|Capítulo 1 - Entre Capas E Arabescos|
Talvez você tenha ouvido falar sobre princesas, reis, rainhas, e como eles chegaram ao trono. Talvez você tenha lido inúmeros livros sobre essa temática, e eu entendo as suas ressalvas sobre o assunto. Talvez você queira parar por aqui, imaginando que é só mais um clichê sobre a realeza, mas a história deve ser contada como ela aconteceu, e como a morte dos reis de Salazar Dellonio foi o estopim para um jogo perigoso.
Em um lugar onde a monarquia ainda era o sistema político principal, dois reinos entraram em guerra. Houve morte, destruição, e a maior perda da realeza concretizou-se à notícia de que os três filhos de Gérard, o rei, e de Yanna, a rainha, estavam mortos. Foram pegos em uma emboscada quando a guerra já estava a ponto de se findar. Salazar Dellonio venceu os inimigos e os expurgou de suas terras, todavia o estrago maior estava feito.
Eles sabiam que não havia tempo de mais uma gestação, Yanna já estava em idade avançada, não suportaria a gravidez. Eles precisavam reedificar o reino com o tempo que ainda lhes sobrava. Foi então que, depois de uma reunião com a corte, duques, viscondes e o conselheiro principal, Homero — que na época tinha apenas vinte anos — decidiram impor uma disputa.
Foi decretado que trinta jovens plebeus fossem nomeados príncipes e princesas, lhes seriam oferecidas aulas de etiqueta e comportamento, individualmente, e quando os reis de Salazar Dellonio por fim viessem a óbito, os trinta jovens que se dispuseram ao jogo seriam levados ao castelo e submetidos às provas reais.
Vinte anos se passaram desde a decisão.
Aos cento e dois anos, o rei Gérard faleceu enquanto dormia, sua esposa não suportou a tristeza de perdê-lo e a solidão, e também morreu.
Os jovens foram convocados, aceitaram os termos e se preparam para o dia, o grande momento em que teriam a chance de passar de príncipes e princesas, a rei e rainha de Salazar Dellonio.
As bandeiras hasteadas sacudiam contra o vento, que, naquele dia em especial, decidira tomar o espaço com demasiada força. O céu estava encoberto por nuvens densas que mais pareciam um alerta de fúria de uma força superior. Olhando para o alto, da sacada do quarto principal, Homero praguejava a tudo e a todos, inclusive a si mesmo por ter escolhido tal dia para a chegada dos jogadores. Toda a imagem do Sol refletindo os cabelos das princesas e as coroas provisórias dos príncipes foi esmagada pela realidade de capas pretas sobre os vestidos longos e guarda-chuvas protegendo os penteados presos com muito laquê. Bom, era melhor que um bando de jovens ensopados feito patos depois da chuva. Isso ele jamais admitiria.
Os Cadillacs do reino chegavam em sincronia, a distância entre eles era tão perfeita e simétrica que quase parecia irreal. A mesma velocidade, o mesmo som. Havia quinze ao todo, cada um deles carregava dois dos nobres nomeados pela corte. Eram exatos vinte segundos cronometrados para que príncipes e princesas deixassem os automóveis e adentrassem o castelo. A cena confundir-se-ia com um funeral, se vista por alguém que não estivesse a par daquele evento, mas todos sabiam.
A balbúrdia na entrada perpetuou-se por alguns longos minutos e se estendeu até a antessala número um, onde as capas das princesas eram removidas às pressas e jogadas sobre uma espécie de carrinho.
— Psiu — uma das moças chamou a concorrente ao seu lado e apontou para o vestido, estava quase sendo molhado por uma das capas que pendia para fora do receptáculo de aço.
— Obrigada — respondeu a dona da vestimenta e deu um sorriso sugestivo. — Prazer — Estendeu a mão —, Alessa.
— O prazer é todo meu. Sou Catarin. — Correspondeu o olhar de cumplicidade.
Os rapazes esperavam na antessala número dois, não foi permitido que vissem as suas futuras pretendentes antes do cerimonial. Do lado deles, o clima parecia mais amigável, pelo menos os olhares não eram invejosos. Havia curiosidade sobre as particularidades uns dos outros, mas a cordialidade mantinha-se intacta. Mal falavam uma palavra. Puseram-se na fila indicada, fazendo com que parecessem uma carreira de dominós, com seus smokings de diferentes cores e tecidos.
Os olhos acinzentados do terceiro vagavam pelo local como duas pérolas perdidas. Ele mantinha os braços para trás e imaginava quanto tempo não haveriam gastado na pintura de todos aqueles anjos e trombetas no teto arqueado. Outro pensamento que permeava sua mente era o de como ele faria diferente se subisse ao trono, se fosse o vencedor da disputa. Decerto que manteria os anjos, eram aprazíveis aos olhos, mas o dourado que os circundava o incomodava. Talvez a futura esposa e rainha de Salazar Dellonio gostasse dos arabescos dourados, mas óbvio que não seria um problema, não para ele. Sabia que, de alguma forma, a convenceria de mudar a decoração, afinal de contas, ele era mestre em convencer as pessoas.
Na antessala oposta, a formação de alianças entre as mulheres continuava. Algumas até mesmo já pontuavam as vestimentas das outras por cor, tecido e modelo. As risadinhas contidas mostravam o quanto eram fúteis grande parte das moças ali presentes.
A outra parcela estava deslumbrada, moças completamente perdidas em cada vaso e em cada flor depositada de maneira delicada nos cantos. Não eram pessoas ruins. Eram as que tinham mais sonhos e o coração mais puro com relação a tudo aquilo. Quatro delas eram de uma mesma família, primas, para ter exatidão. Estavam tão felizes com tudo aquilo que esqueceram-se de que era uma disputa e que, mais hora menos hora, teriam de abdicar dos laços fraternais e escolher entre o trono e a amizade. Contudo, tamanho era o encantamento que elas só conseguiam se imaginar caminhando pelos corredores do castelo, falando sobre como fora o dia e planejando a aventura do que viria.
— Eu não quero ficar longe de vocês. Espero que estejamos em quartos próximos — disse Kaya, a prima mais nova da família Kouris.
— Vou cruzar os dedos para que fiquemos juntas o máximo que pudermos — respondeu Giulia, a mais velha das primas, e as outras duas concordaram, mas estavam concentradas em outra coisa: a última concorrente que acabara de entrar.
Assim que retirou a capa que a protegia da tempestade, a moça umedeceu os lábios e respirou fundo. Pôs as mãos para trás, por coincidência da mesma forma que fizera o rapaz no cômodo ao lado daquele.
— Detesto estes arabescos — murmurou olhando para o teto.
Não quis conversar com nenhuma das outras, ergueu o queixo, deixando mais à mostra o colo, e deu alguns passos em direção ao espaço mais vazio da sala.
— Faça-me o favor, quem escolheria um vestido daquele para a primeira prova? — sussurrou Catarin para Alessa, revirando os olhos em seguida.
As moças reparavam no decote sutil que se perdia no tecido quase da mesma cor da pele da jovem, um tom moreno claro, como um amendoim descascado, mas que combinava perfeitamente com os cabelos longos e escuros, encaracolados em sua extremidade. A vestimenta, em contraponto de todas as outras, não continha dezenas de anáguas e não era composta por um espartilho desconfortável. Era um tecido leve como um tule, que desabava em suas coxas grossas à mostra pelas duas fendas generosas que iam e vinham conforme seu andar. As mangas longas desenhavam seus braços, aparentes pelo transparente mais intenso do pano naquela parte, e os pulsos completamente cobertos por uma amarradura firme finalizavam a obra prima. Sua cintura demarcada deixava seus quadris em evidência, mas não mais que os olhos únicos da moça que se confundiam entre castanho e um quase dourado.
— Aposto que o que tem de beleza não tem de cérebro. Óbvio que uma oferecida dessa laia acredita que vai conseguir vencer pelo tanto de carne que mostra — replicou Alessa.
Era nítida a inveja que sentia, já que o vestido, apesar de ousado, cobria grande parte do corpo da jovem.
— Atenção, princesas de Salazar!
A maioria das moças afoitas sentiu o coração palpitar apressado no peito ao ouvir a voz de Homero, o conselheiro real, ressoar pelo cômodo depois de a porta ser aberta. Elas brigavam para ficar em evidência, onde os olhos do homem de cabelos cor de mel pudessem enxergá-las com perfeição.
— Formem uma fila, se possível, prezando pela altura. As menores à frente, e as mais altas atrás.
Kaya olhou para as primas e contorceu a boca em tristeza, ela era a mais baixa das quatro, foi a primeira da fila, enquanto as demais espalharam-se ao longo da linha reta. Catarin e Alessa, da mesma altura, puderam desfrutar da companhia uma da outra mais um pouco.
A jovem misteriosa de simpatia escassa observou todas elas se estranharem por lugares melhores e depois de todas estarem em fila, procurou o lugar onde melhor se encaixava e se colocou nele, educadamente. Era exatamente o meio, o que fazia com que sua silhueta se perdesse entre as imensas camadas dos vestidos das moças de trás e também da frente.
— Escutem com atenção. A corte está reunida no salão de baile, é para lá que serão redirecionadas. Uma vez lá dentro, ficarão na parte superior, ao lado direito dos tronos. O lado esquerdo será ocupado pelos príncipes. Sejam cordiais.
Os dois auxiliares de Homero abriram os dois lados da porta enorme, e um corredor gigante se revelou atrás deles.
Algumas estavam estupefatas e boquiabertas, outras sentiam vontade de chorar, apenas uma delas não esboçou comoção. A moça manteve aquela mesma postura durante todo o caminhar.
As quinze princesas prestaram reverência e foram reverenciadas pela corte. Depois subiram os degraus e colocaram-se lado a lado, à direita dos tronos dourados.
Homero repetiu o discurso aos príncipes, que fizeram o mesmo caminho pelo corredor. O segundo da fila, príncipe John, fora também o mais cobiçado assim que entrara no recinto. Sua pele negra contrastava com o smoking azulado, era como se houvessem sido pintados pela mão de Deus, um para o outro. Os olhos caramelados tinham um brilho diferente, era como se pudessem hipnotizar. A sua postura na hora da reverência fê-lo parecer um rei, mesmo antes da primeira prova, e é de se imaginar que as moças começaram a bolar planos de conquista infalíveis.
Atrás dele, vinha sorrateiro o defensor da retirada dos arabescos de decoração. Tinha a mesma postura invejável do anterior, mas não era simpático como ele. Era misterioso e um tanto prepotente em suas expressões corporais.
— Fez sucesso com as moças, John — comentou, em murmúrio, o rapaz de olhos acinzentados, enquanto se ajeitavam lado a lado.
— Digo o mesmo, meu amigo — respondeu, os dois eram velhos conhecidos de fora do castelo.
— Eis aqui os candidatos ao trono. O jogo da realeza, como tivemos a honra de nomear, começa agora! — bradou Homero, do meio do salão.
A corte bateu palmas, e alguns convidados de outros reinos os seguiram.
— Antes de começarmos a primeira prova das muitas que os levarão ao trono, terão alguns minutos para se deliciarem com o banquete. Sejam bem-vindos, meus nobres! — Homero abriu os braços e recebeu a salva de palmas de todos os presentes. Inclusive dos príncipes e princesas.
A formação inicial se desfez e a orquestra real pôs-se a tocar uma música calma. As primas tornaram a andar lado a lado, os príncipes se cumprimentavam com apertos de mãos e tapas nas costas, alguns deles até mesmo já queriam começar o entrosamento com as damas, como o grande desejado da festa.
Os olhos de algumas das moças acompanharam o percurso que John fizera até o grupo de quatro princesas.
— Com licença, senhoritas — disse ele às damas da família Kouris. — Me permitem retirar essa linda jovem para uma dança — completou, estendendo a mão para Kaya.
— E-eu? — retorquiu desacreditada.
— Ora, quem mais seria? — Ele sorriu.
— Vai logo — murmurou Giulia entre os dentes.
Kaya segurou firme a mão de John e ele a guiou até o centro do festejo, onde mais casais alegres rodopiavam em sincronia. Alguns se arriscavam em coreografias ousadas para impressionar a corte, outros apenas aproveitavam o tempo para conhecer o par com quem estabeleceram um contato momentâneo.
No canto do salão, perto de um vaso de tulipas, a jovem misteriosa e inflexível, antes mencionada, olhava para as pilastras enquanto seus lábios eram molhados de tempos em tempos pelo líquido escuro que repousava na taça de cristal. Não fora tirada para a dança, e também não desejou ser. Sua feição não era convidativa o bastante, deixara alguns rapazes com medo da humilhação.
— São terríveis, não é mesmo? — a voz masculina questionou antes de colocar-se ao seu lado, com os braços para trás.
— Como? — respondeu, encarando-o por um segundo.
— Os arabescos — disse ele.
Ela ficou impressionada pela semelhança de pensamentos, foi o bastante para que se interessasse em sua companhia, já que ainda não prestara atenção em seus traços físicos.
— Ah, sim. Claro. Me dão calafrios. — Bebericou um gole do vinho e continuou: — As moças gostaram da sua pessoa, você e John são os favoritos. — Ela não volvia o olhar a ele, continuava encarando as pinturas da pilastra.
— John é um galante, já está no meio do salão, desfrutando de sua popularidade.
— Coisa que parece que você não quer — ela replicou.
— Prefiro observar de fora. E se não estou equivocado, a senhorita também. Ou não se enturmou com as princesas?
— São um bando de crianças mimadas e fúteis, infantis e sem conteúdo — redarguiu. — Elas me levariam ao fundo do poço.
Os dois finalmente revolveram os corpos um para o outro, foi o primeiro contato “olhos nos olhos”.
— Já te disseram que você não é lá muito simpática? — ele zombou com um sorriso malicioso no canto dos lábios.
— Já — redarguiu a moça, erguendo as sobrancelhas. — O que me deixa em vantagem, já que um antipático reconhece o outro.
Ele riu.
— Posso ao menos saber o nome de toda essa beleza arrogante que acabo de conhecer?
— Aveta. Mas Senhorita Arrogância serve também.
— A deusa mãe. — Ele achou propício dizer que sabia a origem do nome da princesa. — Boa escolha dos seus pais. Eu sou Laerte.
— Laerte de...?
— Ainda é cedo para falarmos de família, minha cara — defendeu-se.
— Faz sentido, Laerte. — Ela bebeu mais um gole e ofereceu a taça a ele, que recusou com um gesto delicado.
— É muito esperta, princesa Aveta. Seria uma ótima rainha para Salazar — pontuou.
— Com toda certeza, príncipe Laerte. Disso eu não tenho dúvida.
Os dois escrutinaram os corpos um do outro sem pudor, como se fizessem uma análise completa. Não se sentiam desconfortáveis, era um momento de conexão, mas foram interrompidos por uma voz feminina:
— Com licença — disse uma jovem princesa, deveria ter cerca de dezoito anos, e a face angelical lhe denunciava. — Percebi que nenhum dos dois foi ao meio do salão, ainda. Perdoem-me a intromissão, mas eu gostaria de chamá-lo para uma dança comigo, príncipe.
Aveta parou de mover a taça e observou a reação de Laerte. Certamente ficara impressionado com a ousadia da moça. Ele olhou para a princesa que antes era a dona de sua inteira atenção e depois voltou a encarar a que o chamava.
— Tem muita ousadia, princesa...?
— Romana.
— Oh, que nome encantador. Claro que eu aceito. Será uma honra e um prazer — disse ele, deu uma piscadela para Aveta antes de segurar a mão esquerda da princesa mais jovem e levá-la ao centro do salão.
Aveta sentiu a determinação de Laerte, afinal de contas ele percebera o potencial de Romana e presumiu que poderia ser uma ótima aliada.
Ele a deixou ali, mas ela sabia que o homem já estava dentro do jogo, inclusive quando iniciou a conversa dos dois. A princesa permaneceu observando o casal ao longe, as mãos de Laerte estavam firmes na cintura de Romana e as faces muito próximas. Ele sorriu pela primeira vez mostrando todos os seus dentes frontais, e a moça desmanchou-se em seus braços, sendo conduzida pela dança.
A princesa misteriosa soltou um pequeno riso e terminou de beber o vinho que restara na taça. Seria interessante perscrutar os passos dos dois.
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