Capítulo 11
Noëlle despertou do transe ainda de madrugada. Se dependesse dela, já estaria pronta para seguir viagem, mas olhou para o lado e viu Sabrina ainda em sono profundo. Humanos dormem demais, pensou. Com cuidado para não fazer barulho, a elfa saiu da cama e andou na ponta dos pés até se retirar do quarto. Então, ela fechou a porta.
A Fênix Corvina seguiu pela primeira vez para a cozinha. Como era de se esperar, o local era muito pequeno, mas a elfa foi surpreendida ao encontrar um forno. Não que ela tivesse lenha para usá-lo, mas aquilo reforçava o quando aquela casa arcana era completa.
Além do forno, a cozinha tinha basicamente um balcão e alguns armários. Dentro deles, Noëlle encontrou pratos, talheres, copos e uma série de instrumentos que somente usaria se viesse a preparar uma refeição ali. Por sorte, aquilo não seria necessário tão cedo. Em um dos armários, a elfa encontrou um estoque de ração arcana. Aquela coisa sem gosto seria mais que suficiente para alimentar Sabrina e a Fênix Corvina por semanas.
Aqueles biscoitos mágicos podiam não ser apetitosos, mas a simples visão deles fez o estômago da Noëlle roncar e a saliva surgir em sua boca. Ela tinha ficado um tempo razoável sem comer após toda a confusão do dia anterior.
A elfa pegou uma porção de ração arcana e saiu da cozinha, enquanto a comia aos poucos. A sensação de inchaço na boca era aliviada quando não se comia o biscoito inteiro de uma vez. Vou me lembrar disso de agora em diante. Assim é bem melhor para engolir.
Depois de comer, Noëlle saiu da casa. No momento em que passou pela porta, sentiu um pouco de calor e, ao olhar para trás, viu que o casebre estava transparente. Aparentemente, ele a identificava como usuária e se mantinha visível para ela. Mesmo sem entender muito do assunto, era impossível não se impressionar com a engenharia arcana empregada ali.
A elfa andou um pouco pela grama, ouvindo os insetos cantando sob a luz da lua. A brisa que soprava era refrescante, deixando a vontade de que o sol demorasse um pouco mais para aparecer, algo muito distante da realidade no verão.
Após poucos minutos, Noëlle encontrou uma rocha um pouco mais alta que a grama. Subiu nela e se sentou. De lá, pôde observar o horizonte e relaxar um pouco. Aproveitou cada instante de paz, algo raro em sua vida, ainda mais naqueles dias. Desde que saí de Foraisi-Mór, não imaginava que me veria fugindo de alguém de novo. Se o exército descobrir que eu desertei a missão, acho que não é só o meu pescoço que vai ser cortado na guilhotina.
Como uma elfa renegada, Noëlle nunca se permitia esquecer de verdade o passado. Sua tribo era cruel com pessoas como ela e, caso fosse encontrada, seria morta. O fato nunca abandonava seus pensamentos. Após a chegada em Kör, com um oceano a separando de sua origem, ela finalmente pôde colocar a cabeça em um travesseiro e dormir sem medo de acordar degolada. Era irônico pensar que tudo mudara tão rapidamente, mas ela não se arrependia. A simples lembrança de como conhecera Sabrina era a certeza de que a decisão correta fora tomada.
Noëlle tornou a se levantar e voltou para o casebre. Aproveitou a brisa fresca até o último segundo antes de entrar novamente. No quarto, encontrou Kyrios deitado, ainda descansando. O pobre arkanvolf fora levado ao limite, não sendo difícil entender a necessidade dele de recuperar as energias. No entanto, ela se surpreendeu ao encontrar Sabrina acordada.
— O sol ainda não nasceu — comentou a elfa. — Você não está mais com sono?
— É que quando não te vi, fiquei com medo de que eles tivessem encontrado a gente — a voz da moça ruiva veio embargada. Foi só naquele momento que Noëlle reparou que ela tinha chorado.
— Olha, Sabrina — a elfa disse com doçura, sentando-se na cama ao lado da moça. — Eu entendo como se sente. Já tive muitas noites assim no passado.
— Já tentaram te... — ela travou na frase, mas Noëlle entendeu muito bem.
— Não, mas eu sou jurada de morte pela minha tribo. Por muito tempo, eu passava as noites em claro achando que iam mandar um assassino atrás de mim.
— Eu não fazia ideia.
— Tirando o Júlio e a Aura, você deve ser a única pessoa nesse continente a saber disso. A única coisa que posso te dizer é que, uma hora, fica... suportável. No começo, o medo não dá trégua, mas, depois, fica possível tocar a vida.
— Espero que esteja certa, porque parece que vejo aqueles soldados toda vez que fecho os olhos.
— Eu sei, mas vai passar. E, se eles ressurgirem dos mortos, eu mato aqueles desgraçados mais uma vez. Enquanto estiver comigo, você estará protegida.
— Obrigada, Noëlle.
— Agora, dorme mais um pouco. Nosso trajeto vai ser muito cansativo.
— Tudo bem, mas posso te pedir uma coisa?
— Claro — respondeu a elfa, com um sorriso amigável, olhando Sabrina com ternura.
— Fica aqui.
A jovem humana voltou a dormir e Noëlle se manteve ao lado dela até o fim. A elfa gostaria de ter tido alguém para lhe dar aquele apoio no passado e, assim, não poderia se furtar de ajudar Sabrina da melhor forma possível.
☼
Zylkoris acordou com a luz do sol fazendo seus olhos doerem. Deu um bocejo longo e se espreguiçou antes de sair da carroça. A caravana havia avançado bastante enquanto ele dormia, o que ficava bem claro pelas várias casas de madeira que os cercavam. Chegamos em Krisuvik. Isso que eu chamo de sono abençoado.
Olhou ao seu redor e viu Dasgrid conversando com Liam. O mercador gesticulava bastante e parecia falar bem mais, enquanto o anão estava ouvindo de braços cruzados e com uma expressão séria no rosto.
— Bom dia — disse o assassino ao se aproximar da dupla.
— Bom dia — responderam os dois.
— Zylkoris, eu queria que você seguisse conosco até Grof e tentei convencer o Dasgrid que essa é a melhor opção, mas ele acha muito arriscado te manter na caravana e estou começando a concordar com ele — disse o mercador.
— Vamos arrumar um cavalo pra você e queremos que siga adiante antes da caravana — o anão foi direto ao ponto.
— Concordo com essa alternativa — limitou-se a dizer Zylkoris.
— Você deu o primeiro passo para a nossa salvação. Não pense que nos esqueceremos — sussurrou Liam, dando um forte abraço no assassino logo depois.
Dasgrid se virou e começou a andar para longe. Zylkoris teria ficado para trás se o anão não se virasse e fizesse um gesto para ser seguido. Andaram por um tempo na rua principal da cidadela de Krisuvik e foi possível observar os belos jardins que enfeitavam as casas de madeira. A variedade de flores gerava um colorido bonito, que enchia o lugar de vida. Na região central, uma árvore enorme com largo tronco avermelhado e vistosas folhas roxas se destacava. Se Zylkoris fosse de outro lugar, passaria por ali sem dar muita atenção à planta, mas ele era nascido lá. Ele sabia que aquela não era uma árvore qualquer. Era uma krisuvik, a árvore que dava nome à cidadela.
A lenda em torno da árvore vermelha de folhas roxas era antiga. Dizia-se que nenhum lugar com uma krisuvik pereceria diante das forças das trevas. Embora a história já houvesse desmentido o mito diversas vezes, era fato que a seiva daquela árvore era letal para demônios e podia ser usada para destruir objetos nefastos, como a filactéria de um lich ou a pedra base de um portal para os Nove Infernos.
Após passarem em frente a uma taverna malcheirosa, cheia de mercadores que tinham acabado de chegar a Krisuvik na caravana e bêbados locais, Dasgrid virou à direita, entrando em um beco estreito fedendo a comida estragada. Zylkoris apenas seguiu, xingando mentalmente o anão por não escolher um caminho menos fétido. Seguiram por várias ruelas como aquela, fazendo o assassino ficar com medo de acabar com aquele cheiro aderido a suas roupas.
Depois de um bom tempo, ingressaram em mais um ambiente com cheiro desagradável, mas, ao invés de lixo, o odor era emitido por algo mais próximo do que eles buscavam. O esterco dos cavalos incomodava bastante, ainda mais pela grande quantidade, dando a impressão de que o encarregado pelo serviço não estava fazendo um trabalho muito bom.
— Escolhe o que quiser, monta e vai embora.
— É só pegar?
— É. Anda logo! Não temos o dia inteiro.
— Cadê o dono do lugar?
— O desgraçado fornece para o exército.
Dasgrid disse as palavras mágicas. Zylkoris não era um criminoso. Ele jamais roubaria de uma pessoa comum, mas, ao saber que aqueles cavalos seriam entregues a soldados, o assassino não pensou suas vezes antes de pular a cerca e se aproximar dos animais, que pastavam. Observou rapidamente os animais para fazer sua escolha. O anão do lado de fora estava com o rosto vermelho de raiva pela demora do assassino, mas Zylkoris queria fazer uma boa escolha. Botou os olhos em uma égua branca e se aproximou lentamente. O animal observou o humano e não se incomodou muito. Assim, ficou fácil para o assassino chegar perto e fazer um pouco de carinho no rosto da égua. Então, ele tentou montar.
A égua tinha gostado do carinho, mas não gostou muito daquele desconhecido em suas costas. Ela relinchou alto o bastante para que metade de Krisuvik a ouvisse e saltou tentando tirar Zylkoris de cima dela. O humano se segurou firme, abraçando-se ao pescoço dela e firmando os pés no corpo do animal.
— Calma, moça, calma — repetiu várias vezes o assassino, enquanto tentava domar a égua brava.
Ela continuou se debatendo, dando uma sequência de coices no ar. Tentou várias vezes empinar para que Zylkoris caísse, mas o humano se segurou a ela com firmeza. Então, vencida pelo cansaço, parou. O assassino aproveitou para fazer mais carinho nela e tentar conduzi-la. Funcionou. Passado o momento inicial, a égua aceitou seu condutor.
— Você estava me testando, não foi? Queria ter certeza que teria alguém forte te conduzindo.
Zylkoris deu um sorriso e desceu do animal, sempre se lembrando de fazer mais carinho. Rapidamente, a égua deixou a hostilidade para trás. O humano ganhara a confiança dela.
Em um dos cantos daquele cercado, o assassino notou um espaço secundário, o qual os animais não tinham como acessar. Zylkoris foi até lá, tendo que pular a cerca para entrar nele. A sombra naquele ponto fez com que o humano olhasse para cima e fizesse um agradecimento silencioso a qualquer deus que pudesse estar ouvindo.
Ali, havia vários equipamentos voltados para cavalos. Desde capacetes até chicotes. A maioria passava longe do que o assassino poderia ter interesse em usar. Entretanto, encontrou algo verdadeiramente útil, ainda mais considerando que pretendia seguir por uma distância considerável montando aquela égua branca. Uma sela. Claramente, o material tinha qualidade. Não iam empurrar qualquer porcaria para o exército, não é?
Zylkoris pegou apenas o último item encontrado e o levou para sua nova égua. Não foi muito difícil colocar a sela nela, que ficou parada, dando apenas uma pequena bufada. O assassino, então, correu para o portão e o abriu. Logo depois, retornou à égua e fez mais um pouco de carinho nela antes de montá-la.
Ele iniciou um trote e buscou se aproximar dos outros cavalos, dando tapas nos que conseguiu alcançar, apenas para assustá-los. Estes se colocaram em galope e espalharam o susto até mesmo para os animais distantes do humano. Não demorou para que aproveitassem o portão aberto para fugir.
Então, Zylkoris notou um rapaz, que devia ter mais ou menos a mesma idade dele, sair sabe-se lá de onde e correr atrás dos cavalos, ignorando completamente a presença do assassino. Seja lá quem for o dono desses bichos, não escolheu muito bem o cuidador deles.
Ele foi até o portão da cerca e o escancarou. Em seguida, retornou à sua nova montaria e a conduziu para fora dali, mas não sem antes dar algumas voltas no espaço e assustar os outros cavalos, que saíram de lá assustados e se puseram a galopar pela cidade. Logo depois, Zylkoris viu um rapaz desesperado sair da pequena loja ao lado gritando pelas ruas e tentando alcançar os animais.
Dasgrid pulou a cerca e se aproximou rapidamente do Zylkoris, que ofereceu a mão a ele. A égua deu alguns passos para trás ao ver a aproximação do anão, mas se acalmou quando Zylkoris fez um pouco de carinho nela. Então, Dasgrid subiu na égua, ficando atrás do humano. Finalmente, a dupla disparou para longe dali.
Foram cerca de dez minutos até que os dois parassem em um lugar qualquer que considerassem seguro e o anão pudesse descer. Zylkoris também desmontou. Não poderia deixar Krisuvik para trás sem antes dar um forte abraço em alguém que o tinha ajudado tanto.
— Obrigado por tudo, Dasgrid. Boa viagem.
— Desejo o mesmo, rapaz. Dê um belo nome à égua que escolheu. Ela será uma companheira e tanto.
— Não tenho a menor dúvida disso.
Eles se cumprimentaram mais uma vez antes que cada um pudesse seguir seu próprio caminho. Zylkoris nunca se esqueceria da ajuda dada por Dasgrid e Liam. No entanto, aquilo não teria valor algum se a Lança Branca falhasse. O assassino olhou para frente e saiu em galope, deixando sua cidade natal para trás.
☼
Quando Sabrina acordou, a luz do sol já entrava com tudo pela janela, banhando cada centímetro do quarto. A humana se levantou preguiçosamente e deu um sorriso simpático ao notar que Noëlle ainda estava ao seu lado. Ela saiu da cama, quase pisando em cima do Kyrios e se esticou antes de ir para fora do quarto.
A elfa seguiu o mesmo trajeto da humana e a conduziu até a cozinha, mostrando a ração arcana a ela. Sabrina não reclamou ao comer. Ao contrário, ela devorou a pequena porção e deu um sorriso largo de satisfação após se alimentar.
Noëlle voltou ao quarto e recolocou sua armadura de couro. Logo depois, foi até Kyrios e fez um pouco de carinho no arkanvolf, que abriu os olhos e deu uma lambida na mão da elfa.
— Está na hora — disse ela ao animal. Este parecia resmungar enquanto se erguia.
Noëlle voltou à sala, onde Sabrina já a aguardava. A humana já estava com uma expressão muito melhor do que no dia anterior, mas a tristeza ainda estava lá. Não tinha como culpá-la, afinal, a moça ruiva perdera praticamente tudo em algumas horas.
— Precisamos seguir viagem agora — afirmou a elfa.
— Para onde estamos indo, exatamente? — questionou Sabrina?
A pergunta era simples, mas foi só naquele momento que ela percebeu que não tinha a resposta. Com o exército, ela não tinha que pensar nisso, afinal não eram os mercenários que conduziam a marcha. Tudo que a Fênix Corvina sabia era que tinha que ir para o leste.
— Só sei que tenho que encontrar a Lança Branca antes do exército — disse Noëlle.
— Eu posso te ajudar com isso — revelou Sabrina. — Mas tenho um pedido a te fazer em troca.
— Desculpe bancar a desconfiada, mas como você pode me ajudar?
— Eu sou uma lanceira — disse ela, fazendo com que os olhos da Fênix Corvina se arregalassem. — Antes que Jandikar fosse destruída, eu trabalhava com contrabando de comida. Eu desviava parte da cota do exército para ajudar a alimentar a Lança Branca.
— Essa me pegou despreparada — confessou Noëlle, ainda boquiaberta.
— Posso te falar tudo que eu sei, mas não é muita coisa — disse ela. — Os lanceiros externos, como eu, não recebem muita informação para evitar traições e, principalmente, confissões sob tortura. Eu nunca diria isso para ninguém, mas você salvou a minha vida. Não poderia viajar contigo escondendo algo assim.
— Estou plenamente convencida — afirmou a elfa, com uma leve risada desajeitada. — E o que você quer em troca?
— Como ir até minha irmã em Blaskogar está fora de cogitação, eu não tenho a quem recorrer. Em qualquer lugar que você me deixe, eu serei apenas uma desabrigada — explicou Sabrina. — Quero seguir viagem contigo até o final.
— Não tem nenhum lanceiro que possa te acolher? — perguntou a Fênix Corvina, erguendo uma sobrancelha.
— Em tese, sim — respondeu. — Mas como vou descobrir essas pessoas? Eu não posso sair fazendo o gesto da Lança Branca para todo mundo ver.
— As coisas vão ficar bem perigosas ao meu lado — alertou a elfa. — Sua vida estará em risco o tempo inteiro e eu não tenho como te proteger o tempo inteiro. Você sabe o básico de alguma forma de combate?
— Meu pai era um caçador. Ele me ensinou a atirar com uma besta. Minha mãe era uma curandeira. Ela passou para mim bastante conhecimento sobre várias misturas medicinais. Sempre tive mais interesse nessa parte, mas se arrumar uma besta pra mim, eu me viro também.
— Eu aceito, Sabrina — concedeu Noëlle. — Quando chegarmos na próxima cidade, eu tento comprar uma besta pra você poder se defender. Agora, para onde você acha melhor nós seguirmos?
— A cidade mais próxima é Grof — afirmou a humana. — Se queremos encontrar a Lança Branca, devemos seguir para Andakilsa. Se seguirmos pela estrada, acho que chegaremos lá em uns dois dias. Se a ideia é chegar antes do exército, acredito que temos uma margem grande. Duvido que eles façam esse trajeto em menos de três ou quatro dias.
— Não sei se concordo com a parte da segurança, mas é melhor que ficar o tempo todo nessa grama alta daqui. Talvez seja menos cansativo pro Kyrios com um terreno mais regular.
— Mais um ponto positivo para a estrada — disse Sabrina, esboçando algo próximo de um sorriso. — Obrigada por tudo, Noëlle.
— Dessa vez, eu que agradeço — respondeu a elfa.
As duas se levantaram e, uma após a outra, se retiraram da casa. Kyrios foi logo atrás e se sentou na grama, aguardando a elfa e a humana.
— Noëlle, cubo — sussurrou a Fênix Corvina e a casa encolheu rapidamente, emitindo um brilho ao retornar à sua forma original. A elfa pegou o pequeno artefato e o colocou na sua bolsa.
Noëlle foi até seu arkanvolf e montou nele, estendendo a mão para que Sabrina fizesse o mesmo. Então, as duas seguiram viagem. Kyrios foi trotando pela grama alta até que alcançassem a estrada. Com o sol ardendo, o grupo foi no trajeto para Grof.
☼
O exército se colocou em marcha assim que o sol nasceu, mas, com um contingente tão grande, a velocidade de deslocamento passava longe de impressionar. Revgar sugerira a divisão em batalhões, até para evitar possíveis emboscadas, mas Paven fora inflexível.
— Nós marcharemos todos juntos. Quero que a Lança Branca sinta o nosso poder de devastação.
Mais devastação? As palavras do general deixaram o Arcano de Rhyfel sem alternativa. Assim, ele trotava em seu cavalo junto aos soldados.
Revgar via os olhos daqueles homens e sentia o impacto do massacre em Jandikar. Havia poucos sorrisos, ao contrário de quando deixaram Blaskogar para trás. Ninguém deixaria de lutar por Istkor, mas nenhum deles devia esperar que guerreariam daquela maneira.
O ventou soprou e, em uma raridade de verão, nuvens se formaram no céu, fazendo um pouco de sombra sobre o exército. Um pequeno alívio para os guerreiros que libertariam Istkor dos rebeldes.
Paven marchava à frente de todos, como um pastor guiando seu rebanho. Revgar olhava para o seu superior e não conseguia deixar de admirá-lo. Aquele homem estava disposto a entregar tudo pelo sucesso da missão, pagando o preço que fosse necessário.
Mas qual será o limite? O pensamento era incômodo, mas Revgar sentia que era necessária uma reflexão. Executar uma criança depois de interrogá-la violava os princípios morais seguidos por gerações em Istkor. A ameaça da Lança Branca era uma prerrogativa que a maioria aceitaria, inclusive o tenente. Entretanto, Jandikar mostrava que aquilo não era um ato isolado.
O que Rhyfel pensaria disso? O deus do combate apoiaria aquela guerra, pois o assassinato do príncipe a tornava válida. Entretanto, como um seguidor daquela divindade, existiam princípios conflitantes.
— Não vi nenhum terremoto ou pedras voando lá em Jandikar — disse Alexia, dando um susto em Revgar, que quase caiu do cavalo. — Resolveu não usar sua mágica em Jandikar? — Revgar percebeu o tom provocativo na voz da amiga, mas preferiu ignorar essa parte.
— Eu faço magia elemental de terra — explicou o tenente. — Gasto muito mais energia para impactar um combate do que alguém que mexa com ar ou fogo.
— É mesmo? — Alexia colocou tanta ironia na voz que Revgar teve que respirar fundo para não gritar.
— Sim, é mesmo — disse ele. — Você tem noção de como magia funciona, não? Reserva e canais de mana, custo de esforço, depleção...
— Por que você não refresca a minha memória? — perguntou, fazendo com que Revgar tivesse certeza de que ela estava sendo irritante de propósito.
— Cada pessoa tem uma reserva de mana, que nada mais é do que aquele líquido azul que sai misturado com o sangue quando alguém se corta. Dificilmente, é visível a olho nu se a pessoa não tiver uma reserva grande, mas todos têm. Outra coisa que todo mundo tem é a forma para liberar esse líquido para fora do corpo.
— Canais de mana — disse Alexia. — Vocês, magos, liberam mana, que interage com alguma coisa no ar e gera a energia necessária para a magia.
— Isso — confirmou. — A energia que eu preciso gerar para erguer uma pedra é muito maior do que para mover um pouco de ar. Magos de terra são magníficos na engenharia, mas em combate, precisamos poupar nossa energia para quando é mais relevante. Nós atingimos a depleção com mais facilidade do que quem mexe com coisas mais leves. E depleção é uma palavra bonitinha para morte após a mana acabar e a magia consumir cada pedacinho do seu corpo, não deixando nem mesmo os ossos.
— Em Emêral, eles têm magos guerreiros especialistas em magia de terra. E se é tão ruim assim, porque você não faz um ventinho ou uma fogueira?
— Porque são técnicas diferentes, Alexia — explicou. — Não é só uma questão de gerar energia, mas de saber canalizá-la e moldá-la de acordo com o que eu quero.
— Bom, obrigado pela aula, mas eu realmente só puxei esse assunto para torrar a sua paciência, o que é um desafio por si só. Percebi que você está muito reflexivo hoje, Revgar. O que aconteceu? — perguntou Alexia, cheia de ironia, enquanto fazia um carinho em Bravo, seu garanhão preto.
— É sério isso? Quer discutir na frente de todos, agora? — respondeu o tenente por entre os dentes.
— Só queria saber como meu querido amigo está se sentindo após nossa gloriosa vitória contra aqueles poderosos rebeldes — cada palavra saía da boca dela cheia de acidez.
— O que você quer, Alexia? — Revgar suspirou e levou as mãos ao rosto.
— Quero saber quais são nossos próximos movimentos. Nada mais.
— Nós vamos para Grof. É tudo que precisa saber.
— Por que não Krisuvik? — Alexia levou os dedos ao queixo e ergueu uma sobrancelha.
— Porque os rebeldes não estão lá.
— Se o dizes, eu acato as decisões do grande Conselho.
— E é melhor que o faça, Alexia. Para o seu bem — Revgar não queria, mas a frase soou como uma ameaça. E os olhos arregalados da mulher mostraram que ela entendeu o recado.
— Bom saber — respondeu ela antes de se afastar.
Revgar queria conversar com ela e esclarecer sua fala, mas o faria depois. Aquele não era o momento adequado para se preocupar com suas amizades. O Arcano de Rhyfel olhou para frente e se concentrou na marcha. Naquele ritmo, demoraria cerca de quatro dias para que o exército alcançasse Grof.
☼
Júlio não vira Noëlle na marcha, mas não estava preocupado. Depois do pequeno desentendimento na noite anterior, não era difícil imaginar que a amiga estivesse evitando falar com ele. O guerreiro tinha dúvidas se a elfa havia realmente falado a verdade no dia anterior, mas que razões ela teria para mentir? De qualquer modo, ele estaria aberto quando Noëlle quisesse conversar. Eles já haviam passado por desavenças piores que aquela.
Enquanto trotava em seu cavalo preto e olhava os mercenários marchando, Júlio suspirou e olhou para o céu. De repente, uma memória invadiu sua mente. A mulher e a criança mortas e o homem saindo da casa dando risada. Ele quisera tanto ter aquela vida como aventureiro, caçando recompensas e lutando em guerras, mas, por um instante, desejou estar de volta a Nova Aurora, trabalhando como ajudante no açougue do pai. Entretanto, afastou o pensamento em seguida. O guerreiro lembrava bem de como Noëlle achava ridículo que ele quisesse abandonar a vida de tranquilidade e, talvez, ela estivesse certa, mas o rapaz sabia que aquela rotina pacata não era para ele.
A noite havia sido péssima. Júlio tivera pesadelos e quase não conseguira dormir. Mas era a primeira guerra dele, então, o guerreiro deduziu que aquilo era normal. A segunda batalha seria mais fácil. E a terceira viria com naturalidade. Ninguém nasce veterano.
Júlio ergueu a cabeça e manteve o foco. Não chegara tão longe para desistir.
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