|Capítulo 25 - Cartas Na Mesa|

     A moça não se deixou ver, assim que notou os dois que conversavam perto de uma das mesas do canto, deu um passo para trás e voltou a caminhar depressa. Depois do que acontecera, imaginou que alguma das cozinheiras pudesse lhe arranjar um chá (puro dessa vez), mas teve os anseios quebrados pela figura do casal.

     “Romana tinha mesmo razão” pensou.

     Nem ao menos quis fazer análise de linguagem corporal, para ela estava muito claro o que aquilo parecia.
Foi em direção ao quarto, andando o mais rápido que seus pés lhe permitiam. Puxou a maçaneta, entrou e bateu a porta.

     Ela não choraria por algo que não fosse Baltazar...

     O rapaz sempre se perdia naquela imensidão de corredores e portas, os seus passos calmos tinham rumo, queria chegar ao quarto e ansiava que Aveta já estivesse lá. Não sabia onde ela estava, a procurara no jardim antes de topar com Romana no momento em que entrava, todavia, parecia ter evaporado. Também não avistara John, apenas Kaya que observava a água do pequeno lago ir e vir com seus inúmeros peixes. O primeiro pensamento que teve foi de que eles poderiam estar juntos e aquilo lhe incomodava.

     Em meio ao silêncio do espaço em que se encontrava, em frente à porta, virou o pescoço para um lado e para o outro para se certificar de que eles não estavam ali. Sem resposta de seus sentidos auditivos e visuais, Laerte girou a maçaneta.

     Foi imediata a visão do vestido jogado sobre a cama, os sapatos amontoados de qualquer maneira perto do pé do móvel e os brincos de pérola abandonados em cima da cômoda.
Estranhou o barulho do chuveiro ligado, ela havia se banhado antes de sair ao encontro de Romana, e o tempo não estava muito quente. O rapaz ponderou os diversos prós e contras de interpelá-la, mas não conteve o impulso. Deu alguns passos à frente e, com o braço dobrado, preparou-se para bater e perguntar se ela estava bem, como fizera nos acontecimentos anteriores.

     Ele recostou a testa na madeira e chegou a afastar o punho, mas seus ouvidos muito bem limpos o surpreenderam. Ele ouvia sussurros, coisas quase inaudíveis. Laerte colou a orelha direita na porta e franziu a testa, havia algo de errado.

     — Ele foi nojento — disse ela, em murmúrios. Laerte tentou prestar ainda mais atenção. — Eu sei... Eu sei... — sussurrava desesperada. — Não, eu não vou desistir. Eu não quero. A hora está chegando.

     Laerte permaneceu concentrado, queria descobrir o que se passava. Aveta era sã o bastante para não falar sozinha, ao menos ele pensava isso.

     — Como disse o mestre Savielly Tartakower¹, tática é saber o que fazer quando há algo a fazer; estratégia é saber o que fazer quando não há nada para fazer. Eu sei o que fazer. Eu vou continuar.

     Depois de tais palavras desconexas, o chuveiro foi desligado. O príncipe correu até a cama, arrancou os sapatos às pressas a fim de fingir que já estava ali há tempos, deitado.

     Alguns minutos depois, a princesa deixou o banheiro carregando consigo um pouco do vapor porta afora. Não o olhou nos olhos, carregava um pano nas mãos, enrolado. Foi direto à sua cômoda, abriu a segunda gaveta, o enfiou lá e começou a juntar suas coisas que estavam sobre a sua parte da “cama conjunta”.

     — Não vai me perguntar onde eu estava, princesa?

     — Não me interessa.

     — Mas a mim, interessa. Onde estava? Eu a procurei por todo o castelo.

     — Ótimo investigador você é. Acredito que o que estava fazendo com Romana no refeitório era um interrogatório para saber onde eu andava. — Deixou transparecer o sarcasmo.

     — Mas eu estava mesmo perguntando a ela onde você estava. Saiu para encontrá-la e depois desapareceu.

     — Estava perdida.

     — Perdida? — questionou.

     — É. Mas isso não é da sua conta. — Arqueou a coluna e prendeu as mãos na parte lateral da cama, puxando-a para o lado.

     — Ei, espera! O que está fazendo? — Laerte se levantou.

     — Recuperando minha dignidade — ela respondeu, ainda fazendo força para separar os dois colchões.

     — O que vocês duas conversaram?

     — Eu não tenho nada a dizer sobre a nossa conversa. Agradeço se puder não me encher. — Ajeitou o lençol sobre a cama já afastada da outra e se sentou, pegou sua mala embaixo do estrado e abriu o zíper do lado de fora.

     — Aveta, eu...

     — Aqui. — Jogou o relógio de bolso, de forma que ele caiu exatamente ao meio do colchão de Laerte.

     Nesse momento o rapaz sentiu o nó que lhe descia pela garganta.

     — Princesa, o que está acontecendo?

     — Tínhamos um trato, não temos mais — respondeu seca enquanto voltava a mala para o chão.

     — Eu falei que isso é importante pra mim, o que deu em você?! — disse ele enquanto pegava o relógio, parecia ter máximo respeito.

     — Me devolva meu tabuleiro.

     — Dá pra dizer o que há?

     — Você é um mentiroso, Laerte. Se aproveitou da minha fraqueza, da minha inteligência, das minhas estratégias.

     — Eu não fiz nada disso! — ele respondeu andando até ela e fazendo gestos desesperados.

     — Está louco para chegar o momento da troca, não é mesmo?

     — Princesa Aveta, a troco de quê eu a deixaria? Eu te entreguei o objeto que mais amo na vida, é praticamente uma parte de mim. Eu não o faria se não tivesse a intenção de ficar contigo até o fim.

     — Até o fim de quem? O meu?

     — Princesa, eu não sei o que Romana lhe disse, mas eu posso explicar com riqueza de detalhes a verdade.

     — Vai dizer que é mentira que estavam se agarrando? Vai voltar atrás na sua própria palavra?

     — Não. Mas não foi bem assim. Romana me implorou que a beijasse, disse que estava se sentindo muito mal.

     — Aí você se compadeceu da pobrezinha. — Aveta forçou as bochechas, com ironia.

     — Não, eu continuei negando, mas ela segurou minhas bochechas e me beijou. Fiquei com medo de machucá-la, então não correspondi, apenas esperei que me soltasse. Mas você não acreditaria se eu dissesse isso antes.

     — Eu não acredito agora — rebateu a princesa.

     — Além disso, mais cedo você disse que não se importa.

     — E realmente não me importo. O que vocês conversaram é que me deixa decepcionada.

     — Mas...

     — E quanto ao relógio, quem me garante que não é uma estratégia? Pode ser um relógio velho qualquer que pegou antes de vir para cá, já na intenção de convencer alguém com esse seu discursinho barato.

     — É o relógio do meu pai! — ele gritou.

     A princesa ficou em silêncio, olhou para baixo e mordeu o lábio inferior antes de suspirar com força.

     — Eu te disse que ele está modificado, não disse? Sabe por quê?

     — Não me interessa.

     — Porque uma volta dele é o tempo exato que meu pai tem de vida.

     — Isso é uma mentira deslavada. — Aveta riu, mas logo voltou a ficar séria, dada a feição irredutível de Laerte.

     — Os papéis que você encontrou no meu livro, são pesquisas que eu estava fazendo sobre a doença que ele tem. Depois que o médico disse que ele teria pouco tempo de vida, eu comecei a pesquisar feito louco. Não ia entrar no jogo, mas meu pai me fez prometer que viria. Eu trouxe o relógio, princesa, porque na semana da prova final, provavelmente será também o momento em que eu perderei o meu pai.

     Aveta engoliu a saliva presente na boca e piscou algumas vezes com rapidez. Infelizmente ela via verdade no que o príncipe dizia.

     — Ele é a única pessoa que eu tenho, princesa. E ainda não desisti disso aqui por causa da minha promessa e por sua causa! — Gesticulou apontando para o chão com os olhos marejados, o maxilar completamente tensionado e a boca molhada.

     Ouvia-se apenas o respirar dos dois. Aveta recusava-se a encará-lo no fundo dos olhos.

     — Me devolva o meu tabuleiro — ela ordenou, enquanto olhava para o lado com os braços paralelos ao corpo, escorando o próprio peso sobre o colchão.

     O príncipe, visivelmente furioso, pegou o tabuleiro e as peças, sem muito jeito, e os jogou ao lado dela.

     A tensão não se dissipou. Nenhum dos dois dirigiu a palavra um ao outro, desceram separados para o jantar, voltaram também separados para o quarto. Deitaram-se em suas respectivas camas e fecharam os olhos, cada um com seu mar de angústia trancafiado no peito.

¹ Savielly Grigorievich Tartakower foi um Grande Mestre Internacional  polonês e francês. Foi um dos mais proeminentes jornalistas sobre enxadrismo nas décadas de 20 e 30. Venceu por duas vezes o campeonato polonês, em Varsóvia e Jurata.

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