Capítulo 7
Zylkoris estava desconfortável. Era impossível enxergar qualquer coisa na escuridão absoluta em que se encontrava. Com pouquíssima ventilação, o espaço diminuto ficava muito abafado e o rapaz sentia sua roupa grudando na pele molhada de suor.
A marcha do exército contra a Lança Branca começaria em breve e aquela seria a melhor oportunidade que ele teria de sair de Blaskogar. Ao menos, era isso que Caleb dissera. A Zylkoris restava apenas confiar no amigo e torcer para que o plano dele desse certo.
Ele estava parado havia um tempo considerável. Para evitar suspeitas, o assassino fora colocado ali antes mesmo da alvorada. Contar as horas era uma tarefa impossível, mas a sensação proporcionada pela tensão aliada ao tédio era de que semanas tinham se passado.
A mistura de odores ia desde o cheiro forte e desagradável do alho até o aroma suave de flores. Havia três camadas de mercadoria acima dele. Caleb também garantira que o comerciante que conduziria aquela carroça tinha um contato na guarda para evitar uma revista minuciosa.
Ele só tinha que esperar.
☼
Júlio estava ansioso. Era a primeira vez que ele participava de uma marcha de guerra. Até então, o guerreiro só havia participado de missões menores, como caças a monstros. Não havia um segundo em que ele não perguntasse a si mesmo a questão que julgava impossível responder. Será que estou pronto? Ele tirara a vida de várias criaturas. Desde lobos até um basilisco. Ainda assim, nas missões de pagamentos grandes, havia dividido com muitos colegas. Com isso, jamais conseguira acumular dinheiro para conseguir equipamentos próximos aos da Noëlle, por exemplo. E se isso contar? Júlio não sabia tão bem o que iria encontrar em combate. Todos diziam a ele que o mais provável era que os inimigos tivessem armas ainda piores que as dele, mas aquilo era uma fonte de insegurança.
Por outro lado, o cavalo preto que havia sido fornecido pela guilda era incrível. Júlio nunca conseguiria comprar um garanhão daquele com seu próprio dinheiro. O cavalo não demonstrara o menor sinal de cansaço em todo o caminho de Terafirr a Blaskogar e o guerreiro fora informado que ele não fugiria ao ouvir sons estrondosos. Em outras palavras, o animal poderia entrar em um campo de batalha sem problemas.
O acampamento no Azesh'lan Kassl havia ficado para trás. O exército de Istkor tinha providenciado pessoas para desmontar as barracas e transportá-las durante a marcha. Isso deve estar custando caro. Eles devem mesmo querer acabar com essa tal de Lança Branca.
Naquele momento, militares e mercenários estavam aglomerados no portão leste de Blaskogar. O sol escaldante ardia no céu, castigando a todos enquanto um discurso do rei era aguardado.
Ao seu lado, Noëlle parecia cansada. Era uma cena rara, tendo em vista que a elfa só precisava dormir quatro horas para ter um descanso pleno. O guerreiro se sentia desconfortável com tudo que tinha acontecido entre eles, mas estava forçando a proximidade. Não podia permitir que as ordens cruéis de a açoitar fizessem com que a amizade se perdesse.
— Eu queria entender essa necessidade que os monarcas têm de aparecer — resmungou Júlio, irritado com a demora e querendo puxar algum assunto.
— Esses soldados vão marchar única e exclusivamente por ele. O discurso é importante para deixar esse pessoal motivado — respondeu Noëlle em meio a um bocejo.
— Eles têm salário. Precisam de mais motivação ainda? — questionou em tom de ironia.
— Agora você está só querendo encher o saco — retrucou a Fênix Corvina, com rispidez. — É óbvio que você entende a importância do discurso.
— Entendo — cedeu. — O que é de lascar é ficar torrando de armadura e tudo. Quero saber qual é o soldado que fica com o moral elevado nessa demora dos Nove Infernos!
— Da próxima vez, fala mais alto, pois acredito que o rei não tenha ouvido você berrar — rosnou Noëlle.
Foi somente ao ouvir a fala da amiga que Júlio percebeu os olhares atravessados das pessoas ao seu redor. Havia pessoas comuns por ali e aquele momento devia significar muito para elas.
Ainda incomodado, Júlio ficou em silêncio. Ele não precisava transmitir seu desconforto aos outros. Ao invés disso, tentou se distrair fazendo carinho no seu cavalo. Não ajudou tanto assim, mas foi o bastante para minimizar a vontade de voltar a reclamar.
O guerreiro observou seus arredores. Quase todas as pessoas mantinham os olhos fixos no palanque montado para que o rei discursasse. Júlio notou que, além do exército, dos mercenários e dos transeuntes, havia um grupo imenso de carroças sendo revistadas individualmente. Deve ser esse o motivo da demora.
O rapaz assistiu a um senhor de idade reclamar com um guarda por este não ter cuidado com a mercadoria. Em resposta, o homem se atrapalhou com algumas frutas e deixou que caíssem no chão, o que fez com que o comerciante levasse as mãos à cabeça. Ele não devia ter reclamado com o guarda. Impressionante que alguém não imagine que algo assim possa acontecer. Pelo menos, a carroça dele não está em chamas. Júlio esperava nunca depender da guarda de Blaskogar.
Um por um, os mercadores eram revistados, alguns de forma mais rigorosa que outros. No final, com a temperatura aumentando e as pessoas impacientes aguardando o discurso real, a revista foi agilizada e, por fim, os guardas se deslocaram para fazer a segurança do rei. Acho que agora vai.
☼
Revgar estava à esquerda do rei, que tomou um copo de água antes de dar o primeiro passo. Após três horas esperando os guardas revistarem minuciosamente os mercadores que deixariam Blaskogar depois do exército, o monarca finalmente poderia pronunciar o seu discurso. O Arcano de Rhyfel percebera que muitas pessoas haviam ficado incomodadas com a demora, mas era crucial que aquelas pessoas fossem revistadas pelos servos do rei. Tanto por conta da quantidade absurda de contrabandistas atuando constantemente para burlar as justas regulações istkorianas como pelo simples fato de que um príncipe havia sido assassinado e o culpado ainda estava solto.
O tenente observou a grande quantidade de civis que estavam presentes apenas para ouvir o discurso do monarca e deu um discreto sorriso. O povo amava seu soberano e três horas sob o sol escaldante não era o bastante para afastá-los dali. Eles queriam justiça e não teriam aquilo naquele dia, mas a marcha era o início do processo que vingaria o povo órfão de um príncipe carismático e que sentia a dor dessa perda de forma quase tão intensa quanto o próprio rei.
— A vontade do rei é a vontade do povo — sussurrou o tenente de modo que somente ele ouviu.
Rei Zanok subiu os degraus, permitindo que todos o vissem. Sua aparição foi seguida por aplausos emocionados de todos os presentes. A população nunca cansava de demonstrar amor e admiração por aquele homem, ainda mais ao vê-lo continuar desenvolvendo suas tarefas com tanto empenho mesmo após perder o próprio filho.
O rei se ajeitou no palanque e fez um gesto para um dos Arcanos de Rhyfel, que se aproximou e tocou-lhe o pescoço, sussurrando algo que Revgar não conseguiu entender. Em seguida, o monarca limpou a garganta e o som foi amplificado de modo que todos conseguissem ouvir claramente.
— Amado povo de Istkor — bradou o rei. — Hoje não venho a vós como governante, mas como um pai que perdeu o único filho. Anos após perder a minha esposa, vossa rainha, em um trágico acidente, perco também meu herdeiro. O verbo perder é forte em minha vida. Foram muitas derrotas. E muitas ainda virão. Eu sofri. Sofri como poucos sofrem em uma vida inteira. Mas o meu sofrimento é diferente porque eu não sofri sozinho. Milhares de mensagens de carinho chegaram até mim partindo deste povo maravilhoso. Os deuses sabem como todos nós estamos sofrendo juntos. E é chegado o momento de fazer justiça. Nós faremos com que Aros trabalhe bastante conduzindo as almas da Lança Branca para o julgamento supremo de Dastarar. Os rebeldes vão cair. Eles vão tentar, mas nosso reino vai triunfar! — Rei Zanok fez uma breve pausa para os aplausos. — Eu quero agradecer a todos que estão saindo de suas casas para lutar por nós. Vós vencereis e fareis de Istkor um lugar melhor. Há um peso grande em cima de vós, mas não vos amedronteis diante das intempéries, pois tudo há de valer a pena quando a Lança Branca cair! E eu repito: a Lança Branca vai cair! — O monarca urrou na última parte, pronunciando pausadamente as três últimas palavras e, ao terminar, viu a multidão explodir em gritos eufóricos e esperançosos.
O rei se retirou do palanque e foi escoltado pela Guarda Real de volta para o Azesh'lan Kassl. O monarca queria participar da marcha, mas Paven o convencera de que era mais seguro que ele ficasse em Blaskogar. A atenção dos rebeldes estaria no imenso e implacável avanço militar.
Revgar se juntou aos demais membros do conselho na linha de frente do exército. Eles seriam os primeiros a cruzar o portão, iniciando de forma simbólica o movimento de guerra contra os rebeldes.
Paven estava trajando uma pomposa armadura prateada e trazia consigo sua lança que, curiosamente, tinha a empunhadura branca. A arma era de qualidade irretocável e parecia ser uma relíquia, mas Revgar não ficaria surpreso se descobrisse que o colega mandara algum ferreiro forjar o equipamento especialmente para aquela guerra.
Ao lado do general, Keagan, Klaus, Bert e Louise, todos vestidos à altura de sua posição, se reuniram. Revgar logo se aproximou com o traje roxo dos Arcanos de Rhyfel de alta patente. O orbe que ele usava para canalizar magia estava no vistoso colar de ametistas.
— Amigos, nós faremos história a partir de hoje — disse Paven assim que Revgar chegou mais perto. — Vamos esmagar a Lança Branca.
Alinhados, os seis membros do Conselho ficaram de frente para o portão e, então o rangido foi ouvido por todos. Blaskogar estava se abrindo, e não era para receber, mas para enviar. Revgar, Paven, Keagan, Klaus, Bert e Louise andaram de forma sincronizada e, ao mesmo tempo, saíram da cidade. A marcha estava começando.
☼
Zylkoris estava com tanto calor que ficou com medo de vomitar, mas foi capaz de conter o mal-estar. Ele ouviu com dificuldade as palavras do Rei Zanok e precisou se conter para não rir, pois não queria revelar sua localização a todos os guardas.
O alívio foi grande quando sentiu a carroça se movendo, mas a preocupação foi imediata: o exército estava marchando e a Lança Branca não tinha como lutar de frente contra um contingente daquele tamanho. Zylkoris precisava chegar à base antes dos militares. Essa era a parte fácil. A difícil seria traçar um plano para que não fossem todos dizimados.
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