois voltamos para cá. Temos que passar a noite aqui — disse a princesa.

     — Eu vou prender o meu cabelo melhor e vou com vocês — falou Cecília. — Laerte, preciso falar com você, antes. — Olhou para o rapaz, diretamente.

     — Eros, não é? — Aveta chamou, sempre fora perspicaz em decifrar os sinais. — Vamos lá em cima comigo, não sei onde fica o quarto de Laerte, preciso arrumar os papeis antes de irmos.

     — Claro — o rapaz respondeu. — Vem. Vou te mostrar onde é — comunicou e em seguida deu passos largos na direção da escada.

     — Já volto — ela disse a Laerte e seguiu o filho de Cecília, degraus acima.

     Os dois que permaneceram na sala estavam tensos, Cecília parecia pensar em palavras doces para dizer o óbvio, mas que sentido tinha o peso de mil toneladas.

     — Ele está muito mal, não é? — Laerte deduziu.

     — Senta — pediu a mulher e fez o mesmo, no sofá em frente. — Olha, o estado do seu pai está bem mais agravado. Os dias que você passou no castelo foram bem apressados aqui fora. O seu pai, ele... — Cecília engoliu em seco, tombando a face para frente. — O seu pai está vivo, ainda, por causa dos aparelhos, mas está sofrendo muito, Laerte. E como você o deixou aos meus cuidados, eu...

     — O quê, Ceci?

     — Eu permiti que fossem desligados — ela disse. — Eu ia voltar agora para lá, para assinar os papeis e deixar que eles desligassem tudo. Mas, agora que você está aqui, eu acho que é você quem tem que decidir.

     Laerte apoiou os cotovelos nas pernas e o rosto nas mãos. Era possível notar o corpo inflar e murchar de acordo com sua respiração pesada. A boca entreaberta soltava o ar gradativamente, espalhando aquele pranto de dor por toda a sala, deixando o ar mais denso pelo pesar que afundava a existência de Laerte para o chão, um nível abaixo do solo, preso em obscuridades que poderiam assolá-lo pelo resto da vida.

     — Eu preciso vê-lo, primeiro. Depois eu decido isso, assim eu não posso. Não consigo — falou, deixando o choro inundar a face. Os olhos acinzentados estavam nublados pelas lágrimas e a vermelhidão que o envolvia.

     — É melhor. — Cecília levantou-se, sentou-se ao lado de Laerte e o afagou. — Eu sinto muito, meu filho.

     — Não sinta — respondeu o rapaz, passando a manga do moletom sobre o nariz. — Eu já estou sentindo tudo de ruim por esse fato, ninguém mais precisa sentir.

     — Acabei — disse a princesa Aveta, descendo as escadas ao lado de Eros.
Sua postura mudou assim que notou os olhos encharcados dd Laerte.

     — Acho que devemos ir antes que fique tarde demais — disse a mulher, desvencilhando-se do príncipe.

     O rapaz secou o rosto, esfregando as mãos sobre a pele, depois levantou-se também e pegou os documentos das mãos da princesa.

     Eros e Cecília foram para a cozinha, a mulher fora terminar de se ajeitar e apagar as luzes.

     — Está bem, Laerte? — sussurrou Aveta, colocando as suas mãos por cima das mãos dele.

     — Sim. Eu só estava tentando fugir do inevitável e o destino me pôs aqui justo hoje. Enfim — Ele balançou a cabeça para os lados —, que bom que está aqui comigo — disse, deixando o sorriso de lado, que quase sempre habitava em seu rosto, aparecer fraco nos lábios.

     Aveta ficou na ponta dos pés, já que sem os saltos era alguns centímetros mais baixa, e deixou um beijo molhado ser sentido na boca do príncipe. O sal das lágrimas ainda estava presente, mas ela não se importava com o sabor que tinha, e sim com o calor que sentia emanar de ambos, deixando aquela situação dolorosa um pouco mais confortável.

     — Eu...

     — Vamos. — A voz de Cecília interrompeu a frase da princesa, que agradeceu internamente por não ter sido capaz de fazer a declaração que esteve na ponta de sua língua.

     Depois de trancarem a casa, Eros voltou para a residência da mãe e os demais seguiram a pé para o hospital. Era hora de enfrentar a pior dor que um ser humano é capaz de sentir.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top