Capítulo 16

O sol estava no alto do céu e o calor começava a ficar insuportável. O exército estava marchando sem pausa havia algo em torno de cinco horas. Revgar sentia o suor escorrendo pela testa e por todo lugar por baixo de sua roupa.

O Arcano de Rhyfel era só mais um a olhar na direção de Paven de tempos em tempos, torcendo para que o general chegasse à conclusão de que era chegada a hora de fazer uma pausa. Não era muito difícil imaginar que os homens estivessem com fome e sede àquela altura.

Revgar limpou uma gota de suor que ameaçava cair em seu olho antes de soltar um suspiro. Com a vontade que Paven demonstrara de ver Alviora destruída, era capaz de o exército marchar até lá de forma ininterrupta. Não era uma tarefa fácil imaginar qualquer coisa que pudesse interromper a sede de sangue do general. O tenente até entendia parcialmente o ódio pela Lança Branca, mas o preço era alto demais. Que a Alexia descubra alguma forma de ajudar o povo desse vilarejo.

Alviora era um vilarejo que lembrava muito Jandikar. Revgar se lembrava de ter estado no lugar uma vez no passado. A população o recebeu muito bem, inclusive o hospedando e alimentando sem custos. Na ocasião, ele era um emissário dos Arcanos de Rhyfel e estivera no local para oferecer aulas de magia. Lembrava-se claramente das crianças animadas em contato com aquele conhecimento ao qual normalmente nunca teriam acesso em um vilarejo tão pequeno. Nenhuma delas conseguiu de fato fazer algo e ele não descobriu prodígios escondidos lá, mas todas aquelas crianças poderiam dizer que sabiam o básico sobre como magia funciona. Era irônico que, em sua segunda visita, Revgar seria o emissário da morte.

A trombeta soou em três toques curtos que tiraram o tenente das profundezas de seus pensamentos. Imediatamente, ele viu os soldados buscando algum lugar confortável para se alimentar. As poucas árvores que haviam por ali geravam grandes aglomerações de soldados desesperados por uma sombra, por menor que fosse. Entre os mercenários, a líder montou sua casa dimensional e escapou do sol.

Revgar mexeu em suas coisas para pegar uma porção de ração arcana. Não fazia questão de alimentos de maior qualidade. A mentira mais contada da história da existência deve ser que essa porcaria substitui comida de verdade, mas em uma marcha como essa, dá pro gasto.

Após mastigar, o tenente se afastou alguns metros antes de golpear o chão com a mão direita e fazer com que alguns pilares de pedra se projetassem do solo. Mais alguns movimentos e, diante do olhar de todos, havia ali uma casa de pura rocha. O acabamento era inexistente, mas o interior oferecia a sombra que ele queria.

Revgar amarrou seu cavalo do lado de fora e se sentou no interior da casa improvisada. A ausência do sol castigando a sua pele era um alívio absurdo. Sinceramente, como eu não pensei nisso antes? É muito mais prático que montar uma tenda e, se bobear, o resultado é bem melhor. Acho que vou até deixar isso aqui para a posteridade.

— Gostei dessa obra de arte — elogiou Alexia, entrando sem pedir licença.

— Boa tarde pra você também — disse Revgar, sentando-se apoiado em uma das paredes, que estavam geladas por terem acabado de sair de dentro da terra.

— Já comeu? Eu ia te chamar para uma refeição a sós.

— Comi minha ração arcana, mas posso te fazer companhia — respondeu o Arcano de Rhyfel.

Alexia se aproximou do amigo e se sentou ao lado dele. Ela fechou os olhos e soltou um leve gemido de prazer ao contato de suas costas com a pedra fria. Revgar não precisou perguntar para saber que ele não era o único aliviado com a trégua do calor.

— Sério, você precisa fazer isso em todos os acampamentos de agora em diante. Eu prometo não encher a sua paciência por um ano!

— Negócio fechado — respondeu o tenente, dando uma risada de leve.

— Revgar, sobre aquilo que conversamos ontem — ela começou a sussurrar tão baixo que Revgar teve que se concentrar para ouvir direito. — Tem um pequeno grupo de soldados seguindo minhas ordens. Não é grande coisa, mas é o suficiente para fazer diferença. Aparentemente, um deles tem família em Alviora e conhece rotas de fuga para que as pessoas escapem.

— Isso é ótimo — respondeu o tenente, falando mais alto do que gostaria.

— É lógico que é ótimo — disse ela em tom de voz normal. — Eu garanto que a minha comida é a melhor de Istkor. Eu comprei da melhor cozinheira de Blaskogar — completou, olhando para Revgar com olhos arregalados e apontando para os ouvidos. — Fala baixo, pelas chamas de Angra — sussurrou.

— Desculpe — respondeu Revgar, dessa vez mantendo o tom de voz devidamente discreto. — Do que o rapaz precisa?

— De cobertura. Parece óbvio, mas se souberem que ele ajudou moradores de Alviora, será executado, então...

— Mas como fazemos isso? Não me parece intuitivo.

— Eu vou te dar uma missão que parece simples, mas pode ser duríssima. Na próxima reunião do Conselho, convença-os a fazer um cerco ao invés de invadir Alviora diretamente. Com o tempo que isso ganharia, o nosso agente poderia infiltrar a cidade e evacuar o maior número possível de pessoas.

— Isso é algo difícil. O Paven parece muito determinado a simplesmente promover outro massacre. Se vou ter que bater de frente com ele, gostaria de, pelo menos, saber o nome dos soldados que vão executar essa missão.

— Os nomes morrem comigo. Nem mesmo você, Revgar, deve saber. Se o Paven descobrir que existem rebeldes no exército, ele é capaz de torturar até mesmo um membro do Conselho para descobrir o quer saber. Quanto menos você souber, meu amigo, melhor.

Revgar não gostou de ouvir aquilo. Encarar o Paven em uma reunião do Conselho era bem complicado e, se o general suspeitasse que o tenente tinha envolvimento em algo que poderia ser interpretado como traição, a pena de morte era uma possibilidade real. Ele realmente queria saber por quem arriscaria a própria vida, mas preferia não entrar em conflito com a Alexia. Assim, ele assentiu.

— Ótimo — disse Alexia. — Obrigada por almoçar comigo, Revgar. Vamos fazer mais refeições juntos, que nem lá em Blaskogar. Tenho sentido falta de passar tempo contigo — afirmou ela com a voz discretamente elevada, mas ainda assim soando natural.

Ela piscou para ele antes de se virar e sair da casa de pedra. O tenente assistiu à amiga sair e, então, se levantou. Após sacudir a poeira, ele olhou para o exterior e se preparou mentalmente para o que teria que fazer.

Revgar saiu da casa de pedra e viu que alguns poucos soldados ainda terminavam suas refeições. Andou em meio àqueles homens até achar um mensageiro, que descansava deitado, aproveitando uma pequena fração da sombra de uma árvore.

— Rapaz — chamou o tenente, fazendo com que o sujeito se colocasse em pé rapidamente e batesse continência.

— Sim, senhor — respondeu.

— Quero que localize cada membro do Conselho e os informe que o Tenente Revgar está convocando uma reunião hoje à noite, entendido?

— Entendido, senhor.

Então, Revgar retornou à casa de pedra e descansou até que a marcha fosse retomada. Ele teria o dia inteiro para pensar nas palavras que usaria à noite, rezando para que Dastarar o inspirasse, porque convencer o Paven de qualquer coisa parecia uma missão impossível.

O sol da alvorada já brilhava no horizonte, pintando o céu em tons de roxo. A brisa suave deixava a sensação térmica mais agradável, algo que era comemorado mentalmente por Noëlle sempre que acontecia desde a sua chegada em Istkor.

O caminho solitário na planície era silencioso, exceto pelos mosquitos que vez ou outra se aproximavam. Nada fazia com que a Fênix Corvina perdesse o foco no objetivo.

A questão do dragão em Grof não saía de modo algum dos pensamentos dela. Afinal, o que faria um dragão atacar de forma tão repetitiva uma cidade de humanos. Por um lado, o gado era uma presa fácil e aqueles monstros eram fortes o suficiente para atacar sem serem incomodados, mas a grande maioria dos dragões eram tão inteligentes quanto qualquer ser racional e sabiam da forte tendência à retaliação. Aquelas criaturas só costumavam agir daquela forma quando eram poderosas o suficiente para subjugar uma cidade inteira, o que claramente não era o caso, tendo em vista que a própria Noëlle conseguira espantá-la.

— Se você falasse, tenho certeza de que me ajudaria a elucidar esse mistério, Kyrios — comentou a elfa, acariciando o pescoço do arkanvolf. — Espero que o Pico da Neblina tenha as respostas que estamos procurando.

Noëlle seguiu olhando para o horizonte. Nunca viera à região, mas a montanha que estava buscando era relativamente famosa pelo mundo inteiro. Completamente envolta por uma neblina densa o ano inteiro, sendo somente visível de perto, o nome do local era bastante sugestivo. Se os relatos que ouvira antes estivessem corretos, a neblina era, na verdade, uma espécie de parede mágica. Uma vez atravessada, via-se tudo normalmente do outro lado.

A escolha do esconderijo parecia muito adequada. Uma vez lá dentro, o dragão não era visto por ninguém. Isso valia para qualquer um que quisesse fazer todo tipo de atrocidade, inclusive. Aquilo deveria suscitar uma atuação proativa das comunidades próximas de patrulhar constantemente o Pico da Neblina, garantindo que criminosos não se estabelecessem no local. O que poderia levar um dragão a ser ignorado nessas circunstâncias?

Noëlle só conseguia imaginar duas possibilidades. A primeira seria a ideia de as autoridades estarem se detendo por medo. Não era algo tão distante da realidade imaginar o temor de enviar homens atrás de um dragão sem saber o que eles poderiam encontrar no Pico da Neblina. A outra hipótese seria os líderes locais estarem de alguma forma aliados ou terem responsabilidade nas ações da criatura, de modo a não quererem que aquilo fosse investigado, porque poderia comprometê-los de algum modo. Nenhuma das ideias parecia convincente o bastante.

Um vento mais frio soprou e tirou a elfa dos seus pensamentos. Sem nenhuma razão aparente, a temperatura ambiente começou a diminuir, fazendo com que ela se curvasse de leve, abraçando o próprio tórax e esfregando as mãos nos braços.

A mudança repentina no clima era incômoda e, por um instante, Noëlle sentiu falta do calor infernal. Entretanto, ela sentia que aquilo devia ser um indicador de que o Pico da Neblina estava por perto. Assim, seguiu adiante, abraçando Kyrios para se aproveitar do calor dele.

À medida que avançava, a Fênix Corvina sentiu a brisa se converter em uma ventania. Totalmente despreparada para aquilo, tinha a sensação de ter a pele chicoteada pelo ar gelado. Seus dentes já batiam involuntariamente ao passo que seu corpo tremia, mesmo estando sentada em um lobo elemental de fogo.

Se não bastasse o frio congelante, uma névoa fraca pareceu se instalar. Era possível enxergar alguns metros de raio sem impedimento, mas não muito mais que isso. Quanto mais a elfa avançava, pior a neblina ficava. Em pouco tempo, não conseguia mais enxergar um palmo à frente de seu nariz.

Mergulhada naquele branco infinito, Noëlle não fazia ideia da direção correta a ser seguida, por isso, manteve-se indo em frente. O frio intenso a deixava tentada a retornar, com cada músculo de seu corpo implorando por um pouco de calor. Eu posso voltar aqui depois com roupas decentes. O pensamento era doce como o aroma de flores do campo, mas ela precisava resistir. Não cheguei até aqui para retornar a Grof de mãos vazias. Não temos tempo para desperdiçar dessa forma.

Após mais alguns metros percorridos, o frio ficou tão intenso, que a Fênix Corvina sentiu o corpo amolecendo. Se desmaiasse ali, talvez nunca mais acordasse e tudo aquilo teria sido em vão. Mais uma vez, a vontade de recuar ganhou força no coração da elfa. Se eu morrer, do que adianta ganhar tempo? Entretanto, embora a mente estivesse sendo tentada, o coração continuava aquecido pela determinação. Eu nunca abandonei uma missão no meio. Não será dessa vez que isso acontecerá!

Noëlle deu dois tapas de leve no dorso do Kyrios, que abandonou o trote e iniciou um galope pelo nevoeiro. Era perigoso que esbarrassem em algo, mas eles precisavam sair logo dali, antes que o frio os congelasse pela eternidade. Assim, acelerados, eles correram para o âmago da neblina.

Quando mais corria, mas o vento gelado parecia cortá-la e chicoteá-la. Entretanto, Noëlle se recusou a voltar atrás. Ela alcançaria o Pico da Neblina e descobriria o que havia ali. Nenhuma névoa mágica a impediria de concluir sua missão. O frio parecia congelar até mesmo os seus ossos, mas a Fênix Corvina não pararia por nada. Então, quando a temperatura já era tão baixa que ela não sabia se conseguiria sobreviver mais um passo, ela se sentiu atravessando algo como um portal. A névoa desapareceu completamente e a temperatura aumentou gradativamente até ficar agradável. Diante dela, uma montanha enorme e imponente.

— Chegamos, Kyrios — sussurrou Noëlle, respirando aliviada.

A elfa se aproximou do Pico da Neblina, buscando trilhas que pudesse seguir e qualquer pista que pudesse indicar a presença de um dragão na região. Aproveitou também para procurar por quaisquer indícios de que pessoas tivessem estado presentes ali recentemente.

O terreno montanhoso era bastante irregular, como era de se esperar. Para que não precisasse deixar Kyrios para trás, ela evitou os pontos mais íngremes, mesmo que isso significasse andar o dobro. Ter um arkanvolf ao seu lado era muito valioso, ainda mais em um cenário no qual ela poderia acabar enfrentando um dragão.

Noëlle se deslocou por entre as rochas, sempre atenta aos arredores. O lugar parecia completamente inabitado por muito tempo. Ao menos até aquele momento, a Fênix Corvina não encontrara um único posto de guarda ou evidências da presença de humanoides por ali. Possivelmente, o frio excruciante para entrar era justificativa suficiente para fazer com que o Pico da Neblina não fosse patrulhado. Talvez a explicação da negligência das autoridades seja relativamente simples.

Independentemente de qualquer coisa, a elfa queria encontrar o dragão. Aquele era o grande motivo que a fizera se desviar de sua rota. Seres tão grandes costumavam deixar rastros proporcionais e encontrá-los não costumava ser um desafio tão grande. Bastava atenção aos sinais.

Noëlle ouvia o vento sibilando na montanha, mas nenhum outro ruído era captado por seus sensíveis tímpanos élficos. O olfato, no entanto, captou algo diferente. Um odor putrefato estava sendo conduzido às suas narinas.

A Fênix Corvina começou a se deslocar na direção daquele cheiro, contornando as rochas enormes que se multiplicavam pelo corpo do Pico da Neblina e ainda evitando as irregularidades mais íngremes, fazendo pedras menores de degraus em caminhos menores, mas que podiam ser percorridos pelo Kyrios. De repente, ouviu um estalo, como se algo tivesse se quebrado. Olhou para trás, mas não havia nada lá. Tentou captar pelo olfato, mas o vento não a favorecia. Ela optou por não conferir a origem do som. Deve ter sido algum bicho menor daqui mesmo da montanha.

Noëlle viu duas pedras maiores cercadas por várias menores em forma de pilares hexagonais, sendo um padrão rochoso bem curioso que a elfa só tinha visto uma vez antes. Ela subiu cautelosamente e deu uma espiada. Diante de seus olhos, havia um esqueleto e restos mortais de um animal, que parecia um boi. O cadáver estava em frente a uma caverna de dimensões gigantescas. Acho que encontrei a casa do nosso dragão.

Olhando para os restos do boi morto, a Fênix Corvina imaginou ter encontrado a fonte do cheiro que a guiara até aquele ponto, mas ao se aproximar percebeu que o odor exalado pelo animal até era desagradável, porém não passava nem perto do cheiro de putrefação que saía da caverna.

— É agora... — disse a elfa para si mesma. — O que será que está aqui dentro?

Encarou a entrada daquela caverna imensa por alguns instantes antes de dar o primeiro passo. Manteve o nível de atenção no máximo enquanto se deslocava.

O odor putrefato era ainda mais desagradável dentro daquele lugar. Por vezes, respirar era desagradável e Noëlle sentia o estômago revirando na barriga. A quantidade de matéria podre para gerar um cheiro daqueles devia ser descomunal.

O silêncio era tão absoluto que o som mais alto era a respiração da elfa, que tentava reduzir ao máximo cada um de seus ruídos. Observava o chão para evitar que seus pés chutassem alguma pedrinha sem querer e pisava com a leveza que lhe era peculiar, fazendo com que nenhum ruído fosse emanado de seus passos. Ela não pretendia lutar naquela manhã, mas o faria se preciso fosse. Para tanto, não abriria mão do fator surpresa.

Caminhou lentamente e parecia que nunca pararia. Que a caverna era ampla, ela já sabia desde que entrara lá, mas a profundidade do local era ainda maior. A elfa sentia que o leve declive era simplesmente interminável.

À medida que adentrava a caverna, o ambiente ficava mais escuro, mas a luz não se fazia completamente ausente. Quando Noëlle se deu conta disso, ela olhou para trás, notando que já estava longe da entrada, distância grande o suficiente para que o esperado fosse não distinguir cores. Entretanto, ela ainda enxergava com clareza o marrom da terra sob seus pés e o azul-escuro das estalactites sobre sua cabeça. Eu acho que esse lugar passou por algum processo arcano para que humanos pudessem enxergar aqui dentro. Quem faria isso em uma caverna completamente isolada e habitada por um dragão?

A pergunta ecoou pela cabeça da elfa, que conseguiu formar teses em sua mente. Talvez aquela magia fosse mais antiga que o dragão, feita por algum povo ancestral que habitara o Pico da Neblina. Possivelmente, fosse mais recente e realizada por alguém que quisesse transformar a caverna em alguma coisa. Noëlle sabia que as ideias eram terrivelmente vagas, mas não dispunha de elementos para imaginar nada mais concreto.

A Fênix Corvina percebeu, então, que o declive começou a ficar mais inclinado. No começo, a diferença não era grande, mas, após alguns metros, ela precisou se encostar nas pedras próximas às laterais da caverna para não correr o risco de escorregar. O chão podia não ser tão escorregadio, mas com aquela inclinação, deslizar na terra não era difícil de acontecer.

A temperatura ficava gradualmente mais baixo à medida que Noëlle adentrava aquela caverna. Não chegava a ser gélida como na neblina que cercava a montanha, mas era o bastante para fazer com que o vapor de sua expiração fosse visível. O frio aliado ao odor putrefato dava um ar tenebroso àquela caverna que incomodava bastante.

O som de algumas pedras rolando pelo declive pôde ser ouvido claramente pela elfa e ecoou pelo silêncio fúnebre daquele lugar. Ela olhou para trás, buscando a fonte do ruído, mas não havia nada lá. Deve ter sido um rato ou algo parecido.

Após mais algum tempo naquela descida, Noëlle viu a caverna se ampliando, revelando um espaço colossal no coração da montanha. Aquele lugar era tão grande que, por um instante, a elfa se sentiu uma formiga diante da imensidão do que observava. À frente dela, uma ribanceira quebrava o caminho que vinha seguindo. Acima, uma fenda permitia a entrada da luz solar, que banhava todo aquele ambiente.

Por um instante, Noëlle achou que sua missão seria frustrada, mas observou os arredores e viu algo que a deixou boquiaberta. No local onde a borda da ribanceira encontrava a parede da caverna, havia nada menos que uma escada de pedra em espiral. Então essa caverna foi habitada em algum momento.

A Fênix Corvina pisou no primeiro degrau e o testou, percebendo que a estrutura se encontrava firme. Eu não sei quem fez isso aqui, mas, se tiver a idade que parece ter, foi um trabalho sensacional. Ela desceu com cautela, tomando o máximo de cuidado para não chamar a atenção de qualquer criatura que possivelmente habitasse aquele lugar.

Embora a imponência do local deixasse Noëlle admirada, o odor putrefato e o frio aumentavam a cada degrau que ela descia. Quando inspirava, a elfa sentia as narinas arderem como se estivessem em chamas e seus olhos lacrimejavam como que implorando a ela que saísse de lá. Eu definitivamente nunca senti um cheiro de podridão tão forte em toda a minha vida.

Terminou de descer e se esgueirou por algumas pedras mais altas, tentando captar uma visão ampla do local. O espaço era gigantesco e, no centro, havia uma cadeia de pedras muito altas dispostas em círculo. O aspecto era natural, mas o posicionamento era tão perfeito que era difícil crer que não houvera alguma intervenção no local.

Para andar até aquelas pedras, Noëlle precisava se expor. Saiu de onde estava escondida, mantendo os sentidos em alerta. Se houvesse realmente um dragão ali, aquele era o momento em que a Fênix Corvina estava mais vulnerável a ele. Cada passo precisava ser leve como uma pluma.

Enquanto se movia, sentia a luz do sol em sua nuca, aliviando um pouco o frio que fazia ali. Entretanto, a própria tensão era o bastante para que toda sensação desagradável fosse momentaneamente esquecida. Os segundos em que ela atravessou o espaço aberto mais pareceram uma eternidade, com cada contato de seus pés com a pedra fria da caverna dando a sensação de que seria o suficiente para trazer um dragão voando diretamente até ela.

Ao chegar ao destino, Noëlle logo buscou o ponto mais propício para se ocultar nas sombras, tornando a fazer uma varredura com o olhar. Permitiu-se relaxar um pouco ao novamente não encontrar qualquer sinal da presença de qualquer ameaça.

Com calma, contornou a cadeia de pedras, buscando uma abertura para descobrir o que elas escondiam. Não demorou muito para que achasse o espaço de alguns metros e foi naquele instante que seu coração acelerou. Eu não acredito no que meus olhos veem.

Ao ultrapassar as pedras, Noëlle ficou frente a frente com uma figura familiar. Era exatamente o mesmo dragão que ela encontrara quando estava chegando em Grof. As escamas pretas eram maculadas por feridas difusas em estado avançado de necrose. Em alguns pontos, ossos estavam à mostra. Um dos globos oculares estava ausente e uma das asas estava quase completamente corroída. O estado físico da criatura estava claramente muito pior do que quando ele e a elfa se enfrentaram. É como se nenhuma das feridas que ele recebeu estivesse cicatrizando.

Um pouco de observação foi o suficiente para que a elfa percebesse algo talvez mais interessante, mas que fugia muito de sua área de conhecimento. Ao redor do dragão, havia três pilares, os quais eram ligados por linhas pintadas no chão, formando um enorme triângulo. Internamente, havia uma circunferência que tangenciava cada lado da forma maior e cobria a área inteira em que o dragão descansava. Tanto no espaço interno do círculo como entre ele e o triângulo, inúmeras runas estavam dispostas, as quais estavam muito além da compreensão da Noëlle. A única coisa que parecia clara para ela era que havia uma relação direta entre aquela criatura e os três pilares. Talvez, se eu destruir essa estrutura, eu possa resolver o problema do dragão de forma prática e efetiva.

A Fênix Corvina, então, encarou o dragão. Com o forte cheiro pútrido, ela não achava que usar fogo seria uma boa ideia. Não entendia bem do assunto, mas sabia que material apodrecido era inflamável e aquele odor indicava para ela que uma flecha do Fen'nala ou uma baforada do Kyrios poderiam desencadear uma explosão de proporções catastróficas. Entretanto, ela tinha as Kurwyns. Um corte fundo da adaga no pescoço da criatura daria fim à vida da criatura, que já parecia bastante debilitada. Acho que é mais fácil só terminar o serviço.

Noëlle desembainhou uma das adagas e se aproximou em passos curtos. O dragão mal veria o que estava se passando. A elfa pisou dentro do círculo mágico e, então, de forma ágil e precisa, cortou a distância para o oponente indefeso. Com um golpe preciso, permitiu que a lâmina deslizasse pelo pescoço da criatura. Sangue roxo e viscoso escorreu da ferida, o dragão começando a se debater em seguida. Impiedosamente, a elfa fez mais cortes no monstro, garantindo que ele não tivesse chance alguma de sobreviver.

O cheiro que saía das feridas era a designação mais precisa de podridão. O próprio aspecto dos novos cortes era horrendo. O sangue que escorria parecia estar putrefato e os tecidos internos da criatura estavam em estado aparente de necrose, soltando um líquido esbranquiçado ao serem violados, o qual se misturava ao sangue e potencializava aquele fedor. Noëlle sentiu suas vísceras se revirando e não conseguiu conter o conteúdo presente em seu estômago. Vomitou em cima da criatura morta e limpou a boca, horrorizada com o que testemunhava. Eu não sei o que fizeram aqui, mas definitivamente não fui eu quem matou esse dragão.

Então, Noëlle reparou em algo que fez seu coração parar por um instante e toda cor de seu rosto sumir. O tórax da criatura ainda se movia ritmicamente, como se dormisse pacificamente e nada houvesse acabado de acontecer. Eu destruí o pescoço dele. Não é possível.

Trêmula, a elfa se deslocou até o pilar mais próximo. Claramente, o que ela estava presenciando fugia completamente da sua alçada de conhecimento, mas sair dali sem tentar todas as possibilidades não seria razoável. Se eu derrubar essas coisas, o dragão deve ser afetado de alguma forma.

A Fênix Corvina chegou ao pila e o observou. Era muito bem polido e havia uma pequena reentrância cúbica nele a cerca de um metro do chão, que parecia feita para que algo fosse colocado ali, mas que se encontrava vazia. Várias runas o cobriam da base até a ponta apiculada superior. Noëlle tentou tocar a estrutura para testar o quão firme ela era. Imediatamente, ela sentiu um pulso de energia repelindo sua mão e, então, ouviu um rugido. O dragão acordara.

Em uma situação normal, ela tentaria lutar. Já havia afugentado aquela mesma criatura no passado. Entretanto, tinha acabado de ver a criatura sobreviver a múltiplos golpes mortais, literalmente mantendo-se dormindo no processo. Não pagaria para ver se teria melhor sorte com o dragão acordado. Sem pensar duas vezes, correu por entre as pedras, assobiando para que Kyrios se aproximasse. O arkanvolf iniciou um galope pelas costas da elfa, abaixando de leve a cabeça e jogando a parceira para cima. A Fênix Corvina projetou o corpo para trás, segurando o pescoço do lobo elemental com as mãos, e sentiu as pernas girando no ar antes de se acomodarem na montaria ao fim da acrobacia.

O dragão devia estar um pouco letárgico após acordar, porque não pareceu esboçar qualquer esforço inicial de seguir a elfa. Melhor para Noëlle e Kyrios, que dispararam escadaria acima com toda a velocidade que conseguiam. Enquanto o lobo elemental mantinha seu galope em ritmo aumentado, a Fênix Corvina olhava diversas vezes para trás, tentando descobrir se o dragão ia de fato persegui-los.

Após subir os degraus, ela tomou um susto ao se deparar com um humano olhando para o abismo. Sem tempo para descobrir se era inimigo ou aliado, a elfa passou por ele, gritando no caminho.

— Corre!

Pelo som dos passos no chão, Noëlle soube que ele seguiu a recomendação. Estava realmente curiosa sobre a identidade do sujeito, mas teria que aguardar para ter uma resposta. Sair daquela caverna era sua prioridade máxima no momento.

Repentinamente, ouviu um som que a fez sentir mais uma vez um frio no estômago. O rufar de asas que parecia a batida de um tambor vindo mais do fundo da caverna. O dragão estava vindo sedento pelo sangue dela.

Com a velocidade do Kyrios, a travessia da caverna era muito mais rápida que na chegada, mas a tensão ainda era muito grande. Gradativamente, o som das asas do dragão podia ser ouvido com mais força, como se o tambor acelerasse seu ritmo em uma música intensa e sádica.

— Corre mais rápido! — berrou Noëlle para o humano, que estava ficando bastante para trás.

À frente, a Fênix Corvina conseguiu ver o fim do túnel. Conseguiria sair da caverna em mais algumas passadas do arkanvolf. Entretanto, a proximidade do dragão já podia ser percebida não somente pelo som das asas, mas também pelo odor putrefato que crescia a cada instante. Por um instante, Noëlle desejou ter o olfato menos apurado de um humano, pois suas narinas voltaram arder como quando ela encontrou o monstro adormecido.

Ignorando a sensação desagradável, a Fênix Corvina invocou o Fen'nala, mas não preparou a primeira flecha. Não queria estar dentro da caverna no momento do disparo. Esse humano precisa sair primeiro que o dragão.

Kyrios seguiu em ritmo intenso e a luz externa alcançou Noëlle. Mais alguns passos e ela colocou os pés no dorso do arkanvolf e saltou, girando no ar e aterrissando na saída da caverna e de frente para o dragão. O humano que encontrara corria desesperadamente e o monstro vinha ainda razoavelmente atrás, mas muito mais rapidamente. A elfa posicionou o arco e armou a flecha, se concentrando. A cada segundo, o projétil ficava mais energizado. As pequenas chamas que normalmente eram vistas na ponta estavam se convertendo em uma verdadeira labareda.

Por alguns instantes, Noëlle esvaziou a mente e fechou os olhos. Tudo que ela percebia eram os passos do humano ecoando pela caverna e o som das asas do dragão se aproximando. O disparo precisava sair no momento perfeito. Ela aguardou, sentindo a flecha aquecendo os dedos. Aos poucos, o calor se espalhou pelas mãos e os braços, alcançando o corpo inteiro. Quanto mais energia ela concentrava, mais cuidado precisava ter para reter tudo ali, não permitindo que o projétil se dissipasse no ambiente, colocando tudo a perder.

Finalmente, ouviu o que precisava. Os passos do humano se aproximaram e a elfa abriu os olhos. O sujeito estava quase fora da caverna. Atrás dele, o dragão vinha exibindo seus dentes e sua face deformada. Noëlle viu o rapaz cruzar a saída e soltou os dedos da flecha, permitindo que esta voasse para dentro da caverna.

— Pro chão! — gritou Noëlle, deitando-se e protegendo a cabeça.

A flecha já estava enorme quando saiu do arco, mas ganhou ainda mais volume enquanto zunia e invadia a caverna, atingindo em cheio a boca do dragão. Imediatamente, a seta explodiu e as chamas se espalharam para todos os lados, varrendo tudo que encontraram no caminho. O som de pedras caindo ecoou pela caverna e Noëlle imaginou que havia feito um bom estrago no interior, mas definitivamente ela não iria lá dentro conferir.

Fraca, ela se levantou com dificuldade. Concentrar aquele volume de energia com o Fen'nala era muito desgastante e seria necessário bastante sono e comida para que voltasse às condições ideais. Sentindo as pernas fraquejando, a Fênix Corvina permitiu que o arco voltasse ao interior do corpo e seguiu até o Kyrios. O arkanvolf se abaixou para que Noëlle pudesse montá-lo. Ela encostou a cabeça no pelo do animal e tudo ficou escuro.

Zylkoris observa a elfa desacordada no colo do lobo vermelho e se aproxima, mas o animal rosna para ele. Aqueles dois deviam ter um laço muito forte e ele não era tolo o suficiente para desafiar um bicho daquele tamanho.

— Amigo, amigo — disse o jovem. — Só quero ajudar.

Ele se sentiu idiota ao tentar convencer o lobo. Era óbvio que o animal não devia entender uma única palavra do que dizia. Percebendo que não conseguiria se aproximar da elfa, ela apenas andou na direção de onde tinha deixado Nevasca amarrada.

Para sua surpresa, o lobo veio trotando logo atrás dele. Zylkoris também ficou impressionado com o fato de que a elfa em seu dorso mal balançava. O animal não apressava o passo e se equilibrava de forma impressionante, tudo aparentemente para cuidar de sua montadora indefesa.

Percebendo a presença do lobo, Zylkoris tentou se aproximar mais uma vez, mas o animal tornou a rosnar e a mostrar as presas enormes. Respeitando o espaço do animal, o assassino seguiu adiante até alcançar a Nevasca. Em todo o percurso, o lobo foi atrás dele, mantendo sempre uma distância segura.

Montado na égua, o assassino iniciou o trote de volta para Grof. Cansado, ele sonhava com um bom quarto na Caneca Real. Percebeu o lobo elemental o seguindo, mas não se manifestou. Sentia que teria ainda a oportunidade de falar com a elfa quando ela acordasse. Até que esse momento chegasse, era relevante mantê-la segura.

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