Capítulo 5

O céu ainda estava arroxeado pela alvorada quando dois capachos da Aura foram buscar Noëlle em sua tenda. A elfa mal os encarou antes de sair. Eram pouco mais que moleques cumprindo ordens em busca de ficar bem com a líder dos Lobos Negros. A Fênix Corvina não fazia ideia se eles já sabiam o motivo pelo qual estavam escoltando uma das mercenárias mais famosas da companhia, mas não se dignou a perguntar.

A cada passo que dava, Noëlle olhava os arredores. A quantidade de testemunhas crescia aos poucos. As expressões de sono e cansaço se convertiam em curiosidade no momento em que ninguém menos que a Fênix Corvina passava diante deles sendo escoltada pelos capachos. Os dois fedelhos não sabiam nem lutar direito, mas todo mundo os conhecia, porque faziam todo tipo de serviço casual para a Aura, como entregar mensagens ou itens em geral. Quando alguém era punido publicamente, eram os dois que buscavam a pessoa e a escoltavam até o local do castigo.

Noëlle viu alguns homens com uniforme da guarda. Entre eles, reconheceu os indivíduos que tentaram queimar a loja da herbanária. O tal de Cabo Hardi estava entre eles, dando um sorriso malicioso no momento em que seu olhar se encontrou com o da elfa. O desgraçado sabe que serei punida. Ainda veio apreciar a visão, maldito.

Perto dos guardas, havia cinco pessoas vestidas com roupas escuras. Um deles trajava um robe que parecia pertencer a alguma guilda de magos. Não seria absurdo se fosse membro dos famosos Arcanos de Rhyfel, organização istkoriana reconhecida pelos quatro cantos de Azúria.

Normalmente, quando um mercenário quebrava alguma regra disciplinar, ele era muito xingado no caminho para a punição. Não era raro que sofressem inclusive algumas agressões, como chutes e cusparadas. Com Noëlle, não era diferente, mas com o detalhe de que suas mãos não estavam atadas. Andando com a cabeça erguida, viu um homem tentar acertar-lhe um tapa, mas ela se esquivou do golpe e, em um movimento rápido, torceu o braço do sujeito, que caiu rugindo de dor.

— Você deve ter muito culhão pra achar que pode tocar em mim — sussurrou a elfa. — Faça isso de novo e eu te mato.

Noëlle observou toda cor sumindo do rosto do sujeito, enquanto ele se arrastou para trás e se escondeu em uma tenda qualquer. Covarde.

Depois do pequeno incidente, ninguém mais ousou fazer qualquer coisa contra a Fênix Corvina. Noëlle sabia que muitos ali não gostavam dela e adorariam a oportunidade de botar uma mão no lugar errado ou de humilhá-la na única oportunidade possível, mas ela se defenderia e ninguém queria passar a vergonha que o primeiro agressor passara.

A elfa seguiu sendo escoltada, mas não perderia a oportunidade de desfilar sua arrogância diante de todos. Diante da Aura, implorara para não ser punida, mas diante de todos, não permitiria que vissem seu lado mais frágil. Ali, não era a Noëlle, era a Fênix Corvina. A mulher que domara um arkanvolf, matara um dragão ônix e vencera o Estrela-Mor da Tribo da Lua Vermelha seria capaz de aguentar três chibatadas sem dar a ninguém o gosto de vê-la humilhada.

À frente dela, Kyrios andava imponente. Noëlle queria que o arkanvolf ficasse em sua tenda, mas não encontrara coragem para ordenar aquilo. Os grandes feitos do passado podiam ajudar a Fênix Corvina a ter certeza de sua própria força, mas era o lobo elemental que poderia prover o conforto que ela tanto precisaria.

Se no início da caminhada havia poucos mercenários despertos, àquela altura da escolta, todos já deviam estar observando Noëlle chegar ao local escolhido para a punição. Era um bonito barbatimão, árvore alta com folhas pequenas em ramos. Os galhos e o tronco eram robustos, revestidos por uma casca de aspecto escamoso e com algumas cristas agudas. O local serviria muito bem para que a elfa fosse amarrada.

Ao lado da árvore, Noëlle viu seu amigo. Júlio não a encarava, provavelmente com vergonha do que teria que fazer. Ela não o culpava. Ao menos, não completamente. O guerreiro não podia simplesmente desobedecer a uma ordem direta dada pela Aura, mas poderia exercer sua rebeldia de alguma forma. Entretanto, a elfa não alimentou esperança. Nunca vira o amigo fazer qualquer coisa em uma missão que fugisse minimamente dos comandos que recebera.

Júlio só era um membro dos Lobos Negros graças à própria Noëlle, mas a elfa tinha certeza que aquilo não seria o bastante para que o humano se contivesse. A chibata pesaria tanto quanto se estivesse nas mãos de um inimigo.

Noëlle mirou o olhar direto no amigo, enquanto continuava o seu avanço. O humano que estivera passivamente ao seu lado quando os guardas ameaçaram queimar a loja da herbanária agora estava ali, parado. Por um instante, a elfa quis quebrar a pose e questionar o amigo. Faça alguma coisa. Corrija essa injustiça. Mas ela sabia que seria inútil.

A Fênix Corvina já agira algumas vezes no passado de forma implacável e impiedosa. As Kurwyns em sua cintura eram um lembrete constante daquilo. Como poderia ela exigir algo diferente dos outros?

Quando estava a alguns metros da árvore, os capachos chegaram mais perto da Noëlle. Kyrios se virou imediatamente e mostrou as enormes presas, rosnando alto e fazendo com que os dois rapazes recuassem. Um deles tropeçou em uma pedra e caiu com as nádegas no chão, causando algumas risadas entre os presentes.

— Quieto, Kyrios — comandou a elfa.

Imediatamente, o arkanvolf deixou a postura agressiva, mas manteve-se ao lado da dona. Os capachos se aproximaram novamente, dessa vez com mais medo. Noëlle fez um movimento brusco na direção de um deles, imitando um rugido, e o rapaz deu um pulo para trás, quase caindo outra vez. As gargalhadas ecoaram pelo pátio do castelo e o capacho ficou mais vermelho que uma cereja.

Um terceiro homem veio para perto de Noëlle. Era alto e muito forte, tendo a pele castigada pelo sol. Os cabelos brancos podiam passar a ideia de se tratar de um sujeito senil, mas a elfa conhecia muito bem a história por trás da enorme cicatriz que praticamente cortava o rosto inteiro. Rilork Hallowsun. Aquele sujeito estava muito longe da lista dos apreciadores da Fênix Corvina.

— Dois inúteis, é o que vocês são — rosnou ele.

— D-desc-desculpe, Fera — respondeu um dos capachos.

— E você pare com esse teatrinho patético — ordenou o mercenário mais experiente, colocando o dedo em riste a poucos centímetros do rosto da Noëlle.

Rilork pegou uma corda e amarrou os braços da elfa. O nó foi tão apertado que a Fênix Corvina sentia a pele ardendo como se estivesse sendo queimada. Fera a arrastou sem pena, talvez imaginando que ela fosse cair, mas não passou perto de ter esse gosto.

— Sorte sua que quem decidiu sua punição foi a Aura — sussurrou o sujeito. — Se coubesse a mim, seria vinte chibatadas e expulsão dos Lobos Negros.

— Você não aguentaria viver sem mim por perto — ironizou a elfa, rosnando com os caninos afiados à mostra.

— Eu não tenho medo do seu arkanvolf, quem dirá desse sorrisinho debochado — provocou Fera.

Eles chegaram ao barbatimão e Noëlle teve a oportunidade de ver Júlio mais de perto. A expressão dele não passava nem perto da leveza habitual. Parecia haver ali uma tentativa de mostrar seriedade, mas o cenho franzido e os olhos sem brilho denunciavam que o amigo não estava nem um pouco satisfeito em ter que conduzir aquela punição.

Enquanto Rilork a amarrava no galho mais baixo do barbatimão, a Fênix Corvina não parou um segundo de encarar o amigo. Ela lançava o olhar mais penetrante que conseguia, sem conseguir que o amigo retribuísse. Júlio desviou o rosto, mirando o chão e depois o céu. Devia estar envergonhado e Noëlle queria que ele estivesse.

— Eu lutei por você — rosnou ela para o amigo, que não respondeu.

Noëlle tinha plena consciência de que Júlio sabia do que ela estava falando. Aliás, havia mais de uma situação em que a elfa se arriscara em favor do humano. Aquela era a situação para que fosse provado que ele também era capaz de fazer a mesma coisa.

— Noëlle, a Fênix Corvina, infringiu as regras dos Lobos Negros ao atacar dois guardas no centro de Blaskogar — anunciou Rilork. — Tendo em mente as notórias contribuições da elfa à nossa companhia e a campanha de guerra que se iniciará amanhã, foi decidido que ela será submetida a apenas três chibatadas em vez das vinte habituais. Em compensação, o algoz será o senhor Júlio Gomes, sem título, que aplicará os golpes, para que saibam que, mesmo em uma situação assim, nós não abriremos mão de punir de forma exemplar aqueles que agem contrariamente às nossas regras.

— Fale também que os guardas ameaçavam tacar fogo em uma loja, Rilork. Avise àqueles senhores do exército ali que o homem deles está extorquindo o próprio povo que jurou defender — Noëlle berrou, causando silêncio e um burburinho posterior entre os presentes. — É por isso que estou sendo punida.

A Fênix Corvina ainda tinha mais para falar, mas o estalo da chibata em suas costas a pegou de surpresa e ela teve que concentrar toda a sua energia para não berrar. O tecido fino que cobria sua pele parecia inexistente. Além da dor na pancada, suas costas ardiam após o golpe.

Kyrios mostrou os dentes e rosnou para Júlio, mas não se moveu. O arkanvolf era muito inteligente e já devia ter entendido com o último comando que não era para intervir, mas era nítido o sofrimento dele ao ver sua dona sendo agredida daquela maneira.

— Três chibatadas e nada mais, Kyrios — disse Noëlle.

A elfa engoliu o grito mais uma vez quando a segunda chibatada a atingiu nas costas, sendo o estalo tão alto que até o ouvido dela doeu. A Fênix Corvina sentiu o ódio fervendo dentro de si, mas seria capaz de aguentar até o fim, mesmo com o Júlio usando o que parecia ser toda a força dele. Ninguém teria o prazer de vê-la quebrando. Nenhum grito seria escutado vindo da boca dela.

Noëlle olhou para as pessoas do exército e o Cabo Hardi ainda estava lá. Ele olhava para a elfa e parecia estar se deleitando com a situação. O desgraçado deve estar se sentindo vingado. Naquele momento, a sensação era de impotência, mas aquele rosto estava marcado. Se esse excremento de dragão vermelho cruzar o meu caminho algum dia, é bom que ele esteja preparado...

A elfa foi retirada de seus pensamentos quando a terceira chibatada atingiu suas costas. A pele parecia pulsar com a dor. A sensação era de que o local havia sido queimado, dada a ardência que se instalou. O único alívio era que aquele tinha sido o último golpe.

— Mais um — ordenou Rilork.

— Mas... — ia dizendo Júlio.

— Eu disse mais um! — gritou Fera.

O humano ergueu a chibata para açoitar Noëlle mais uma vez, mas Kyrios saltou sobre ele e mordeu o instrumento. Ao soltar, o chicote estava despedaçado e queimado. O arkanvolf aproximou as presas do rosto de Júlio e rosnou, mas não atacou. Deixou-o ali e foi em direção à sua dona.

— Que absurdo é esse? — questionou Fera.

— Você pode ser o segundo em comando, Rilork — afirmou Noëlle, conseguindo falar com a voz firme. — Mas três chibatadas são três chibatadas. Se quiser bater mais em mim, terá que fazer isso comigo desamarrada. Não sei se tem a coragem pra isso.

Kyrios chegou perto da elfa e pulou, alcançando a corda com suas presas. Fogo surgiu onde as presas tocaram, libertando uma mão da Fênix Corvina. Então, Noëlle desembainhou uma Kurwyn e cortou o que ainda a prendia.

Três chibatadas. As costas ardiam como se a mordida do lobo elemental de fogo tivesse sido nelas, era muito desconfortável, mas aquilo passava muito longe de ser algo que pudesse quebrá-la. Entretanto, Noëlle não estava muito interessada em saber como seria sofrer com vinte daquelas.

— Um dia, você pagará pela sua petulância — afirmou Rilork. — Suma da minha frente.

Era aquilo mesmo que a Fênix Corvina queria fazer, mas antes disso, ela encarou Júlio, que estava sentado no chão. Foi a primeira vez que os olhos se encontraram e havia muita coisa que Noëlle gostaria de transmitir ali. Entretanto, ainda fazendo o máximo de esforço para que ninguém notasse a dor que sentia, permitiu que um sentimento transbordasse em sua face. Decepção.

Noëlle deu as costas à multidão e se retirou com Kyrios ao seu lado. Ela iria para a sua tenda, onde descansaria até o dia seguinte e permitiria que o lobo elemental a ajudasse a não se sentir completamente sozinha em meio a tantas pessoas.

Quando o sol tocava o ponto mais alto do céu, Revgar já estava acompanhando os guardas no deslocamento de Florina para fora da prisão. A jovem cozinheira estava abatida, mas seu olhar era obstinado. Ela chegou a encarar o Arcano de Rhyfel por alguns instantes antes de ser empurrada com truculência e quase cair.

Seria a segunda punição que acompanharia no dia. A líder dos mercenários não tinha acatado completamente o pedido de não fazer nada que comprometesse a saúde física da mercenária, mas as três chibatadas ficaram de bom tamanho e serviriam de exemplo para que ninguém mais desafiasse a lei e a ordem. Eu queria ter entendido direito o que ela gritou. A gente estava longe demais. Revgar voltou o olhar para Florina e se entristeceu. Infelizmente, algumas poucas chibatadas não eram o bastante para o crime que ela cometera.

Com as mãos amarradas nas costas, a menina não tinha como se defender daquelas pessoas que queriam alguém em quem descontar a frustração pela perda do tão estimado Príncipe Kristian. Talvez o senhor não conheça o seu próprio povo. Involuntariamente, Revgar se lembrou das palavras da jovem quando conversaram na prisão.

O grupo se deslocou de forma rápida até a entrada do Azesh'lan Kassl. Dentro do castelo, era irrelevante Florina ser vista. Mas, do lado de fora, ela era um exemplo.

Príncipe Kristian havia sido assassinado e o povo precisava de uma resposta. As pessoas queriam sangue. Os culpados tinham que ser encontrados a qualquer custo e executados na Praça Real. Somente isso ajudaria a cobrir um pouco do vazio deixado no coração de todos após uma perda tão sentida.

Ela é só uma menina. O pensamento veio de uma vez na mente de Revgar, que observou Florina pelas costas. O corpo era fiel à idade daquela jovem que ainda teria tantos anos para viver. Mas a culpa era dela. Infelizmente, a cozinheira tomara a decisão errada ao se unir à Lança Branca e participar do atentado que culminou na morte do príncipe.

O grupo saiu nas ruas de Blaskogar. Os curiosos olhavam para Florina e pareciam estranhar que uma mocinha tão nova pudesse ter envolvimento com a morte do Príncipe Kristian. Entretanto, bastou a primeira pessoa gritar que todos acompanharam. Muitos jogavam objetos e cuspiam na direção da frágil menina, manifestando abertamente a ira pela perda de um homem que eles todos amavam.

Talvez o senhor não conheça o seu próprio povo. As palavras ecoaram mais uma vez na mente do tenente, mas bastava observar a multidão nas ruas para perceber que Florina estava errada. Aquelas pessoas amavam a família real com todas as forças e seriam capazes de matar e morrer pelo Rei Zanok. O assassinato do príncipe havia sido uma afronta a tudo que os istkorianos haviam cultivado ao longo da história.

Revgar olhou satisfeito para os cidadãos enquanto seguia a passos lentos com Florina à sua frente. O Arcano de Rhyfel não se alegrava com o destino que aguardava a pobre cozinheira, mas ficava muito satisfeito ao ver que os blaskogarianos compartilhavam da dor e da frustração pelo triste fim do Príncipe Kristian.

Em seu coração, Revgar sabia bem que Florina, se muito, era uma mera peça de um esquema maior. Uma menina tão nova era facilmente manipulável. O tenente não tivera a oportunidade de dialogar com Paven após a conversa com a menina nas masmorras, mas acreditava piamente que o general havia dado a chance de a menina entregar o assassino em troca da própria liberdade.

— Você deve estar muito satisfeito, Revgar — disse Florina com bastante ironia na voz. Em resposta, um guarda a esbofeteou e ela quase caiu.

— Olha como fala com o tenente, sua atrevida — vociferou o homem.

— Eu estou apenas cumprindo o meu dever — afirmou Revgar.

— Há! O seu dever é com o rei ou com o povo, tenente? — a pergunta fez com que Florina tomasse um chute. Ela caiu, batendo o joelho e a testa no chão. A menina se levantou sozinha e seu supercílio sangrava muito, mas ninguém a acudiu. Em instantes, sua roupa branca ficou manchada de vermelho.

— Cale-se, fedelha — gritou o guarda responsável pelo golpe.

— Olhe à sua volta, Florina — pediu Revgar. — Essas pessoas parecem insatisfeitas? A vontade do rei é a vontade do povo.

— A ovelha que serve ao dragão é a última a ser devorada — recitou a menina.

Florina tomou mais uma bofetada e tropeçou mais uma vez, deixando uma marca de sangue no chão. Ao invés de reclamar, a menina riu e voltou a ficar em silêncio. Revgar só conseguia achar que a jovem cozinheira estava jogando a vida fora, mas era inegável que havia ali um espírito admirável.

O grupo seguiu se deslocando até que a estátua do Rei Zanok foi ficando mais próxima. O Arcano de Rhyfel imaginou que a proximidade da Praça Real fosse mexer com a menina, mas Florina ergueu a cabeça, exibindo o sangue que manchava a sua face como um troféu.

Júlio queria estar em qualquer lugar que não fosse ali. Os mercenários almoçaram cedo para testemunharem a execução de um suposto criminoso de alta periculosidade com envolvimento no assassinato do Príncipe Kristian. A contragosto, o guerreiro havia colocado seus equipamentos como se estivesse marchando para a batalha. Noëlle havia sido dispensada da atividade, o que era compreensível. O guerreiro tinha convicção de que a elfa seria compreensiva com ele pelas chibatadas, afinal, estava cumprindo ordens. Entretanto, o último olhar enterrara a esperança e não saía da mente dele. Tudo que não precisava era ficar assistindo a algum criminoso ser executado em vez de poder procurar a amiga para conversar.

Júlio tinha muita dificuldade de entender o motivo pelo qual governantes gostavam tanto de execuções públicas. Algumas eram um tanto dramáticas, mas a vasta maioria era simplesmente uma pessoa qualquer sendo enforcada ou tendo a cabeça separada do corpo. Não era uma cena agradável e o mercenário duvidava muito que aquilo pudesse de alguma forma aumentar a popularidade do monarca.

Os civis presentes na Praça Real pareciam verdadeiramente intrigados. O mercenário ouviu várias conversas especulando sobre a possível identidade do assassino do príncipe e muitos imaginavam se ele seria o indivíduo executado naquele dia.

— E esses mercenários? — alguém perguntou, capturando a atenção do Júlio.

— São meio assustadores, né? Eu só me pergunto se realmente precisa de tudo isso para derrotar a Lança Branca. Será que o exército não seria o bastante? — respondeu uma voz feminina.

A conversa foi interrompida pelo som grave de tambores batendo. Todos os presentes olharam para o palanque montado à frente da estátua do Rei Zanok. Júlio fez o mesmo e reparou que uma escolta se aproximava trazendo o tal criminoso poderoso.

O mercenário arregalou os olhos e ficou boquiaberto. Ele deu uma espiada nas pessoas mais próximas apenas para perceber várias delas tão surpresas como ele. Júlio ficou com vontade de questionar alguém apenas para saber se estava vendo certo, mas a cena não dava abertura a enganos. Os homens da capital de Istkor estavam conduzindo uma jovem que era pouco mais que uma criança para ser executada.

A menina ruiva estava coberta de hematomas e manchas de sangue, mas mantinha a cabeça erguida e a postura ereta. Júlio arriscaria dizer que ela havia sido educada dentro de um castelo dada a elegância do caminhar dela.

O silêncio foi ficando cada vez mais forte. O espanto e a incredulidade com que as pessoas miravam a suposta criminosa era cada vez mais evidente. A quantidade de indivíduos que tampava os olhos ou que os desviava para qualquer outro lugar era bem grande. Não é possível que alguém acredite que essa menina possa ter ajudado a matar o príncipe. E o que ganha um monarca promovendo uma execução como essa?

Os passos dela subindo os degraus de madeira do palanque ecoaram pela praça. Então, um homem truculento a segurou por trás e a colocou de frente para a multidão. Naquele momento, a menina ergueu seu rosto para que todos vissem o que havia sido feito com ela. Em movimentos rápidos, ela virou a cabeça para a esquerda, para a direita e para cima. O gesto despertou um burburinho entre os presentes e rendeu à jovem uma joelhada no meio da barriga. Ela se contorceu e tossiu, mas logo recuperou a compostura e ergueu novamente a face. Com tudo que haviam claramente feito ela sofrer, a menina não havia tido seu espírito quebrado.

Por um instante, a postura da jovem o fez se lembrar de Noëlle, que não emitiu um único grito mesmo ao ser atingida por três golpes de chibata. A postura da elfa havia sido elegante e feroz. Além disso, ela tinha o Kyrios para ajudá-la no momento em que ficara mais vulnerável. Já aquela jovem ruiva não tinha ninguém.

Um homem de pele negra e curtos cabelos pretos também subiu na estrutura de madeira e olhou para as pessoas. Júlio demorou alguns instantes para reconhecê-lo. É o cara que abriu o portão da cidade para a gente. Por um breve instante, Júlio achou ter visto uma expressão de tristeza em seu rosto, mas logo ele escondeu quaisquer sentimentos e assumiu uma postura séria.

— Saudações, povo de Blaskogar — disse ele com firmeza. — Temos hoje uma pessoa muito importante aqui. Ela parece ser só uma criança, mas, trabalhando na cozinha do castelo, tendo a confiança da família real e do exército, esta cidadã ajudou na execução do crime que chocou a nossa nação. Se nós perdemos o Príncipe Kristian, essa menina chamada Florina é tão culpada quanto a pessoa que deu o golpe fatal. Agradeço a presença de todos. Sei que anseiam por justiça e estamos lhes dando um pouco disso nesse momento.

— Eu amo a forma como o Tenente Revgar fala — sussurrou alguém perto do Júlio.

— Verdade — respondeu um homem. — Ele só podia ter esse mesmo senso de justiça para controlar os guardas que extorquem o povo.

As palavras do sujeito desconhecido fizeram com que o mercenário lembrasse de Dóris, a herbanária que Noëlle havia salvo dos guardas no dia anterior. Talvez aquele não tenha sido somente um caso isolado, então.

De qualquer modo, Júlio preferiu não se preocupar. Por mais que lhe doesse assistir a algo como o que haviam presenciado, eles estavam ali pelo ouro. E este lhes seria garantido pelo rei, não pelo povo de Blaskogar. Por mais que o guerreiro admirasse a forma como Noëlle agia, ele ainda achava que a amiga tinha se precipitado, não somente pela questão do prestígio que ele dissera a ela, mas essencialmente pelo que eles eram: mercenários, não justiceiros.

O guerreiro voltou a prestar atenção no palanque e viu que a menina estava sendo conduzida à guilhotina. Ela teria uma morte rápida e indolor.

— Você tem direito às suas últimas palavras — proclamou Revgar para que todos pudessem ouvir.

— Viva a Lança Branca! Morte ao rei! — berrou a menina.

Em seguida, a lâmina da guilhotina desceu e a cabeça ruiva rolou pelo palanque. O sangue jorrou e atingiu as pessoas mais próximas. O rosto parou virado para a estátua. Mesmo morta, a menina encarava o Rei Zanok.

Ele já havia sido responsável por muitas mortes, mas nunca conseguiria competir com a covardia do monarca e seus servos. Zylkoris observou do meio da multidão enquanto Florina morria pela lâmina implacável da guilhotina.

A cena mexeu com seus nervos. O assassino havia falhado em sua missão. O sangue daquela menina estava em suas mãos.

Em silêncio, observou as pessoas se retirando aos poucos em estado de choque. Zylkoris encarou a estátua do Rei Zanok por um breve instante. Você e seus capangas merecem perder a cabeça na guilhotina. A Florina morreu lutando pela coisa certa.

Nada que fizesse poderia mudar aquela injustiça, então o assassino se retirou da Praça Real. Ele trabalharia para que aquilo não voltasse a acontecer.

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