Capítulo 10

— Chegamos — disse Noëlle, entrando em sua tenda.

Sabrina fez o mesmo logo em seguida, com Kyrios sendo o último. O arkanvolf se acomodou no chão, enquanto as mulheres se sentaram no cobertor feito com couro de urso que a elfa usava como cama.

— Impressionante! Chegamos aqui sem sermos vistas — comentou Sabrina.

— É uma das minhas especialidades — respondeu a Fênix Corvina. — Isso e ficar irritada, mas vamos ignorar essa última parte. Agora, vou te pedir para ficar aqui. Tem uma pessoa que vai ajudar a gente, mas preciso que confie em mim.

— Se quisesse me fazer algum mal, já teria feito. O Kyrios vai ficar aqui?

— Sim — confirmou Noëlle. — Ele vai te proteger.

Chegar ao acampamento do exército sem ser vista não havia sido um desafio muito grande, pois a Fênix Corvina sempre montava sua tenda longe dos demais. A escuridão e o fato de que todos deviam estar exaustos facilitavam ainda mais seu trabalho. Entretanto, o que iria fazer seria difícil.

A dor das três chibataras que recebera ainda em Blaskogar estava viva na memória da elfa. Ela estava prestes a assumir o risco de receber vinte nas costas. A simples ideia fez com que sentisse um frio na espinha. Terei que ser muito convincente.

Noëlle andou com discrição por entre as tendas, mantendo-se sempre nos locais mais escuros possíveis. A maioria dos soldados e mercenários estava desatenta e seus olhares baixos eram um trunfo para quem queria se manter oculta. A Fênix Corvina tinha apenas a lua como testemunha.

Quando dois soldados passaram aparentemente bêbados, a elfa se escondeu atrás de uma tenda e os observou. Uma meio-elfa de cabelos prateados apareceu e fez um gesto para que eles a acompanhassem. Talvez álcool e sexo fosse a resposta deles para tentar tirar da mente o que haviam vivenciado em Jandikar. Não era uma solução que agradasse particularmente a Fênix Corvina, mas ela não os julgaria.

Não demorou muito para que Noëlle terminasse sua caminhada. A pequena casa de madeira se destacava em meio às tendas dos mercenários. Normalmente, não haveria nada de suspeito em uma visita à líder de sua companhia mercenária, mas aquelas não eram circunstâncias comuns.

A Fênix Corvina olhou ao seu redor três vezes antes de sair das sombras e bater na porta da casa dimensional. Cada segundo de demora para que Aura a atendesse era uma tortura, com Noëlle torcendo para que nenhuma alma curiosa botasse a cabeça para fora de sua tenda, querendo saber quem estava fazendo barulho àquela hora.

— Rápido, entra — sussurrou Aura, logo após abrir a porta.

Noëlle ergueu a sobrancelha, surpresa com a atitude de sua chefe, mas obedeceu prontamente. Aura acabara de agir como se já esperasse pela sua subordinada e seu rosto não trazia a leveza de costume. A mulher estava com os olhos inchados e o rosto vermelho.

A líder dos Lobos Negros se sentou em seu sofá e fez sinal para que a Fênix Corvina a imitasse. Um momento de silêncio se seguiu, enquanto as duas se encaravam. Os olhos da Aura brilharam e Noëlle enxergou as lágrimas por um instante, um momento de fragilidade que poucos tinham oportunidade de testemunhar. Uma gota escorreu pelo rosto daquela elfa e caiu no sofá.

— Se eu tivesse te ouvido — Aura suspirou. — Por Lira, seu eu tivesse te ouvido...

— Aura... — começou Noëlle.

— Eu ainda fiz que fosse açoitada em público com o coitado do Júlio dando as chibatadas — interrompeu-a a líder dos Lobos Negros. — Esses excrementos de dragão vermelho mentiram para nós. Tem que ser retardado para acreditar que estávamos atacando rebeldes.

— Aura, eu salvei uma civil e ela está na minha tenda — revelou a Fênix Corvina de uma vez. — Ela se chama Sabrina e perdeu os pais. Dois soldados estavam a ponto de estuprá-la, então avancei contra eles e os matei. Por favor, não me dê vinte chibatadas.

Mais um momento de silêncio se instalou. A líder dos Lobos Negros encarou sua subordinada com olhos arregalados, mas um sorriso se formou no rosto dela e um pouco de brilho foi devolvido a seus olhos. Ela agarrou a cabeça da Noëlle com as duas mãos e deu-lhe um beijo na testa.

— Bendita seja Lira pelo dia em que te chamei para se juntar aos Lobos Negros — disse Aura. — Obrigada, Noëlle. Obrigada por ter me desobedecido e ter permitido que houvesse um pouco de honra para nós nessa caminhada das trevas.

— Calma, você está me agradecendo? Eu já estava preparando minhas costas para serem maculadas de novo pela sua chibata! Enfim, eu preciso levá-la a um lugar seguro, mas como fazer isso se estamos em marcha?

— Simples. Rebeldes te capturaram durante o ataque ao vilarejo.

— Os líderes do exército saberão que é mentira — retrucou Noëlle.

— E o que eles farão? Se juravam que só havia rebeldes naquele lugar, eles teriam que expor a verdade para te incriminar. Na verdade, duvido que percebam a ausência de uma mercenária. Podem crer até que você tenha morrido no combate. Caçadores fizeram algumas vítimas, você poderia ser uma delas.

— E depois? O que eu faço quando Sabrina estiver em segurança?

— Depois de deixá-la em segurança, você vai seguir para o leste. Supostamente, é para lá que estamos marchando, não? — Aura deu um longo suspiro. — Quero que descubra quem é essa tal de Lança Branca, afinal. Tudo que descobrir, você vai me informar.

— Acho que me perdi — comentou Noëlle. — Como vou te informar alguma coisa?

— Espera aqui — pediu ela.

Aura se levantou e cruzou a sala, entrando em um quarto. Enquanto ela estava ausente, a Fênix Corvina se permitiu relaxar um pouco no sofá, olhando para o teto. Ela entrara ali com o temor de ser chicoteada mais uma vez na frente de todos os mercenários, uma humilhação para qualquer um, ainda mais para uma mulher. Entretanto, naquele momento, a líder dos Lobos Negros a estava ajudando a conspirar contra o exército.

A situação podia parecer irreal, mas com o tanto que conhecia de sua chefe, Noëlle sentiu vergonha de si mesma por sequer ter duvidado dela. Ao mesmo tempo, era um alívio saber que tinha tomado a decisão certa.

Aura voltou, andando com um sorriso no rosto. A conversa parecia realmente tê-la animado. A chefe se sentou ao lado da subordinada e tirou algo de sua bolsa.

Era um pequeno cubo preto com runas vermelhas em cada uma de suas faces. Noëlle analisou o artefato, mas não o reconheceu. Sua experiência com itens mágicos se limitava ao Fen'nala e à bolsa dimensional em sua perna, além de alguns poucos itens mais simples e um ou outro em especial, mas nada que a lembrasse sequer remotamente do que estava diante de seus olhos.

Aura estendeu o objeto para Noëlle, que o aceitou. A textura era lisa na parte preta e áspera nas runas, que emitiam uma luz tênue e um pouco de calor.

— Isso, meu bem, é uma casa dimensional — afirmou Aura. — Não é tão grande como a minha, mas vai te servir bem. É só dizer "Noëlle, casa" que ela vai se transformar. Quando sair, fala "Noëlle, cubo" que ela retorna a essa forma. Dentro, tem uma runa preta ao lado da porta. É só encostar a mão nela que a casa fica invisível. Também trouxe isso aqui.

Aura exibiu uma safira belíssima do tamanho de um punho fechado. A joia por si só devia valer uma fortuna. Considerando que havia uma runa inscrita nela, era difícil imaginar quanto aquilo custava.

— Isso é uma pedra comunicadora. Para ativá-la, diga "Aura" e, então, diga a sua mensagem. Tem um rubi aqui no meu quarto que vai brilhar para me informar que você entrou em contato. Quando eu fizer a mesma coisa, a safira vai brilhar. Basta dizer "Noëlle ouvindo" e a minha voz será reproduzida pela pedra. Esses dois artefatos são caros e vou te cobrar cada moeda se alguma coisa acontecer com eles. Quero que só use a pedra dentro da casa, pois até onde sabemos, até a grama das planícies age como informante desse exército maldito. Vou dar um comando de gravação para cada um dos artefatos e quero que você repita os comandos que eu te falei somente para que eles captem a sua voz e não sejam utilizáveis por mais ninguém, tudo bem?

Noëlle assentiu e ouviu Aura sussurrar termos em uma língua que ela não reconheceu. Então, o cubo da casa dimensional emitiu uma projeção etérea de uma de suas runas.

— Noëlle, casa — disse Fênix Corvina, no que sua chefe fez um gesto para que ela prosseguisse. — Noëlle, cubo.

Aura voltou a falar na língua estranha e a projeção se desfez. Então, ela fez a mesma coisa com a safira. Esta emitiu um brilho forte o bastante para chamar atenção, mas não o suficiente para doer os olhos.

— Aura — disse a subordinada e fez uma pausa, pois imaginou que não teria que dizer uma mensagem fictícia. — Noëlle, ouvindo.

Assim que terminou de falar, o brilho se desfez e Aura entregou os artefatos para a Fênix Corvina. Ela encarou a subordinada por um tempo antes de dar um sorriso cheio de ternura.

— Não vou te decepcionar — prometeu Noëlle.

— Tá aí uma coisa que você nunca fez, não é?

— E vocês? — perguntou a Fênix Corvina. — Vão continuar lutando essa guerra sem sentido?

— Vou me reunir com a Matilha e definir isso com calma, mas acho a deserção uma opção improvável, infelizmente. Um exército que executa uma criança e massacra um vilarejo não teria problema em nos caçar. Suas informações ajudarão bastante, porque temos que saber pelo menos se a tal da Lança Branca é realmente melhor que o exército.

— Me parece improvável que não sejam — comentou Noëlle.

— Talvez esteja certa, mas há inúmeros casos de governantes ruins com rebeldes tão ruins quanto. Quem me garante que não é um grupo só preparando para instituir sua própria ditadura ao ascender ao poder?

— Eu não tinha pensado por essa perspectiva.

— Você é muito passional e impulsiva, Noëlle. Você é jovem, só tem cento e dezoito anos, mas acredito que saberá controlar seus sentimentos e fazer um diagnóstico preciso de qual lado merece nosso apoio.

— O que faremos com relação ao dinheiro do rei?

— Nenhum dinheiro compensa a mancha na reputação que essa guerra deixa em nossos currículos. Não somos mercenários comuns e queremos continuar assim. Agora, Noëlle, é hora de ir. Tente não ser vista e fuja o mais cedo possível.

— Obrigada, Aura — disse Noëlle.

A Fênix Corvina deu um abraço apertado em sua chefe antes de se levantar. Ela deu uma última olhada para a elfa que a tinha recrutado doze anos antes.

— Fique bem — desejou a subordinada.

— Você também — respondeu a chefe. — E que Lira te proteja.

Então, Noëlle saiu. Com a lua como única testemunha, esgueirou-se pelas sombras ruma à sua tenda.

Júlio chegou exausto ao acampamento. Ele ainda estava impressionado com o nível da vitória contra os rebeldes da Lança Branca. À exceção do besteiro que ele matara e de alguns poucos arqueiros, o guerreiro não viu ninguém capaz de sequer arranhar o exército. Aquilo o incomodava.

Com uma superioridade tão grande e com tantos rebeldes tentando fugir, Júlio achava muito mais razoável fazer prisioneiros e até deixar que os inimigos derrotados pudessem escapar. A não ser que algum deles fosse um líder influente, o que definitivamente não devia ser o caso, qual era a necessidade daquele massacre?

A imagem da mulher e da criança dilacerados, porém, era o que dominava sua mente. Eles estavam ali pelo ouro e não para julgar quem os contratara, mas aquele nível de crueldade era repulsivo. Não havia a menor necessidade de matar aquelas pessoas. Muito embora qualquer um pudesse em tese estar associado aos rebeldes, a linha de ação adotada pelo exército parecia muito além do razoável.

Preocupado com a própria saúde mental, Júlio evitou se deter por muito tempo naqueles pensamentos. Um bom desempenho naquela missão era a chave para seu futuro nos Lobos Negros. Ao contrário da Noëlle, que era a queridinha da Aura, ele sabia que sua permanência na companhia tinha que ser garantida a cada missão. De fato, Júlio tinha a sensação de que, se não fosse amigo da Fênix Corvina, já teria sido dispensado sem a menor cerimônia.

Dentro da sua tenda, ele encontrou tempo para limpar sua lâmina antes de dormir. Enquanto o fazia, sua mente retornou à batalha. Lembrou-se das mortes brutais que testemunhara. Não culpava os soldados: estavam todos cumprindo ordens. O próprio guerreiro gostaria de ter matado menos, mas o comando era matar. O pensamento era claramente contraditório com o que ele sentia em seu âmago, mas Júlio era um mercenário e seu compromisso maior, no fim das contas, era com o pagamento. E ele não deixaria de receber trezentas moedas de ouro por pena. Eu não sou mais aquele filho de açougueiro incapaz de se virar sozinho. O rapaz se lembrou das primeiras missões com os Lobos Negros, nas quais Noëlle fazia praticamente tudo sozinha. Era difícil acreditar no tamanho do progresso dele desde então.

Mas existia uma linha naquele trabalho que Júlio não conseguia cruzar. O guerreiro já havia tido muitas missões em que sentira grande prazer de participar, mas aquela guerra era uma cujas histórias ele preferiria que ficassem escondidas debaixo do tapete. Não havia prazer ou orgulho em massacrar um vilarejo. Então, a imagem do homem rindo após matar a mulher com a criança veio à memória e somente um sentimento teve espaço. Nojo.

Nada era mais desprezível que cometer uma atrocidade como aquela. Júlio gostaria de dizer que teria lutado para impedir que aquilo acontecesse, mas nem ele tinha certeza. O ouro pode comprar a minha dignidade? A pergunta era dura e o guerreiro não tinha resposta.

Júlio queria muito conversar com a Noëlle. Ele gostaria de saber como a amiga tinha se saído no combate. E se ela encontrou algum oponente mais forte? Então, o rapaz sentiu a espinha gelar. Pessoas morrem até nas batalhas mais fáceis. A ideia tirou completamente o sono dele. Ele tentou se lembrar dos rostos que observara ao chegar no acampamento, mas não conseguiu se recordar de ter visto a elfa.

O guerreiro sentiu o coração acelerar e suas mãos ficaram suadas. Ele se ergueu e andou de um lado para o outro na tenda com as mãos na cabeça. Se ela tivesse morrido, a notícia teria se espalhado pelo acampamento. Todo mundo ficou sabendo da morte do bardo. Mas aquele pensamento não foi o suficiente para acalmá-lo. Ele precisava ver a Noëlle.

Então, Júlio saiu da tenda. O silêncio do lado de fora era sepulcral. Provavelmente, todos por lá estavam dormindo. Ele teria o devido cuidado para não acordar ninguém. Seguiu pelo acampamento na maior velocidade que conseguia sem fazer barulho. No caminho, passou por uma tenda em que ouviu uma mulher gemendo. Uma campanha de guerra e tem gente que acha oportunidade para se divertir.

A tenda da Noëlle estava ficando mais próxima. Júlio sentiu uma leve pontada de dor nos lábios e foi só naquele momento que ele percebeu que os estava mordendo. Passou a mão na cabeça mais uma vez. A Noëlle é muito competente e não morreria com facilidade, pensou. Repetiu aquilo em sua mente incontáveis vezes.

Finalmente, ele chegou lá. A tenda da elfa estava diante dele e bastava entrar e olhar para a amiga. Tudo se acalmaria. Então, como se tivesse surgido literalmente do nada, Noëlle brotou ao seu lado.

— O que você está fazendo, Júlio? — disse ela, falando tão baixo que o guerreiro teve dificuldade para escutar.

— Queria saber se você estava bem — afirmou.

— Obrigada pela preocupação — ela parecia não conseguir focar o olhar nele, como se estivesse com medo de ser vista. — Estou ótima.

— Tem certeza que não há nada de errado? — questionou Júlio.

— Absoluta — garantiu, ainda com os olhos inquietos.

— Eu vou entrar. Podemos conversar melhor do lado de dentro.

— Não — negou categoricamente. — Eu não quero conversar agora. Preciso descansar.

— Noëlle, eu te conheço há tempo demais. Sei que tem algo errado.

Júlio botou a mão na entrada da tenda e fez menção de entrar, mas sentiu seu braço sendo puxado pela amiga. Ela o encarou com o cenho franzido e com o rosto vermelho. Até a respiração dela pareceu ficar mais pesada. Por um instante, ele teve certeza de que um berro viria em sua direção, mas Noëlle respirou fundo.

— Com que direito você quer entrar na minha tenda assim? Quer saber o que tem lá dentro? Tem um homem nu me esperando. Eu tenho direito à minha privacidade, sabia?

A informação atingiu Júlio como se um dragão pisasse no peito dele. Ele abriu a boca para falar, mas as palavras não se formavam. Enquanto encarava a elfa à sua frente, não conseguia sequer piscar. Suspirou e se preparou novamente para dizer algo, mas estacou no fato de que não havia o que ser dito. A ideia de Noëlle arrumando um amante era desagradável, mas ele sabia que não tinha direito de impedi-la de se relacionar com quem quer que fosse. Eles não eram um casal, embora o guerreiro gostaria muito que fosse diferente.

Feliz por ver a amiga viva, mas sentindo um aperto no coração, Júlio deu um meio-sorriso antes de se virar e sair. Aparentemente, Noëlle era realmente muito mais habituada à realidade da guerra. Que ela se divirta bastante nesta noite.

Quando Noëlle viu Júlio, sua vontade era de revelar toda a verdade e convidar o amigo para se juntar a ela. O guerreiro era, junto com a Aura, a pessoa em que a Fênix Corvina mais confiava, mesmo após o evento das três chibatadas. Entretanto, a missão à sua frente era espinhosa. Era algo que teria que encarar sozinha.

A mentira que escolhera não havia sido muito bem pensada. Noëlle não queria que o amigo pensasse que ela abria as pernas para qualquer um durante uma campanha de guerra. De fato, pelo tempo que se conheciam, era surpreendente que o guerreiro tivesse, de fato, acreditado.

Havia um boato que corria por entre os membros da guilda de que Júlio e Noëlle eram um casal. A elfa sabia que não era verdade, mas nunca fizera esforço para desmenti-lo por conveniência, afinal, o rumor afastava pretendentes indesejados. Entretanto, o guerreiro já havia se declarado para ela em três oportunidades e a Fênix Corvina havia sido categórica ao afirmar que não se relacionava com humanos. O motivo era muito simples. Enquanto Júlio envelheceria e morreria, Noëlle continuaria jovem. Assim, ela só tinha vontade de se envolver com outro elfo. Isso não significava que partir o coração do amigo era agradável e, por isso, considerou sair da tenda e dar uma desculpa melhor. Desistiu somente por ser uma péssima mentirosa e pela certeza de que acabaria inventando uma história ainda pior. Quando tudo aquilo acabasse, ela se explicaria e tudo ficaria bem.

Noëlle ficou alguns instantes na frente da tenda observando Júlio ir embora. O amigo não olhou para trás uma única vez sequer. Ela sentiria falta dele na jornada que se iniciaria.

— Temos que ir embora agora — disse a Fênix Corvina, após entrar na tenda.

Suas coisas mais importantes, como comida, mudas de roupa e dinheiro, ficavam sempre na bolsa dimensional em sua perna. Por isso, a única coisa que a elfa quis pegar foi o cobertor de couro de urso. O resto podia ser abandonado.

Se Sabrina tinha algo a dizer, ela guardou para si mesma. Noëlle imaginou que a moça estivesse aterrorizada com tudo que tinha vivido nas últimas horas e queria consolá-la de alguma forma, mas isso teria que esperar.

Kyrios correu com Noëlle e Sabrina em suas costas. Mesmo percebendo que o arkanvolf estava ficando cansado, a elfa não permitiu que ele reduzisse o ritmo até que tivesse certeza absoluta que havia conseguido abrir uma distância considerável do exército.

A brisa noturna soprava e era como se a arqueira estivesse ouvindo os soldados sussurrando. A lembrança do massacre em Jandikar ficaria marcada para sempre. A Fênix Corvina tinha dificuldade de acreditar que pessoas eram capazes de se sujeitar a fazer algo daquela natureza pelo simples fato de terem recebido ordens. Então, ela se recordou dos homens que tinham tentado estuprar Sabrina. A crueldade com que os dois tentavam subjugar uma jovem era horripilante. Como pessoas assim conseguem dormir?

Mas a elfa sabia que ela mesma tinha uma lista extensa de crimes cometidos. A arqueira apunhalara o antigo dono das Kurwyns após ser ameaçada, já havia aceitado inúmeras missões de roubo e se beneficiara algumas vezes de trapaças para concluir alguns trabalhos. Diante de Dastarar, ela não passaria nem perto de ser proclamada santa, mas havia muitas linhas que não conseguia cruzar. E o exército istkoriano estava ultrapassando todas elas.

Noëlle deu uma olhada rápida para a moça ruiva atrás dela. Sabrina segurava a sua cintura com força por conta do medo de cair do arkanvolf e parecia estar tensa. Em todo o trajeto, ela não dissera uma única palavra.

Após tanto se deslocarem, a Fênix Corvina avistou uma pequena colina. O ponto a deixaria com vantagem de terreno em caso de aproximação de inimigos, permitindo que ela visse o exército de longe e conseguisse fugir. Em outras circunstâncias, a primeira opção seria por uma localização mais discreta, mas a possibilidade de deixar a casa dimensional invisível fazia com que aquela cautela pudesse se tornar dispensável. A arqueira guiou Kyrios para lá. O arkanvolf já não conseguia manter o mesmo ritmo e Noëlle duvidava que estivesse satisfeito por aumentar o trajeto, mas, pelo menos, não faltava muito.

Foram mais dez minutos em um ritmo mediano até que a colina fosse alcançada. Ao chegarem no topo, Kyrios parou e Noëlle desceu, tirando o cubo da sua bolsa. Ela encarou o objeto que recebera da Aura com bastante curiosidade. Ela apertou a pedra e sussurrou:

— Noëlle, casa.

As runas do artefato emitiram um brilho tênue e o cubo começou a flutuar. Noëlle deu dois passos para trás enquanto ele desceu até a grama e se expandiu. Rapidamente, um casebre de madeira muito simples surgiu e a luz se esvaiu. A elfa abriu a porta e fez um gesto para que Sabrina e Kyrios entrassem. Ela foi logo atrás deles.

Como Aura havia informado, aquela casa dimensional não era tão grande quanto a que a líder dos Lobos Negros usava, mas serviria muito bem. A sala era confortável, tendo um sofá e uma mesa de quatro lugares. Ao lado da entrada, uma runa gravada na madeira era impossível de não ser notada. Noëlle deduziu imediatamente que era dela que Aura tinha falado. Sem pensar duas vezes, ela a tocou e viu-a mudar de cor, deixando o preto e ficando azul. Em seguida, a elfa olhou para a companheira humana.

O ambiente seguro fez com que Sabrina deixasse a máscara cair. Ela se permitiu desabar no sofá e cobriu o rosto antes de começar a chorar. As lágrimas saíam em profusão e não demorou para que a pele clara ficasse vermelha.

Noëlle não sabia muito bem como se portar naquela situação. O forte da elfa jamais fora sua habilidade de consolar. Então, ela se sentou ao lado da humana e ficou ali em silêncio, como que enviando uma mensagem à nova companheira de viagem. Você não está sozinha.

Noëlle nunca conhecera os pais. A sensação de perda que Sabrina devia estar sentindo era algo que a elfa jamais experimentara. O mais próximo que a arqueira tinha vivido havia sido quando ela fora expulsa da sua tribo, mas, ainda assim, ela sentia que não passava nem perto da dor que parecia emanar da humana chorando ao seu lado.

Sabrina continuou chorando copiosamente por um bom tempo. Ela parava um pouco, mas não conseguia conter as lágrimas e recomeçava. Pacientemente, a Fênix Corvina aguardou. Então, aos poucos, a humana se acalmou.

— Obrigada — disse ela esfregando os olhos. — Por salvar minha vida e por evitar que eu fosse... você sabe.

— Sem problema — respondeu Noëlle.

— Pior que teve problema — Sabrina coçou a cabeça e olhou um pouco sem graça para a elfa. — Você salvou a minha pele e precisou abandonar o exército. Eu não sei nem como agradecer.

— Primeiro, eu não sou do exército — afirmou Noëlle. — Segundo, eu nunca poderia ver uma mulher na sua situação e cruzar os braços. Não que eu seja exatamente uma justiceira, mas até uma mercenária tem limites morais.

Sabrina deu um sorriso sutil. Diante do que ela estava passando, era provavelmente o máximo que a humana conseguia manifestar. Ela limpou as lágrimas com as mãos e se levantou, soltando um suspiro. Em seguida, estendeu a mão à Noëlle, que aceitou a ajuda para se erguer também.

Na sala, havia duas portas, ambas na parede da direita. Noëlle deduziu imediatamente que uma daria para a cozinha e a outra para o quarto. A elfa andou à frente da humana apenas para confirmar que seu palpite estava correto. Cansada, ela mal olhou para o primeiro cômodo. Entretanto, o segundo foi bem analisado.

O quarto era menor que a sala, mas, ainda assim, mantinha o padrão de ser grande o bastante para ser confortável. Nele, havia uma cama de casal bem larga e um armário que devia ser o móvel mais caro daquela casa, sendo feito de carvalho e tendo algumas runas gravadas nele. Vou dar uma olhada melhor nesse cara em outro momento.

— Você pode dormir aqui — disse Noëlle. — Eu fico na sala.

— É... Eu... — Sabrina parecia um pouco sem jeito.

— Você precisa de alguma coisa?

— Bom... É que, depois do que aconteceu mais cedo, eu queria companhia. Fica difícil não achar que vai aparecer um brutamontes do nada e tentar me partir em duas — explicou a moça ruiva. Noëlle compreendeu de imediato.

— Acho que, se eu tivesse passado pelo que você passou, eu também não ia querer ficar sozinha — afirmou. — Não se preocupe, eu fico aqui.

— Obrigada — disse a humana.

— De nada. Agora, vamos dormir, pois temos muito a fazer e o tempo é curto.

Sabrina foi direto para a cama, enquanto Noëlle tirou sua armadura de couro primeiro. Kyrios se aproximou da humana e tocou-lhe a testa com seu focinho antes de se deitar ao lado da cama. Era a forma carinhosa do arkanvolf de acolher a moça ruiva.

Noëlle não demorou para se juntar à Sabrina. Exaustas, elas dormiram horas preciosas. Os dias seguintes exigiriam muito e elas teriam que estar preparadas.

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