Capítulo um
Sentia-me perdido entre o medo da morte e a saudade das coisas que tínhamos, mas que foram tiradas do mundo há quase seis anos. Aquele tempo, apesar da correria da vida e das responsabilidades cotidianas, era calmo e feliz. Para mim, as preocupações não iam além das que a maioria dos jovens de treze anos enfrentavam.
Hoje, a lembrança daquele período traz um misto de nostalgia e tristeza, quase como se o passado fosse um refúgio inacessível. Eu passava os dias estudando para conseguir boas notas no último ano escolar, mas isso não adiantou. Mal tive a chance de fazer as provas antes que a vida mudasse drasticamente.
Fomos todos pegos de surpresa, sem poder fazer nada para impedir que aquela maldição começasse. A sensação de impotência ainda ecoa em mim, como um lembrete constante do que perdemos.
Sempre pensei na morte, imaginava como seria: se dolorosa e rápida, e quem estaria ao meu lado quando eu parasse de respirar. Perguntava-me se alguns desafetos estariam presentes em meu funeral. Essa é uma reflexão que muitos já tiveram, pelo menos uma vez na vida.
No entanto, nunca imaginei que passaria cada segundo que me restava com medo do momento da minha morte. Mesmo nos meus sonhos mais férteis, não vislumbrei essa angústia que passou a me acompanhar, especialmente em cada mortal e triste anoitecer. Às vezes, essa sensação era tão intensa que fazia meu corpo estremecer, mesmo nas noites mais tranquilas.
Tornamo-nos reféns de nossos medos, sem prever que isso aconteceria, para buscar um lugar para nos esconder ou nos defender. A ideia de uma morada onde a morte não pudesse nos alcançar, ao menos para mim, parecia um sonho terrivelmente distante.
Se existisse tal lugar, eu me mudaria para lá com o Patrick, sem pensar duas vezes. Ele foi o único que ficou ao meu lado desde que me separei da minha família. Ah, como eu gostaria que isso fosse possível!
A mudança e o medo surgiram de surpresa, passando a assombrar cada pessoa ainda viva, embora houvesse quem afirmasse ter previsto tamanha desgraça mundial. Um novo e desconhecido acontecimento se manifestava, pelo menos naquele final de tarde calmo, que parecia tão comum quanto qualquer outro.
Era exatamente assim que o via, olhando pela janela da sala, antes do sol se pôr e o céu se tingir de um profundo púrpura. Foi nesse momento que as mortes começaram, transformando a tranquilidade em um pesadelo. Presenciar a morte de alguém aos doze anos me traumatizou profundamente.
Eu fiquei tão assustado e tomado pelo medo ao ver todas aquelas pessoas correndo e tentando se esconder, que quase molhei as calças. Meu corpo tremia e meu coração pulsava tão rápido que parecia que ia sair pela boca a qualquer momento.
Assim como meus pais e o resto do mundo, eu estava paralisado, olhando para aquelas luzes vermelhas pela primeira vez. Elas caíam de um céu roxo, atingindo quem quer que estivesse exposto, como se fossem mensageiras de um destino sombrio.
Eu me perguntava o que era aquilo e por que algo tão aterrador estava acontecendo conosco. Principalmente, tentava entender a origem daqueles disparos de cor intensa, que pareciam vir simplesmente do céu. Ou talvez das poucas nuvens que se arrastavam por ele, pois quem ou o que as lançava permanecia completamente invisível aos nossos olhos. O que estava acontecendo? Por que estávamos sendo alvo de algo tão inexplicável?
Quando o sol se pôs naquele dia, há quase seis anos, não deu lugar a uma pintura bonita e estrelada, como todos estavam acostumados a contemplar em cada anoitecer. Em vez disso, o céu se transformou em um espetáculo nunca visto antes, intensamente púrpura e singular. Essa mudança provocou espanto, medo e curiosidade, até mesmo entre os que se consideravam mais destemidos.
Não tive muito tempo para me surpreender com aquela coloração mística e bela, pois logo a morte nos alcançou, revelando o verdadeiro significado daquele acontecimento tão... incomum. O que se comentava era que o mundo estava chegando ao fim, que Deus estava voltando.
Depois da primeira noite de céu roxo, que transformou as ruas em sangrentos cemitérios ao ar livre, o medo da morte se tornou parte integrante de nossas vidas. Principalmente do céu noturno, que passou a ser visto de maneira diferente a partir daquele momento. Ela era implacável e, curiosamente, parecia nos alcançar pelo céu. Mudamos profundamente nossos hábitos diários, até mesmo aqueles que considerávamos indispensáveis.
Descobrimos que a morte nos atingia quando a lua se erguia no céu, pairando de forma invisível e silenciosa. Compreendemos, então, que qualquer um exposto ao céu após o surgimento da lua, seria morto. E aqueles que sobrevivessem, provavelmente ficariam gravemente feridos. Haviam relatos de pessoas que tinham sido feridas superficialmente e sobrevivido ao ataque da morte, mas eram muito raros.
O medo de atrair a morte com qualquer ruído alto transformou as conversas em sussurros baixos e hesitantes. Mesmo durante o dia, quando a ameaça não era visível, a cautela imperava. Os sussurros, muitas vezes carregados de tristeza, acompanhavam os lamentos pelas perdas frequentes de entes queridos e amigos. Comecei a me questionar se essa prática constante de sussurrar era um reflexo do medo, ou se as pessoas acabaram se acostumando a se comunicar dessa forma.
A macarronada turquesa, minha favorita desde a primeira vez que provei, era uma recompensa deliciosa pelas cinco ou seis horas diárias de trabalho na fábrica de tecidos. Estava numa lanchonete perto do centro de Allensburg, um lugar tranquilo, segundo o Patrick, mesmo antes do mundo virar de cabeça para baixo. Falava baixo e tentava ficar sempre atento, para não incomodar ninguém. Enquanto saboreava a macarronada, me perguntava se conseguiríamos chegar na casa a tempo, antes da lua surgir e trazer a morte consigo.
Desejava seguir os passos do meu pai, aprendendo com ele o ofício que ele dominava desde os quatorze anos. Esperava que ele me guiasse, me ajudasse a trilhar o mesmo caminho. Mas um imprevisto cruel interrompeu meus planos. Sonhava com um carro bonito, roupas caras, uma vida como a dos outros jovens. Sonhava também em encontrar uma garota que me visse com bons olhos, que não me achasse repugnante, como diziam na escola. A guerra, porém, me mostrou que todos os sonhos que temos e realizamos são, na verdade, privilégios concedidos a poucos. Vi muitas pessoas morrerem, levando consigo sonhos inacabados. E, isso me ensinou que a vida é frágil, e que os planos que fazemos podem ser interrompidos em um breve instante.
Quando a segunda guerra começou, foi nomeado desse modo o período de céu púrpura que estávamos vivendo, todos os que eram capazes de trabalhar tinham que ajudar na manutenção e melhoria de suas cidades. Não para ganhar dinheiro, como antes, mas para receber apoio da comunidade.
Em troca do trabalho, as pessoas recebiam roupas para cada estação do ano, educação básica para seus filhos, comida e algumas horas de eletricidade por semana. A segurança, ainda que limitada, também era um benefício. Era uma regra simples: quem não trabalhasse não receberia nada, nem mesmo um biscoito para comer.
A maioria das tarefas era designada pela idade, não pela formação. Foi assim comigo, com o Patrick e com quase todos que conhecia. Aos treze anos, era franzino, e o trabalho físico era difícil. Mas me adaptei rápido, carregando sacos de roupas e mantimentos para os caminhões da fábrica. Com o tempo, a tarefa se tornou quase indolor ao corpo.
Na maioria das manhãs, exceto aos domingos, eu carregava os caminhões que abasteciam Allensburg e adjacências com mantimentos básicos. Às vezes, também ajudava a etiquetar e separar peças de roupa na esteira. Não era um trabalho agradável, mas me acostumei e o fazia por necessidade.
Eu sabia que não faria aquilo por muito mais tempo, pois logo teria idade para outro trabalho. Aos dezenove, não teria uma promoção ou aumento salarial, como as pessoas desejavam antes da guerra. Mas estava prestes a conseguir algo que realmente desejava: passar mais tempo com o Patrick. Havia sido forçado a esquecer os meus sonhos de antes. Não trabalharia como meu pai, nem teria o carro do ano, mas estaria mais perto dele por mais tempo.
As luzes das velas, embora necessárias para iluminar a lanchonete no fim da tarde, criavam um ar sombrio. Os sussurros dos clientes, rápidos e quase ininterruptos, traziam uma sutil dose de medo. Eles confundiam meus pensamentos em alguns momentos, pois se assemelhavam com a voz que vem de dentro.
Eu tentava ler os lábios do homem à minha frente, que sussurrava palavras enquanto segurava o cabo de uma colher dourada, repousada em sua xícara. Ele nunca a largava. Esforçava-me para ignorar os olhares que ele recebia, tanto pelo objeto brilhante quanto por sua aparência. Ainda não tinha me acostumado com isso, mesmo após quase cinco anos de convivência diária. Talvez só não conseguisse, por não gostar muito da atenção que ele recebia, devido a um ciúme contido e secreto.
O trabalho que ele exercia antes do mundo mudar o isolou do convívio social, tornando-o um tanto introvertido e sem amigos. Mas sua proximidade com os três governantes de Allensburg o tornou conhecido no estado e em outros cantos do mundo. Provavelmente, o detalhe que mais despertava a curiosidade das pessoas era o cargo que ele ocupava, além dos oito relógios que usava nos pulsos: cinco no esquerdo e três no direito.
Eu sempre senti ciúmes da atenção que ele recebia, mesmo sabendo dos motivos disso acontecer. Temia perdê-lo e ficar sozinho outra vez. A nossa amizade era estranha para os outros, e eu tinha receio de que ele se afastasse por causa disso. Nenhum dos funcionários do governo que havia tido contato com os governantes mantinha relações com outras pessoas. Diziam que era proibido. Eles viviam sozinhos, dedicados ao trabalho. Todos sabiam disso, inclusive Patrick. O que me fazia ter questionamentos, vez ou outra, sobre o motivo de ele ter se aproximado de mim.
Patrick tinha o sorriso mais bonito que já vi, capaz de me fazer esquecer, por alguns segundos, que o mundo que conhecíamos havia sido extinto. Eu gostava de vê-lo sorrir, mas ele raramente o fazia. Andava quase sempre de cara fechada, como quem estava de mau humor ou pensando no fim do mundo. Cabelos finos, castanho claro com alguns fios brancos, cortados com as laterais mais baixas e o topo um pouco maior. Pele clara, sobrancelhas grossas e olhos castanhos escuros. Seus lábios eram bem desenhados e levemente avermelhados, quase me hipnotizavam, de um jeito bom e agradável, não como acontecia com aqueles que éramos ensinados a nunca olhar diretamente.
Entre uma garfada e outra dos longos fios de macarrão, que brilhavam em um tom azul turquesa quase mágico, eu olhava ao redor, com receio de estar incomodando alguém. Após cinco anos de céu púrpura, as pessoas pareciam mais rudes e cruéis. Eram o oposto do que costumavam ser: gentis e compreensivas.
Algumas pessoas começaram a se levantar das mesas, outras apressaram os movimentos com os talheres. Eu sabia o que isso significava: eram quase seis da tarde. A qualquer momento, a lua poderia surgir, trazendo a morte e o céu púrpura. Em tal momento, tínhamos que interromper tudo e nos dirigir ao único lugar seguro que conhecíamos, apenas aqueles que, é claro, ainda desejavam ver o sol nascer.
Não era comum, mas às vezes ouvíamos falar de pessoas que desistiam de lutar e decidiam contemplar a beleza mortal do céu púrpura. Talvez fizessem isso por causa da pressão da guerra ou da solidão causada pelas perdas. Numa guerra, razões para o suicídio não faltam.
A casa foi erguida em poucos meses, logo após a primeira noite de céu púrpura. Todos os habitantes se uniram, sob as ordens dos governantes, para construí-la. Era uma construção grandiosa, capaz de abrigar todos que buscavam proteção durante a noite. Chamavam-na assim, apesar de não ter o conforto das casas que conhecíamos desde a infância.
Eu não ajudei na construção desta, pois cheguei quando ela já estava pronta. Mas participei da construção da casa que ficava em minha cidade, ao lado dos meus pais e de todos que conhecia. Passei algumas noites lá, na época em que ainda éramos uma família unida.
A lanchonete esvaziava enquanto eu devorava o macarrão, agora praticamente sem saborear muito. O medo de passar a noite fora da casa me consumia. Era um risco que qualquer um corria se chegasse lá depois das seis. Ninguém podia entrar ou sair da casa após esse horário, só com o nascer do sol. Observava Patrick, sereno, tomando seu café, como se a morte não lhe causasse temor. Talvez realmente não causasse.
Eu não sabia ao certo quanto tempo faltava para o sol se pôr, mas sabia que era pouco. Se não chegasse na casa antes das seis, minhas chances de sobreviver seriam mínimas. O medo me paralisava, mas tentava disfarçar, interagindo normalmente. A única coisa que me tranquilizava, ainda que minimamente, era a certeza de que, ao lado de Patrick, não perderia a hora de iniciar a jornada. Pelo menos, era nisso que eu acreditava.
O olhar de Patrick era fixo e distante, como o de quando pensava em algo importante, geralmente sobre a morte. Ele tentava entender o motivo da morte nos assombrar todas as noites. Anotando ideias e palpites num velho caderno, ele acreditava que poderia fazer o mundo voltar a ser como antes, com um céu azul e estrelado após o pôr do sol. Esperava, é claro, ter a ajuda dos governantes para isso.
Ele foi dispensado do serviço após o caos que se instalou no mundo. Seu jeito era diferente, sempre sério, quase irritado quando se referia a Tiny, um dos governantes. Trabalhava na segurança de Allensburg, tentando evitar óbitos. Sonhava em voltar à sua antiga tarefa, o que só aconteceria com o fim da segunda guerra. Por isso, coletava informações sobre a guerra, buscando uma solução para o caos. Talvez descobrir a origem da morte fosse a chave para resolver o problema.
Senti um arrepio sutil percorrer meu corpo quando um dos atendentes se aproximou, curvando-se para observar a chama da vela na mesa, segundos antes de assoprá-la. O escuro se intensificou, acentuando meu medo. Ele vestia uma calça de couro brilhante, tão justa que acentuava cada contorno de seu corpo, tornando a cena ainda mais intrigante e inquietante. Era alto e forte, seu peitoral bem definido estava à mostra, uma presença que não passava despercebida e que parecia dominar o ambiente ao nosso redor.
O brilho azul do prato se apagou com o fim do jantar, intensificando meu medo. A única luz agora vinha da xícara que Patrick segurava na mão esquerda, verde e brilhosa, levando-a aos lábios de vez em quando para saborear o café. Ele dizia que aquela bebida relaxava a mente e facilitava o fluxo de pensamentos.
— Você está com medo de morrer essa noite? — Perguntei, quase sussurrando. — Hoje... estou com mais medo do que nas outras noites. Patrick, acho que algo ruim vai acontecer com a gente. — Olhei para o único amigo que ficou ao meu lado, sentindo o peito apertar.
Preferia estar fora da casa quando a morte chegasse do que perder Patrick. Essa ideia me acompanhava desde o dia em que ele me convidou para morar com ele, percebendo minha solidão e meu medo. No início, pensei que era apenas por admiração e gratidão... Mas, à medida que fomos cultivando uma convivência calma e pacífica, meus sentimentos transbordaram, ultrapassando os limites da amizade. Nunca vou esquecer o dia em que perdi minha família, o medo que senti e a sensação de proteção que me envolveu quando Patrick me abraçou, mesmo que nunca tenhamos falado sobre isso.
A espera pela resposta dele me deixava inquieto. As mãos tremiam, escondidas no bolso da blusa azul que peguei no guarda-roupa dele pela manhã. Era um tic que tentava disfarçar, para não parecer medroso e indefeso. Principalmente na frente do Patrick. Não queria que ele me visse assim, como um menino frágil e sozinho. Afinal, eu tinha me tornado um homem, ainda que em meio a guerra. E já não era mais aquele garoto solitário e franzino que ele protegia.
— Ora Tom, todos estão com medo. É claro que sim. — Patrick disse calmamente, como quem já se acostumou com tal sentimento.
Ele deixou a xícara na mesa e puxou a manga do casaco preto, revelando três relógios estranhos. No primeiro, o ponteiro girava ao contrário. No segundo, não havia números, e o ponteiro corria apressado. No terceiro, os números pareciam de outro planeta.
— Acho que não devemos nos preocupar tanto com isso agora. — ele sorriu, cobrindo os relógios novamente. — Que tal comer mais um pouco? Sei que adora a macarronada turquesa daqui.
O sorriso de Patrick era bonito, mas também enigmático.
— E como não se preocupar? — questionei, incomodado. — Do jeito que fala, parece fácil ignorar o fato de que a morte vai chegar daqui a pouco. E aí, passar no mínimo doze horas tentando nos matar.
— Já disse que você é jovem demais para pensar tanto na morte. — ele respondeu, com um olhar sereno, antes de levar a xícara aos lábios.
A calma dele me irritava e intrigava um pouco. Como ele conseguia ser tão sereno, mesmo tendo perdido pessoas importantes? Ele me contou que seus pais morreram antes da primeira noite de... mortes, e foram deixados no cemitério dos tristes.
Ele desviou o olhar e tomou outro gole de café, observando o sol se pôr. A expressão séria em seu rosto era como a de quem lamentava as mudanças que ocorreram no mundo e nas pessoas. Eu também sentia essa tristeza, mas tentava evitá-la, para não me desesperar e acabar tomando uma decisão imprudente.
— Você não precisa me poupar de pensar na morte ou evitar falar sobre ela, porque já não sou mais uma criança. Pensar na morte e no fim do mundo foi o que me manteve vivo até aqui. — eu disse, de forma inesperada.
— Sim, sei que você não é mais um garotinho e que a morte já vai chegar. Foi por isso que eu disse aquilo: você deve aproveitar ao máximo cada segundo que ainda tem, cada jantar e cada amanhecer. — Ele falou, colocando a xícara de volta na mesa, com os olhos fixos em mim. — Eu gostava mais de você quando era pequeno, e mais... feliz. Sabe, naquela época você não questionava tanto.
Patrick sorriu novamente, desta vez de forma mais leve e bonita, e eu não pude deixar de sorrir também. Fiquei observando-o por alguns segundos, apreciando aquele gesto bonito que me trazia um pouco de felicidade e tranquilidade.
— Hum... — murmurei, assentindo sutilmente, apenas para não me render completamente, mesmo ciente de que ele poderia estar certo.
— Você terá mais chances de ser feliz no pouco tempo que lhe resta se não se preocupar com nada. Esqueça o tempo e a morte; eles não se importam com você, comigo ou com o resto do mundo.
Como poderia pedir isso alguém que está sempre olhando para os relógios que carrega consigo? Pensei nisso por um tempo, mas logo deixei pra lá.
— Tudo bem, eu entendi. — eu disse, acreditando que ele tinha um ponto. — Então... vou querer mais uma porção de macarronada.
— Isso! — ele respondeu, aparentando estar satisfeito por ter me convencido.
Patrick desviou o olhar e levantou sutilmente o braço esquerdo, chamando a atenção de uma das atendentes. Quando ela se aproximou, pediu outra dose de café e uma porção de macarronada, mantendo o olhar fixo em seu colo. Geralmente, evitávamos olhar na direção de tais seres, cientes do risco que isso trazia.
Observei Patrick, incomodado com a atenção que ele dava ao decote da atendente. Um simples descuido e um olhar direto trocado com ela poderia levá-lo ao lugar onde os pais dele estavam. Isso me deixava inquieto e com um toque de ciúmes.
O desconforto com o olhar indiscreto de Patrick me fez pensar em chamar sua atenção, mas desisti ao ter uma ideia melhor. Pisei suavemente em seu pé por baixo da mesa, e ele imediatamente se virou para mim, com as sobrancelhas juntas e a testa franzida, tentando entender o que eu havia feito. Confesso que achei a cena engraçada.
Não me culpei, embora soubesse que o golpe havia sido mais forte do que eu planejava. Parecia abusado da minha parte, mas era para o bem dele. Eu não queria que ninguém o afastasse de mim, especialmente uma criatura que não era humana e que poderia matá-lo com seu 'encanto'.
A garçonete vestia um vestido preto brilhante, justo e com um decote profundo. Ela era alta, tinha pernas longas, quadris largos e cintura fina como a de uma ampulheta, e seus cabelos ruivos e lisos chegavam até os ombros. Os lábios vermelhos e a maquiagem marcante nos olhos a tornavam ainda mais impressionante. Ela parecia pronta para impressionar qualquer um, usando sua sensualidade a seu favor, como era comum entre tais seres.
Ela esticou o braço para pegar a xícara na mesa, levantando o vestido com a outra mão para posicioná-la entre as pernas de forma sutil. Era uma ação natural para ela, como para muitos de seu povo, que aquela altura dominavam a gastronomia. Antigamente, os humanos colhiam e preparavam sua comida, mas essa prática foi esquecida pela maioria de nós.
Sempre acreditei que o governante Tiny fosse o responsável por apagar partes da história da humanidade. Não de forma manual, alterando cada livro de história com mágica, mas sim dando ordens para que isso fosse feito gradualmente, até que, pouco a pouco, só restasse o que era de seu interesse. Comecei a pensar assim muito antes da segunda guerra, ao perceber que a maioria das pessoas sequer sabiam que ser um chef e aprender a cozinhar não era uma habilidade exclusiva de alguns seres. Patrick, por sua vez, achava que tudo isso era impossível, pois sempre acreditou que o governante não seria capaz de algo tão audacioso.
Com o início da guerra, as fadas foram designadas para atender todos os habitantes que passassem por seus estabelecimentos, sob a liderança de Tiny, escolhido para representá-las no governo. Diferente dos humanos, que se dedicavam a diversos tipos de trabalho para manter tudo funcionando, elas se concentravam apenas na gastronomia. O que, a maioria via como justo, já que elas tinham uma espécie de talento natural para tal arte.
Pude perceber uma discreta luz verde emanando debaixo do vestido dela, apenas pelo canto dos olhos, enquanto minha atenção estava fixada no rapaz à minha frente. Foi impossível não notar o olhar de Patrick, que se dirigia à atendente, especialmente para a fonte de brilho que parecia irradiar dela. Quando ela voltou a xícara para a mesa, agora repleta de café novamente, um misto de ciúmes e receio me invadiu, provocado pela atitude indiscreta dele.
Ela pegou meu prato e o levou até o balcão, do outro lado da lanchonete, e logo voltou com ele repleto de uma deliciosa macarronada safira, que só de olhar já dava água na boca. No entanto, isso não conseguia apagar a forma como Patrick a observava. Ele estava agindo como se não tivesse aprendido a evitar tais criaturas, assim como o resto do mundo. Todos costumavam olhar para baixo na presença das fadas, buscando evitar o contato visual direto com as mesmas.
— Agradecemos a preferência e desejamos que tenham bom amanhã. — ela disse em um tom baixo e apressado, quase como se estivesse irritada com algo, antes de se virar e começar a se afastar.
— Obrigado. Tenha um bom amanhã. — respondi, aliviado por ela ter se virado, o que me livrava de qualquer risco.
Enquanto saboreava a macarronada safira mais uma vez, tão deliciosa que parecia ter sido abençoada por um anjo, o receio de perdê-lo continuava a assombrar minha mente. O ciúme também se fazia presente, confesso. Não gostava muito do seu jeito retraído e mal-humorado, pois sabia que isso indicava a tristeza sentida, resultado dos acontecimentos recentes, que o afetavam tanto quanto a mim. Mesmo que ele sempre negasse esse sentimento quando eu o questionava, era difícil ignorar a dor que transparecia em seu olhar.
Eu temia que, em algum momento, ele decidisse parar de lutar pela sobrevivência e se entregasse a um daqueles seres. Se isso acontecesse, não seria um caso isolado. O cemitério dos tristes nunca esteve tão cheio; o início da segunda guerra aumentou drasticamente o número de almas vagando por lá. Isso me deu coragem para tirar essa ideia da cabeça e perguntar de uma vez:
— Você tem pensado muito na morte ultimamente? — perguntei, buscando entender a tristeza que parecia crescer nele a cada dia.
Às vezes, me perguntava se aquilo era realmente viver.
Patrick não respondeu de imediato. Ele apenas manteve o olhar fixo em mim, como se estivesse refletindo sobre a pergunta.
— Apenas o suficiente — ele respondeu, quase em um sussurro, antes de soltar um suspiro profundo e desviar o olhar, como se quisesse fugir de algo que o incomodava.
Naquele momento, percebi a verdade: Patrick começara a pensar bastante na morte, pois havia ficado triste demais com o que a vida se tornara. Não me refiro à ameaça invisível que chegava com a noite, mas à própria morte. Isso fez meu coração pulsar de forma dolorosa, como se fosse parar a qualquer instante. Já tinha um certo tempo que eu sabia que estava apaixonado por ele.
— Hum — murmurei, tentando não deixar transparecer que sabia que ele estava mentindo.
— Não gosto quando você me olha assim — ele disse.
— Assim como?
Suspirei e sorri de forma tímida, apenas para não parecer zangado ou triste. Já fazia tempo que meu maior medo se tornara perder outra pessoa que amava.
— Como se quisesse dizer que estou errado, apesar de não fazer. — ele explicou em tom de sussurro. — Seu desconforto é evidente.
Patrick negou sutilmente com a cabeça enquanto sorria, como se achasse aquilo engraçado, mesmo sem gostar muito.
— Às vezes, isso me faz lembrar do meu pai.
— Então, talvez isso não seja tão ruim — eu disse, sentindo-me um pouco satisfeito. — Você definitivamente não tem talento para mentir, mesmo quando tenta.
Aquele assunto ficou pairando pela minha mente, e confesso que me sentia um pouco irritado com isso. A ideia de que Patrick pudesse estar pensando em suicídio fazia meu coração doer, pois ele era uma das pessoas que eu mais amava no mundo.
— Eu nunca menti para você — ele disse, parecendo um tanto ofendido. — Pelo menos, até este momento.
— Bem, espero que continue assim.
Ele arqueou uma das sobrancelhas por um instante.
— Eu espero o mesmo de você. — Patrick disse inesperadamente.
Fiquei surpreso com suas palavras, talvez até mais do que com a expressão séria que ele exibia. Às vezes, era difícil para mim discernir o que ele realmente sentia; não sabia se estava zangado ou triste, já que vivia de cara fechada. Apesar disso, confesso que achava esse detalhe um tanto sexy e... atraente.
Eu não podia mentir para o Patrick, pois éramos uma equipe tentando sobreviver ao fim do mundo. Na verdade, eu não queria enganá-lo, pois ele me despertava sentimentos bons e intensos, que faziam meu corpo arrepiar e me excitavam. Isso aconteceu novamente naquela tarde, enquanto comia macarronada e o observava, admirando seus lábios bonitos.
Olhando para os raios de sol que iluminavam a esquina do outro lado da rua, era evidente que o número de pessoas havia aumentado consideravelmente. Elas caminhavam na mesma direção, algumas apressadas, outras mais tranquilas, em direção à casa. Essa cena se tornara comum nos finais de tarde no fim do mundo, mas ainda assim carregava um ar sombrio. Algumas pessoas passavam tão rápido diante do vidro da lanchonete que pareciam borrões escuros na fraca luz do horário.
Patrick retirou a colher do bolso do casaco, mergulhou-a na xícara sobre a mesa e mexeu algumas vezes. Ela era dourada, adornada com desenhos em relevo no cabo, a ponto de eu jurar que brilhava mais do que alguns tipos de ouro.
— Toda vez que você usa essa colher, as fadas o observam como se estivessem prestes a pular em você — sussurrei, receoso de que elas pudessem ouvir. — Isso parece deixá-las... incomodadas.
Ele balançou a cabeça em sinal de negação, indicando que não desejava discutir o assunto.
— Pode ser. — ele disse, havia um tom frio em sua voz.
— Você sabe o motivo?
— Talvez. — respondeu de forma lacônica.
Eu sabia que havia algo especial naquele objeto, pois já havia percebido o jeito que as fadas o olhavam durante as refeições que fazíamos juntos. Também notei a agitação e o desconforto que ele despertava nelas. Olhei ao redor e percebi que isso estava acontecendo novamente: Patrick havia atraído a atenção delas ao pegar a tal colher. Vi duas fadas à mesa da direita, sussurrando e fixando o olhar nele.
— Talvez? — repliquei, apontando discretamente para o local. — Eu tenho certeza disso.
Patrick levantou o olhar e observou ao redor. Imediatamente, todas as fadas que o observavam desviaram o foco. Aquilo foi estranho; parecia que estavam tentando disfarçar.
— Sei que você sabe de algo, mas por algum motivo não quer me contar — eu disse, sendo sincero. — Qualquer um pode perceber como elas te olham quando você usa essa colher.
Eu diria que elas pareciam irritadas, a ponto de serem capazes de roubá-la dele em um momento de distração ou algo assim.
— É melhor manter certas coisas em segredo — Patrick disse.
— Eu já suspeitava disso — eu disse, sorrindo de forma sutil enquanto o olhava nos olhos. — Se pudessem, com certeza tomariam ela de você.
— Exatamente, Tommy, se pudessem. — ele sorriu, mas com um toque de malícia que me fez esquecer até o assunto que estávamos discutindo. — Com certeza, elas fariam isso.
Quando ele desfez o sorriso encantador que exibia, percebi que havia dito algo que não deveria. A expressão de preocupação que passou a mostrar deixava isso claro. Ele se calou, desviou o olhar novamente, suspirou profundamente e balançou a cabeça em negação. Supus que não havia pensado bem durante a conversa e, por isso, acabou revelando mais do que pretendia. Isso me surpreendeu, pois sempre fora muito esperto.
— Suspeitei que fosse algo assim, que elas conheciam esse objeto — eu disse, sentindo-me satisfeito por ter conseguido obter alguma informação sobre ele, apesar da expressão pouco amigável que ele exibia.
— Se puder manter isso em segredo, eu ficaria muito agradecido — ele disse, em um tom mais baixo que o habitual, mas consegui ler seus lábios. — E quando falo em segredo, quero dizer que nunca mais devemos tocar nesse assunto. O melhor a fazer é esquecer completamente, para que fiquemos mais seguros. Sabe, eu não acredito que o único perigo que nos ameaça apareça misteriosamente após o pôr do sol.
O olhar pensativo que ele exibia, aliado aos lábios levemente semicerrados, revelava claramente o desejo de não falar sobre as fadas. Essa relutância era compreensível, especialmente considerando que estávamos cercados por essas criaturas encantadas. A expressão séria em seu rosto sugeria o lamento por ter deixado aquelas palavras escaparem.
Então, desviei o assunto e comecei a falar sobre a última vez que estivemos em Moritfleur, um dos meus lugares favoritos por causa do clima e da beleza natural. Apesar de minha mente estar cheia de questionamentos sobre o que acabara de descobrir, tentei me concentrar na conversa.
O jantar seguiu acontecendo comumente, enquanto eu pensava no Patrick e naquela colher, que aparentemente era do interesse das fadas. Achei que aquilo não fizesse muito sentido, já que a maioria das pessoas o miravam com curiosidade, e viviam criando e espalhando histórias pela cidade, por conta dos relógios que ele carregava consigo. Ninguém que não tivesse trabalhado no monumento, onde havia uma sala bonita com seu nome, na seção responsável pela segurança de Allensburg, sabia que ele usava aqueles relógios para cumprir suas obrigações com os governantes. Isso me fazia questionar por que elas estavam interessadas em algo que ninguém comentava, nem mesmo Patrick, ou como tinham conhecimento sobre isso.
Tudo o que eu sabia sobre a colher era que Patrick a recebeu de seu avô antes de ele morrer. Desde então, nunca mais a soltou, e cuida dela como se a vida dependesse disso. Certa vez, o vi segurando-a entre os dedos enquanto dormia, o que aumentou minhas dúvidas sobre sua verdadeira importância. Foi curioso, além de um pouco fofo, ver um homem grande e barbado como ele dormir com uma colher na mão, temendo perdê-la.
Eu não ia contar a ninguém, mas queria saber de onde vinha aquela colher. Principalmente, por que sempre chamava a atenção daquelas criaturas que, embora fossem parecidas conosco, tinham características únicas. Aquela altura as fadas não eram um risco para os humanos, apesar de sermos ensinados desde pequenos a nunca olhar diretamente para elas. Elas, por sua vez, a nunca sugerir ou induzir um humano a fazer isso. A razão era simples: garantir uma vida mais longa, com sanidade e felicidade para os humanos. Eu acreditava que elas respeitavam essa regra, uma vez que foi uma das primeiras estabelecidas em comum acordo por Tiny e os outros dois governantes.
Era proibido que uma fada induzisse um humano a estabelecer qualquer tipo de contato íntimo ou visual. Contudo, essa regra não se aplicava quando humanos, consumidos pela desesperança ou desejo próprio, optavam por fazer isso. Geralmente, esses indivíduos enlouqueciam, embora parecessem mais felizes do que nunca, e em poucos meses eram assassinados.
Ninguém sabia muito sobre a morte que nos visitava à noite e que deu início ao caos da segunda guerra. No entanto, todos conheciam os responsáveis pela guerra anterior: as fadas, elas desencadearam tal conflito logo após a ascensão de Tiny ao poder. Eu me atrevia a dizer que algumas mentes poderosas, embora Patrick discordasse, gostariam de apagar esse fato da história e da memória das pessoas. Havia quem dissesse que a primeira guerra foi mais sangrenta que a segunda, mas eu tinha dificuldade em acreditar nisso, pois acompanhava as atualizações semanais sobre o número de vidas perdidas desde o início do conflito.
Elas se pareciam fisicamente com os humanos, mas seu estilo sexy e provocativo se destacava nas roupas, maquiagens e até em ações cotidianas, como sorrir, caminhar e falar. As fadas lembravam uma tribo urbana sensual e perigosa, sempre andando em grupos grandes e com um ar sombrio. Confesso que isso não me atraía, embora chamasse a atenção de muitos.
O termo 'fairy lovers' era usado para se referir às pessoas que se dedicavam a satisfazer fadas intimamente. Antes da guerra, essa era uma atividade lucrativa, mas havia uma regra: o contato visual era permanentemente proibido.
Apesar da primeira guerra ter sido desencadeada pelas fadas, elas não eram, de fato, perigosas para os humanos, a menos que alguém permitisse que agissem dessa forma. A maioria das fadas que conheci respeitava os humanos e convivia harmoniosamente conosco. Uma delas, por exemplo, lecionava na escola onde estudei, algo que sempre me despertou uma curiosidade imensa. O Sr. Casey, nosso professor, era excepcional—talvez o melhor que tive no último ano. Ele era extremamente inteligente e bondoso, e sua paixão pelo ensino deixava uma marca profunda em todos nós.
Eu acreditava que ele não estava lá por vontade própria, embora gostasse do mesmo, mas sim por algum detalhe muito específico, pois não era segredo para ninguém que seu povo costumava trabalhar em áreas ligadas à gastronomia. A maioria deles já estava familiarizado com isso, pois possuíam um dom natural para a culinária.
— Acho que deveríamos ir agora — eu disse, juntando os talheres no prato ao terminar a refeição.
— Você tem razão — concordou Patrick.
Não esperei que ele olhasse em seus relógios novamente para saber que era hora de partir. Já havia notado a crescente movimentação das pessoas na rua, que passavam de pressa e em grande número, como um rebanho seguindo na mesma direção.
Fiquei assustado ao ver a quantidade grande de pessoas do lado de fora, mesmo sabendo que era uma cena comum todas as tardes. O medo de passar a noite fora da casa me consumia, enquanto observava as pessoas apressadas e quase eufóricas passando do outro lado do vidro.
Patrick virou a xícara nos lábios, ajeitou a mochila de estampa militar e deixou a mesa apressado, seguindo em direção à porta à esquerda. Eu o segui, e ao passar pela saída, a visão das centenas—ou milhares—de pessoas na avenida principal me deixou ainda mais aterrorizado. Até aquela tarde não tínhamos passado por nada igual.
O medo paralisou meu corpo e, por um instante, pensei nos meus pais e na morte. Foi então que Patrick segurou minha mão com força. Corri em direção à casa, puxado por ele, que apertava minha mão a ponto de doer, enquanto tentávamos passar entre a multidão. A lanchonete estava a apenas dois ou três quarteirões da casa, mas o congestionamento tornava difícil vê-la. A aglomeração era tanta que, após certo ponto, não era mais possível correr; apenas se espremer lentamente para avançar.
Na esquina do quarteirão, ouvi a voz robotizada, familiar para todos os sobreviventes como Patrick e eu, anunciar:
“Procurem abrigo! Evitem barulhos altos. Se estiverem longe da casa, encontrem um lugar escuro e se escondam. A morte chegará em cinco minutos.”
Minhas mãos começaram a suar e meus olhos a lacrimejar. O medo me dominava.
Esforcei-me para passar pelo maior número de pessoas possível até chegar perto o suficiente para ver as portas da casa, haviam centenas delas por toda a extensão do quarteirão. Antes da segunda guerra, aquele lugar poderia ser descrito como um grande quarteirão de galpões de armazenamento. Obviamente, aquela estrutura era muito mais imponente, com paredes de aço e concreto cinza escuro, e portões vermelhos de rolo, à prova de balas.
Virei-me para a calçada, onde uma guerra sem regras acontecia para passar pela porta. Não tinha escolha; precisava atravessar aquelas pessoas para entrar na casa e me proteger durante a noite. Segurava a mão de Patrick com força, sentindo o coração pulsar descompassado, enquanto ele apertava minha mão tanto quanto eu a dele.
Estava a poucos passos de uma das grandes portas da casa, onde poderia passar a noite em segurança. Mas a multidão se espremia e se atropelava, dificultando tudo. Todos queriam salvar a si mesmos e seus entes queridos. A cada passo hesitante, o medo aumentava: e se a porta se fechasse antes de entrarmos? E se ela descesse sobre nós, nos matando instantaneamente?
Aquilo não era apenas fruto da minha imaginação assustada. Conhecia bem aquelas portas pesadas que se fechavam verticalmente. E, já tinha visto pessoas morrerem por conta delas. Estar na mira delas era tão perigoso quanto passar a noite fora da casa. Então, esforcei-me para dar mais alguns passos e entrar, torcendo para que o pior não acontecesse.
Senti meu corpo estremecer ao ouvir a voz robótica novamente, enquanto o céu escurecia e o sol se punha.
“Restam cinco segundos até a morte. Procurem a casa mais próxima para ficarem seguros.”
Senti Patrick me abraçar de maneira firme e aconchegante, fazendo tudo parecer irreal. De repente, não precisava mais temer a morte ou perdê-lo. Ele estava bem na minha frente, algo que não vi acontecer no meio daquela confusão, enquanto eu estava de costas para a casa e de frente para a multidão.
Os sussurros se transformaram em gritos e pedidos de ajuda que ecoavam por toda parte. O corpo de Patrick pressionava o meu, e consegui dar um passo lento para trás, saindo da mira da porta, mas ele ainda estava ali. Apertei os braços em volta dele, tentando dar mais alguns passos para tirá-lo daquele lugar.
Então, vi-o romper o abraço, dar um passo para trás e se afastar, provavelmente para escapar da porta antes que ela se fechasse. Pude olhá-lo por mais um segundo, e então tudo ficou escuro.
A porta se fechou com um estrondo, batendo firmemente no chão, quase atingindo a ponta dos meus sapatos. Lágrimas escorriam pelo meu rosto; eu havia perdido Patrick, assim como minha família anos atrás. Ele lutou para entrar na casa, mas não conseguiu naquela noite. Em um momento de desespero, soquei a porta com tanta força que senti o impacto reverberar pelo meu punho.
— Não... não, não! — gritei. — Patrick! — implorando que a porta se abrisse novamente.
Então, ouvi um sussurro atrás de mim:
— Fale baixo! — alguém ordenou, rispidamente, em meio ao aglomerado de pessoas iluminadas apenas pela luz das velas nos castiçais.
A penumbra tornava tudo mais tenso, e a urgência no ar era palpável.
Ao me virar, encontrei um rapaz alto, caucasiano, com calças destroyed pretas e um top de vinil que expunha quase todo o abdômen. Seu cabelo loiro formava um topete inclinado para a direita, e a sensualidade de suas roupas, junto ao olhar desviado assim que me virei, revelava que era uma fada. A maquiagem escura nas pálpebras e as sobrancelhas finas e expressivas, acrescentavam um ar enigmático e sombrio ao mesmo.
— Você está bem? — ele perguntou, olhando para o chão.
— Melhor impossível! — respondi, com ironia. Era claro que eu não estava bem.
Passei por ele e fui para um canto, tentando não incomodar quem já se acomodava no chão. Sentei ao lado de um cara de cabelos ruivos, encostei na parede e apoiei os braços sobre os joelhos, ocupando o mínimo de espaço possível. A cada dia, sentia mais falta das noites tranquilas em uma cama com travesseiros macios e lençóis cheirando a lavanda.
Eu não o conhecia e sabia que fadas raramente interagiam com humanos. Por isso, achei sua atitude um pouco curiosa.
Depois de ver o Patrick se sacrificar para me ajudar a entrar na casa, eu não queria ouvir as besteiras de uma criatura qualquer. Achava que aquele ser deveria estar feliz com o que aconteceu, já que ele tinha um objeto que lhe interessava. Chorava enquanto tentava não pensar no pior, olhando para a chama borrada da vela no castiçal na parede à frente.
Eu sentia que estava vivendo um pesadelo familiar, pois já havia passado por aquilo antes, quando me separei da minha família. Então, rezei por ele, pois não queria perdê-lo também.
As horas passavam naquela sala de penumbra e lamentações, que, apesar de grande, parecia pequena com tantas pessoas. Todos esperavam que o tempo passasse rápido, deitados ou sentados para não ocupar muito espaço, ansiosos pelo nascer do sol, que afastaria a morte. Era tudo o que eu queria: que amanhecesse e a porta se abrisse para eu encontrar o Patrick.
— Você não parece ser... um parente dele — disse uma voz rouca, ecoando na penumbra do lugar. — É, claro que não. Todos sabem que Patrick Mickens não tem nenhum familiar vivo.
Enxuguei as lágrimas com a manga do casaco antes de me virar para a direita, mas o perfume cítrico de Patrick fez novas lágrimas brotarem. Observei o rapaz ao meu lado com mais atenção: cabelos longos e ruivos, rosto coberto de sardas. Embora o tivesse notado ao entrar na casa, pensei que ele estivesse dormindo, pois mantinha os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás, encostada na parede.
— Isso é da sua conta? — perguntei, com um tom firme e claramente ríspido.
— Não, mas se você continuar chorando assim, vai acordar a casa inteira — ele respondeu, com uma insensibilidade cortante. — Ora, vocês nem eram parentes!
— Vai se foder! — exclamei entre dentes, enquanto algumas lágrimas seguiam escorrendo pelo meu rosto.
Cerrei os punhos com firmeza, irritado pelas palavras dele. Nunca havia sentido ódio à primeira vista, mas naquele momento, tal emoção me invadiu de forma intensa.
Fiquei irritado ao ouvi-lo falar de Patrick, como se eu não pudesse lamentar o que aconteceu para não incomodar os outros. Sabia que não deveria perturbar ninguém, mas não era o único triste ali. Havia outras pessoas chorando, provavelmente por terem passado pelo mesmo que eu.
— A menos que... — o rapaz ruivo sorriu de forma sutil, com um toque de malícia.
Ele abriu os olhos e me encarou intensamente, como se tentasse resolver uma questão interna. Seus olhos esquadrinhavam meu rosto em busca de algo, talvez apenas um sinal sutil. Após alguns segundos de silêncio, desfez o sorriso anterior e disse:
— Desculpe.
— Está tudo bem. — eu disse, assentindo sutilmente com a cabeça enquanto retribuía seu olhar fixo e curioso.
Fiquei irritado com suas palavras, especialmente pelo tom insensível que usou, mas decidi aceitar suas desculpas. Afinal, ele não me parecia uma má pessoa.
— Me chamo Marcelo — ele disse. — Qual é o seu nome?
O ruivo estendeu a mão na minha direção. Notei que ele tinha os olhos um tanto avermelhados. Então, apertei a mão dele sutilmente.
— Tommy. — respondi, tentando ter esperanças de que o Patrick estivesse bem.
Era difícil afastar aquele rapaz dos meus pensamentos, e as lágrimas brotavam naturalmente dos meus olhos, resultado de um estranho vazio que se instalara em meu peito. Desviei o olhar do dele e sequei as lágrimas que escorriam pelas minhas bochechas novamente.
— Vocês eram um casal? — Marcelo perguntou, quebrando o silêncio de forma inesperada.
— Não! — exclamei, tomado de surpresa pela indagação.
A pergunta me pegou tão de surpresa que mal consegui formular uma resposta sem parecer encabulado.
Apesar da indagação um tanto invasiva, eu adoraria que aquilo fosse verdade. Antes, acreditava que ter um carro bonito e receber um pouco mais de atenção de algumas garotas me traria felicidade, mas, com o passar do tempo, percebi que talvez estivesse errado. Que, se Patrick correspondesse, mesmo que apenas um pouco, ao que eu sentia, eu poderia afirmar que estava de fato feliz. No entanto, não nutria muitas esperanças de que isso acontecesse, pois já havia notado uma certa diferença entre nós.
— Bem, pelo jeito que você chorava, presumi que estivesse apaixonado por ele — ele disse, com um tom de curiosidade.
— E o que isso tem a ver com você?! — respondi, com a voz embargada, mas tentando manter a firmeza.
Ele suspirou profundamente, como se não tivesse se ofendido com minha resposta levemente ríspida, e ficou em silêncio.
Não achava que seria um problema Marcelo saber a verdade, mas relutava em compartilhar meus sentimentos, ainda mais com um completo desconhecido. Provavelmente, não o veria na casa na noite seguinte. Ele sabia que Patrick não tinha familiares vivos, pois sua vida era amplamente noticiada, dado seu trabalho com os governantes. E, que perdíamos amigos com tanta frequência que raramente chorávamos por eles.
Após alguns minutos, vi o ruivo acender um cigarro, cuja fumaça densa e de aroma agradável preenchia o ar ao nosso redor. Eu poderia jurar que inalar aquela fumaça estava me ajudando a esquecer o que havia acontecido com Patrick, ou pelo menos a desviar meus pensamentos para direções menos tristes, mesmo que a lembrança dele ainda estivesse presente. De alguma forma, comecei a me sentir um pouco mais relaxado, ainda que de maneira sutil.
Ele vestia um casaco preto e calça skinny escura, quase da mesma cor que seus coturnos de cano alto. Os cabelos lisos e longos, repartidos ao meio, chegavam até o peitoral. À medida que levava o cigarro aos lábios, um sorriso surgia em seu rosto, leve e genuinamente feliz, mesmo com centenas de pessoas sofrendo ao redor.
— É curioso como vocês se aproximaram — disse Marcelo. — Patrick sabia que você gostava dele?
Naquele instante, ficou claro que ele era um intrometido.
Nos entreolhamos e, mesmo sem dizer uma palavra sobre o assunto, aquela pergunta começou a ecoar na minha mente. Talvez o meu maior erro tenha sido não ter dito que o amava enquanto ainda podia. Lembrei-me de todas as vezes em que ele me sugeriu que eu deveria apreciar cada momento como se fosse o último, e percebi que ele sempre teve razão. Então, jurei a mim mesmo que contaria a verdade, se o encontrasse vivo na manhã seguinte. Não podia perder mais tempo.
— Não. — respondi da maneira mais seca e fria que consegui, pois desejava encerrar aquele assunto o quanto antes.
— Se eu fosse você, faria isso logo, é claro, caso ele esteja mesmo vivo depois dessa noite — ele disse com convicção. — Esse é o fim do mundo, Tommy! O que mais você está esperando?!
Tive que admitir, mesmo que apenas para mim mesmo, que ele estava certo. Embora achasse inconveniente ouvir que o Patrick tinha poucas chances de sobreviver, aquelas palavras apenas intensificavam a aflição e o medo que eu já sentia. Isso só piorava a minha aflição.
Eu não me sentia à vontade para falar sobre o Patrick, pois sabia que não deveria, especialmente com alguém que havia percebido tão facilmente que eu estava apaixonado por ele. Assim, deixei o assunto de lado e me concentrei em ouvir o que ele tinha a dizer sobre si mesmo, sobre ser natural de Allensburg, assim como sua irmã, Maria. Além disso, contou que eram praticamente os únicos membros vivos da família, uma vez que a maioria havia perdido a vida durante a segunda guerra.
Após uma pausa do ruivo, comecei a falar sobre meus pais. Contei que os perdi por causa da guerra, algo que não era muito diferente do que aconteceu com alguns familiares dele. Embora tenha me arrependido logo em seguida, no instante em que ele começou a fazer perguntas sobre o tal ex-funcionário do governo. A maioria delas eram sobre o trabalho desse, e obviamente, as deixei sem qualquer resposta, assim como fora instruído.
Eu havia perdido a conta de quantas vezes Patrick me disse que eu não deveria falar sobre a vida dele para ninguém, especialmente para aqueles que demonstravam interesse no assunto. E, principalmente, sobre seu antigo trabalho.
Marcelo não parecia ser uma ameaça, ao contrário de algumas pessoas que haviam se transformado ao longo do tempo, mesmo com as perguntas que fizera sobre Patrick. E muito menos Maria, que parecia apenas estar dormindo, com a cabeça repousada no ombro direito do irmão. Ambos aparentavam ser jovens e compartilhavam o mesmo tom ruivo nos cabelos, embora nos dela houvessem alguns dreads.
Maria vestia um coturno brilhante, que parecia ser de couro, calças jeans escuras e um sobretudo preto. Sua maquiagem era sutil, apresentava apenas um delineado longo e preto que acentuava seus olhos. Ela estava com o braço entrelaçado ao do irmão, como se quisesse garantir que ele não se afastasse nem por um instante. A impressão que ela transmitia era a de uma proteção silenciosa, como se estivesse determinada a mantê-lo por perto, não importando se o sono ou a distração a levassem a um momento de vulnerabilidade
— Eu soube de um lugar onde... caras como você são condenados à prisão — ele disse, havia certo pesar em sua voz.
Fiquei me perguntando, em silêncio, o que ele queria dizer com “caras como você”, até que ele continuou:
— Lá, as pessoas criaram leis que punem aqueles que têm relações homoafetivas. Em algumas regiões, a pena pode até ser a morte. Eles acreditam que Deus... odeia os homossexuais e que os enviará para o inferno.
— Ah, claro! E eu... tenho doze anos — eu disse, transbordando ironia. Era evidente que aquilo não era verdade.
Com certeza, aquilo foi uma das coisas mais absurdas que já ouvi. No entanto, por um instante, me perguntei se deus poderia realmente odiar os gays. Era impossível; ele não faria isso com sua própria criação. Que tipo de deus seria esse, afinal? O que eu acabara de ouvir não fazia sentido, mas, ainda assim, confesso que me surpreendeu.
Era difícil acreditar que aquilo fosse real, então presumi que ele estava apenas brincando, pois a situação era cruel e quase surreal. Segundo Marcelo, havia leis que puniam aqueles que se relacionavam com pessoas do mesmo sexo, baseadas em trechos de livros sagrados. Não precisei pensar muito para perceber que leis que invadiam a individualidade e decretavam quem ia para o inferno ou para a prisão eram insanas e desumanas. Como seria possível mandar alguém para a prisão ou rotulá-lo de doente apenas por ter sentimentos diferentes dos demais?
Sorri de forma cética e sutil, convencido de que ele havia assistido a filmes de ficção científica demais. Ou talvez, que o efeito do cigarro já estivesse começando a afetar sua mente.
— Você deve estar pensando que isso é loucura, eu sei. Mas acredito que esse lugar realmente existe, e que... está bem mais perto de nós do que imaginamos — ele disse, levando o cigarro aos lábios para um último trago. — A única coisa que não consigo entender é por que essas pessoas usam Deus como justificativa para tantas guerras, ódios e crueldades. Será que o Deus deles é tão diferente daquele que o padre Demétrio falava?
— Pode ser — eu respondi, minha voz mal saiu. Estava mergulhado em pensamentos que me faziam questionar se ele era louco.
Se tal absurdo fosse verdade só poderia ser de tal maneira, a mesma que havia pensado alguns minutos antes, pois o Deus que a maioria de nós conhecia, embora existissem muitos deles e diversas religiões diferentes, não era um que condenava e odiava a sua própria criação. Ouvira dizer que fomos feitos conforme a imagem e semelhança de Deus, e era nisso que acreditava. Embora, até aquele momento, não tinha tido conhecimento de nenhuma religião ou de um Deus que punisse aqueles que escolhiam com quem queriam passar o resto de suas vidas.
Padre Demétrio havia morrido no início de todo aquele caos, embora fosse uma figura conhecida em Allensburg, por cuidar de uma das maiores igrejas locais. Famoso na região, circulavam muitos boatos sobre ele, incluindo o rumor de que compartilhava a mesma religião que todos os governantes. Esse detalhe, por sua vez, parecia aumentar o desgosto das fadas em relação a Tiny.
Um arrepio peculiar percorreu meu corpo após ouvi-lo, eu não consegui identificar a origem daquela sensação estranha.
— Porque você está me contando isso? — eu perguntei, em tom de sussurro.
Eu queria saber se ele havia dito aquilo porque realmente achava errado eu estar apaixonado pelo Patrick. Se fosse o caso, eu tentaria ouvi-lo, buscando entender a razão por trás de tal pensamento insano.
— Percebi que você poderia estar apaixonado pelo Patrick, e bem, então lembrei desse lugar — o ruivo respondeu, dessa vez, havia certa tristeza em sua voz. — Me desculpe.
Eu poderia jurar que ele não gostava de ter aquilo em sua mente. Por mais surreal que fosse o relato, a expressão séria que passou a exibir e a voz um tanto embargada me fizeram perceber que ele estava falando a verdade. Ele não acreditava que Deus me odiava, apenas por causa do que eu sentia por Patrick.
— Está tudo bem — eu disse, tentando soar o mais natural possível.
— A culpa foi minha; às vezes, eu falo demais. Deve ser por causa dos problemas para dormir que venho enfrentando desde que tudo isso começou. — Ele sorriu timidamente, encostou a cabeça na parede e fechou os olhos.
Eu tinha alguns questionamentos sobre o lugar mencionado por Marcelo, então pedi que contasse mais sobre o mesmo, mas ele não disse nada. A pele dele tinha um tom alaranjado, por conta da luz das velas do ambiente. Fiquei observando-o durante um momento, ele usava roupas de tons parecido com o das fadas, só que muito menos provocantes, até que o mesmo decidiu falar do assunto. O que, confesso, me deixou surpreso e assustado.
Os pequenos detalhes do tema em questão iam desde um governo que negava direitos básicos às pessoas por causa de sua sexualidade até uma população que as estigmatizava e promovia linchamentos coletivos. Eu me perguntava como ele conseguira imaginar tudo aquilo, é claro, se tudo fosse realmente apenas uma história que ele havia criado. Segundo Marcelo, toda aquela hostilidade tinha raízes nas igrejas, onde discursos que mesclavam ódio e fé eram comuns, já que todos eram extremamente devotos. Eu não conseguia discernir se isso era verdade ou não, mas sentia um certo receio diante da riqueza de detalhes daquele relato.
Não sabia se era por compaixão pelos outros, mesmo em meio à frieza que tomou conta das pessoas durante a segunda guerra, que me senti receoso com as palavras dele, ou se isso se devia ao fato de ser um homem gay. Decidi, então, fazer silêncio e me concentrar nos meus questionamentos internos para tentar entender melhor o que me inquietava. De alguma forma, temia que, em algum lugar do mundo, aquela realidade pudesse ser verdadeira.
Era inconcebível que alguém pudesse ser visto como criminoso e linchado até a morte, com paus, facas e lâmpadas, apenas por causa de sua orientação sexual. Eu sempre acreditei que ninguém deveria sofrer preconceito ou discriminação, pois aprendi desde cedo, em casa, o quão errado isso era, muito antes de entender a sociedade em que vivíamos. Depois de refletir por um tempo, suspirei profundamente e perguntei:
— E... que lugar é esse?
— Eu não sei. — Marcelo respondeu, mantendo a cabeça encostada na parede atrás de si, com os olhos fechados e uma expressão de indiferença no rosto.
— Mas você disse que já esteve lá.
Observei o ruivo assentir discretamente antes de unir nossos olhares novamente.
— Sim, em um sonho que tive — ele explicou, soltando um profundo suspiro.
— Então, isso tudo não passa de um sonho?
Sorri de maneira discreta, aliviado por saber que tudo aquilo não passava de um sonho dele, por mais insano que fosse. Concluí rapidamente que não havia motivo para receio ou medo, pois era evidente que se tratava apenas da invenção de uma mente fértil e sonhadora. Certamente, nada semelhante ao relato dele estava acontecendo de fato, nem mesmo nos lugares mais hostis do mundo. Porém, desfiz tal gesto discreto, ao notar que ele parecia não ter gostado do mesmo, pela expressão carrancuda que passou a mostrar.
— Mas que porra! Não ria como se eu estivesse louco, só porque não acredita no que disse! — ele sugeriu rispidamente.
Observei os olhos dele por um instante; haviam ficado levemente avermelhados devido a fumaça do cigarro, e senti medo novamente. Aquele olhar era penetrante e frio, o suficiente para me fazer imaginar que ele poderia realizar comigo todas as crueldades que havia relatado. De repente, o humor dele parecia ter mudado; percebi isso pela expressão hostil que passou a exibir. Nunca tinha visto alguém alterar seu estado de espírito de forma tão abrupta. Achei que sua reação era desproporcional a um simples sorriso descrente.
— Desculpe. — eu disse, quase que pausadamente.
Marcelo não se moveu nem desviou o olhar, o que me deixou um tanto apreensivo. Ele apenas balançou a cabeça negativamente e encostou-se na parede novamente. Eu sabia que havia agido de forma inadequada, pois não deveria ter sorrido daquela maneira cética. Embora acreditasse que a reação dele tivesse sido um pouco exagerada, reconhecia que minha atitude não foi nada amigável. Então, deixei que o diálogo chegasse ao fim, ajeitei a mochila no chão frio e a usei como travesseiro. E, mesmo ciente de que seria impossível, tentei fechar os olhos e dormir um pouco.
Quando o dia amanheceu, eu ainda não havia conseguido dormir. As portas da casa se abriram automaticamente, e os primeiros raios de sol invadiram o espaço. A maioria das pessoas partiu, arrastando consigo suas dores e lamentos silenciosos. Levantei e coloquei a mochila nas costas. Ao olhar para o lado, vi Marcelo adormecido, com uma expressão tão serena que me fez duvidar de suas queixas sobre insônia. Inclinei-me para tocá-lo, mas Maria me interrompeu, apressando-se a dizer:
— Não! — ela exclamou, a voz firme e muito mais alta do que o habitual. — Não toque no meu irmão!
Maria tocou meu antebraço por cima da blusa, apertando com mais força do que o necessário. Virei-me para ela, rompendo o contato levemente dolorido, e a encarei com estranheza. Tentei disfarçar o susto que levei ao perceber sua aproximação sorrateira, mas minha expressão acabou entregando meu desconforto.
Pareceu-me que, ao tocar no Marcelo ou despertá-lo, algo ainda mais terrível que a segunda guerra iria acontecer. A reação desmedida da ruiva de dreads me deixou inquieto.
— Eu ia avisá-lo que já amanheceu — disse sinceramente. — Não te vi aqui, então pensei que...
— Obrigada — Maria interrompeu, impaciente. — Mas pode deixar que eu cuido disso.
Ela me encarava como se eu fosse detonar uma bomba-relógio, a irritação era clara em seu rosto. Era alguém notoriamente difícil de lidar; sua prepotência transparecia no olhar gélido e nos braços cruzados, gerando uma tensão quase insuportável no ar.
Observei a expressão hostil dela por alguns segundos, intrigado com a razão de sua raiva. A luz natural revelava a impressionante semelhança entre os irmãos, dos cabelos ruivos às sardas na pele. Mas ela era diferente: mais bonita, envolta em um sútil mistério. Passei por ela e segui até a calçada, onde água tingida de vermelho sangue escorria pelo meio-fio. Aquela cena, mesmo após tantos anos de guerra, ainda me deixava inquieto.
Pessoas passavam apressadas, algumas limpando a avenida com mangueiras e vassouras, enquanto eu observava o sangue escorrendo pela guia. Pensava em Patrick e desejava, com todas as minhas forças, que cada gota vermelha daquela não fosse dele. À direita, na esquina, dois caminhões-tanques e dezenas de funcionários municipais em uniformes laranja vibrante trabalhavam freneticamente. Com água corrente e uma espessa espuma branca, limpavam tudo ao seu redor, como faziam todas as manhãs.
Virei-me, mas Marcelo já havia partido, sem que eu o visse sair. Suspirei fundo e deixei aquele lugar, apressando-me, pois algo urgente me aguardava. Uma sutil esperança brotava em mim: talvez Patrick estivesse bem e me esperando em casa, apesar do que tinha acontecido na noite anterior.
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