|Capítulo 23 - A Chegada Da Incerteza|
Talvez fossem as maçãs rosadas demais, ou os olhos claros que mais pareciam feixes de luz do Sol, mas algo deixava Aveta incomodada ao observar de longe a figura da jovem Romana, que folheava um livro ao lado de uma das grandes estantes da biblioteca. A princesa misteriosa preferiu perscrutar a moça ao longe, como se quisesse analisar sua linguagem corporal. Não obstante, pouco disse sobre o que ela pensava ou o que pretendia fazer. Aveta atentou-se apenas ao título escolhido, Drácula. A edição luxuosa de capa clássica fora trazida de outro país, em outro continente, onde a monarquia não mais era o sistema político. Livros eram distribuídos aos montes ao povo, Aveta sabia que era apenas uma tentativa de ludibriá-los, fazendo-os pensar que estavam ganhando presentes dos seus superiores. Na televisão e no rádio muito era divulgado sobre as grandes remessas de caixas e mais caixas importadas, recheadas de literatura estrangeira.
Aveta não se intimidava ou se sentia insegura, ela tinha ciência de que beleza era um quesito relativo, e se sentia bem consigo mesma. Mas, nesse momento, o fato da relatividade entre atração e beleza já deixava-a incomodada. E se Laerte sentisse no estômago um frio quando olhasse as perfeitas curvas avermelhadas da face da mocinha? Um frio parecido com o que ela própria sentira quando ele sorria de lado e fazia suas insinuações baratas.
Em nada a agradava aquela sensação estranha, a causada pela imagem das duas bocas se encontrando nos cantos escuros do castelo das pedras. Indagava-se se aquilo era o que todos intitulavam “ciúme”. Não, ela não tinha tempo para ciúme.
Inspirou o ar ao seu redor, concentrando-se em pausar três segundos e depois o soltar pela boca, para que a adrenalina em seu corpo abaixasse e ela pudesse manter a postura fria de sempre. Depois disso, caminhou de maneira elegante até Romana, que ergueu os olhos ao ouvir o som seco dos sapatos de Aveta.
— Princesa — disse a mais jovem, fechou o livro e o encaixou na prateleira onde antes se encontrava, ao lado de dez exemplares exatamente iguais.
— Como vai, Romana? — questionou movendo levemente a cabeça para frente e esboçando um sorriso aprazível.
— Bem... Na verdade, não dormi muito bem essa noite. — Romana desviou o olhar para os livros ao seu lado enquanto deslizava os dedos pela camada fina de poeira recém-caída na madeira escura e envernizada.
— Algum motivo em especial? — questionou a princesa.
— Estava pensando em — Romana fez uma grande pausa dramática —, você, princesa Aveta.
— Em mim? — rebateu a mais velha, deixando as suas linhas entre as sobrancelhas mais perceptíveis.
— Em você e em Laerte. É que aconteceu uma coisa, e eu não consigo me concentrar em nada com a culpa me consumindo desse jeito. Aveta — Romana se aproximou e segurou uma das mãos da princesa —, eu sei que não somos próximas, mas eu não quero que pense que eu a quero mal, de forma alguma.
— Não penso, Romana.
— Ainda bem. — A jovem suspirou. — Então eu acho que posso te contar uma coisa.
— Sou toda ouvidos.
— Laerte me beijou — disse Romana sem cerimônias.
Aveta cruzou os braços e permaneceu calada.
— Eu juro que eu não queria, mas aconteceu. Eu não sei se vocês têm alguma coisa além da parceria do jogo. Eu me deixei levar, ele disse que vocês são apenas amigos. Que não se interessava em você.
— Ah, ele disse?
— Perdão. Eu pensei que vocês não tivessem nada.
— Não temos — rebateu Aveta. — É pura e simplesmente cumplicidade de jogo.
— Por favor, não diga a ele que eu disse essas coisas. Eu só acho que nós, mulheres, devemos nos apoiar.
— Sei — disse Aveta.
— Kayo arrumaria um grande problema se soubesse que Laerte jurou me pôr como rainha ao seu lado — falou Romana, contraindo a face e olhando para os lados, em sussurros.
— Ah, é?
— Lógico que foi no calor do momento, e que o jogo não tem a ver com o que nós temos. Mas eu me senti muito mal com isso. — Romana por fim expirou pela boca, fazendo com que seu hálito de enxaguante bucal de morango invadisse as narinas de Aveta.
— Não se preocupe, Romana. Como disse, entre nós o que existe é apenas amizade e parceria dentro da competição — afirmou, mas era perceptível que sua voz não estava convicta do que queria que por ela fosse expresso. — Só tome cuidado, sabe que certas coisas são proibidas. — Aveta deu uma piscadela e, em seguida, dois passos graciosos para trás. — Tenha uma boa tarde, princesa Romana.
— Não esqueça, por favor...
— Claro. É um segredo nosso.
Aveta virou-se sem muitas delongas, puxou um livro da estante ao lado e depois dirigiu-se à saída. Sua cabeça estava uma completa bagunça.
“Talvez o nervosismo de Laerte deva-se a isso” pensou. “Afinal de contas, só um beijo não era motivo de se amedrontar, uma ameaça de me depor do cargo, que a princípio conseguiríamos juntos, sim.”
Ela raciocinava sem parar enquanto andava apressada pelo corredor oeste. Não queria voltar para o quarto ainda, não estava preparada para encontrá-lo. Segurava a barra longa e esvoaçante do vestido com uma das mãos enquanto com o outro braço abraçava o livro. Os panos pareciam um par de bailarinos livres, que dançavam ao redor de seu corpo em harmonia perfeita com os cabelos. Sentia o peso da conversa e também da decepção de confiar em Laerte. Ao tempo em que caminhava a passos largos e ligeiros, não notou que a bagunça interna a levara a desbravar cantos ainda desconhecidos do Castelo das Pedras. Mal reparou que os rostos dali não eram os mais conhecidos, eram pessoas da inteligência real, criados da corte e convidados dos mesmos. A iluminação era diferente e até mesmo os quadros nas paredes davam um ar mais escuro, medonho e aterrador ao local onde andava.
Aveta parou, rolou os olhos por toda extensão do lugar e sussurrou algo que nem ela mesma conseguiu entender, tamanho foi o seu susto. Olhou uma última vez para o fim daquele corredo, que se findava dando origem a dois outros, estes seguiam para direita e para esquerda. Um vaso compunha o breu macabro daquela imagem digna de uma pintura barroca; depois girou o tronco, olhando para o chão na intenção de voltar para o corredor dos quartos, mas seu corpo decidido foi interrompido por um baque súbito que lhe custou um momento de desequilíbrio. Por sorte não foi ao chão, na verdade, pelo amparo do corpo à sua frente.
— Ho-homero — disse ela. Não costumava gaguejar, mas foi um reflexo.
— Sabe que não deveria estar aqui, não sabe? — ele perguntou.
— Sim, eu me perdi. Peço perdão pelo meu equívoco, já estou voltando para o...
— Espere, princesa. — Homero segurou em seu braço sem exercer muita força, apenas o bastante para que ela não pudesse sair de sua presença.
A princesa deu um passo atrás e engoliu em seco.
— Não quer tomar um chá? — perguntou ele com um tom de voz grave que causaria arrepios até no mais cético dos seres humanos, em contraste com a luminosidade baixa e o frio que parecia ser mais rígido naquela parte do castelo.
Aveta sentiu o ar deixar o seu pulmão de maneira descoordenada, em pequenos cortes de ar quase imperceptíveis.
— Eu agradeço, mas acho que as outras princesas não achariam justo que eu tivesse uma conversa em particular contigo.
— Está vendo alguma delas por aqui? — ele rebateu e olhou para os lados.
Aveta balançou a cabeça em negação.
— Então, queira me acompanhar, por favor.
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