Parte 2

Eram 15h45. Como todas as quartas-feiras, Lysandre passou um chá de erva-doce, serviu-se de uma generosa xícara e sentou-se no sofá da sala de estar. Aguardou, mirando o relógio acima da lareira.

Apesar de saber que todas as quartas-feiras ela chegava atrasada e que batia na porta antes de entrar, naquela quarta-feira Emma foi pontual e bateu palmas para avisar que tinha chegado. Franzindo a testa em estranhamento, ele colou o ouvido à porta antes de abri-la ⎼ aquilo era... sons de motor?

Quando puxou a maçaneta, não deu de cara com cabelos volumosos ou então com um sorriso de quem sabia que estava atrasada. Pelo contrário, a mulher que aguardava na porta era dona de cabelos lisos curtos e loiros, pele bronzeada e olhos esverdeados. E... mais velha, com seus trinta para quarenta anos, talvez?

― Boa tarde! Lysandre, estou certa?

― É, eu... sim ― gaguejou, a mão escapando do apoio da porta. ― E a senhora...?

― Me chamo dra. Andrea Martin. É um prazer conhecê-lo.

― Onde...?

― Onde está a srta. Perrin? ― santo Deus, a mulher é telepata? ― Sinto em dizer, querido, mas ela transferiu seu caso para mim na semana passada. Não foi avisado?

Ele negou com a cabeça, abrindo a porta para que a sra. Martin entrasse, sem muito ânimo. Se a mulher o notou, optou por não o dizer em voz alta. Lysandre permaneceu perdido quanto ao que fazer, como na primeira vez em que Emma o visitara. Buscando algo que pudesse fazer a respeito, ele alcançou o bule de chá.

― Aceita chá?

― Ah! Não, obrigada, querido. Não se preocupe com isso ― sentando-se no sofá automaticamente, a sra. Martin se ajeitou com classe. ― Podemos começar para não perdermos tempo. Sim?

Vendo ser inútil argumentar com a mulher, Lysandre deixou o bule de lado para sentar-se no sofá adjacente. Sentindo-se deslocado dentro da própria casa, ele não teve opção a não ser dançar conforme a música. Como Emma, a sra. Martin abriu um bloco de notas e sacou uma caneta, procurando registrar até o que Lysandre fazia desapercebidamente.

― Vamos começar do começo, sim? Como se sente hoje?

― B-bem...

― Tem certeza? A mim, me parece confuso. Seria por conta da srta. Perrin e a quebra de rotina ou por conta de seus problemas com a memória?

Lysandre ponderou a questão. Após suspirar e verificar as próprias cutículas, grunhiu:

― Ambos?

Sra. Martin assentiu, rabiscando qualquer anotação que fosse. Enquanto o fazia, Lysandre nada mais pode fazer do que observar todos os aspectos da própria casa ⎼ o bule intocado, o cheiro inebriante da erva-doce interrompido pelo perfume divergente da terapeuta, o relógio acima da lareira e, principalmente, a pilha de livros ainda por arrumar ao lado da estante. Tudo estava no lugar, no entanto...

Tudo está diferente. E não sei se quero me readaptar uma vez mais.

― Vamos por partes. Há alguma novidade com relação às memórias essa semana?

― Sim ― Lysandre pigarreou, desconfortável. ― Eu... resgatei minhas memórias essa semana. É essa a novidade...

Apesar de tê-lo conhecido há pouco mais de dez minutos, a terapeuta parecia estar sendo sincera em seu pronunciamento. Por isso, Lysandre relaxou os ombros e estalou os dedos enquanto ela comentava:

― Mesmo? Isso é ótimo! De que se recorda, exatamente?

Como se estivesse sentado num divã, ele fechou os olhos e se recostou no sofá e respirou fundo.

― Podemos... não entrar em detalhes? Só resumir?

― É claro, querido. Tome seu tempo.

― Certo. Eu... me recordei dos meus pais, da minha namorada... ex-namorada ― ele se corrigiu. ― E do meu melhor amigo. Todos eles foram embora. De um jeito ou de outro.

― De um jeito ou de outro? ― repetiu ela, pedindo detalhes.

― Um pouco depois que terminei a escola, Lynn se mudou de onde morávamos para o outro lado do país, por conta do trabalho dos pais. E meu pai, que já estava hospitalizado faleceu. Por conta dos problemas com a velhice. E... minha mãe... ― ele engoliu em seco, tentando conter as lágrimas que insistiam em escapar. ― Não aguentou ficar sem meu pai por perto. Eles tinham uma ligação muito forte.

― E então, ficou sozinho aqui nessa casa enorme.

Lysandre assentiu com a cabeça, enxugando as lágrimas com o dorso da mão. Dra. Martin manteve o profissionalismo ao fingir não o ouvir fungando como fazia uma criança perdida dos pais. Afinal, ele não passava disso; um órfão abandonado, mas que se recusava a estender a mão e procurar companhia. Tanto que as únicas companhias que teve ⎼ as valiosas, ao menos ⎼ vieram até ele, e não o contrário.

Com o novo pensamento, Lysandre abriu os olhos.

― Isso é bem delicado ― comentou a dra. Martin, abrindo um sorriso ladino. ― No entanto, parece estar lidando bem com essa situação...

― Tive companhia. Limitada, mas a tive.

― E ainda a tem?

Ele deu de ombros, apesar de ter ficado pensativo. Daí, conectou os dois pontos até onde dra. Martin queria chegar. Está querendo estender o alvo da conversa até Emma. Mas, se elas trabalham juntas, não é certo falar disso, é?

― Não. Não a tenho. Me sinto longe de todos. Parece até um destino inevitável que, independente do momento, sempre termine sozinho...

― E... vai continuar assim?

― Como assim? ― minha senhora, estou isolado. Por favor, não me venha com metáforas a essas horas...

Dra. Martin se ajeitou no sofá, unindo as mãos para poder explicar com clareza:

― Continuar se isolando voluntariamente, agora que tem um leque de opções para que esse sentimento de solidão se amenize? Pense bem: está sozinho numa casa, dependente emocional de pessoas que não estão ao seu alcance frequente... será que não vale a pena nadar contra a maré por uns minutos e sair de sua zona de conforto? Às vezes, pode ser que as pessoas ao seu redor também não saibam como estender a mão.

Lysandre concordou com um rumorejo. Apesar de sentir o coração dolorido dentro do peito, tinha de admitir que as palavras se adequavam à situação que se encontrava. Ao passo que raciocinava com ela, a terapeuta continuou seu monólogo ilustrativo.

― Veja, quando alguém estende a mão para outra pessoa, existem duas opções prováveis. Saberia me dizer quais são elas, Lysandre?

― Bem... penso que dá para se erguer alguém, porém... ser levado junto, se não for forte o suficiente.

Exatamente. O ponto que quero destacar hoje para você, e para deixá-lo meditando, é este: quando não se estende a mão para alguém, se trata de indiferença da pessoa ou apenas cautela?

Ele desviou o olhar para as próprias mãos. Mesmo que tivesse se tratado de uma metáfora, não era difícil de imaginar a culpa literal escorrendo por entre seus dedos. Emma não me deixou sozinho. Ela fez o que era melhor para nós dois a longo prazo!

― Obrigado, dra. Martin.

― Não falei nada demais. Foi você quem se abriu para que eu conseguisse escolher as palavras certas.

Lysandre sorriu, voltando o olhar para o bule de chá em cima do fogão. Respirando fundo, ele ciciou:

― A senhora vai retornar para a cidade?

Ela fez que sim com a cabeça, abrindo um sorriso cúmplice.

― Precisa de uma carona? Isso posso oferecer.

― É... o inverno e os conselhos me incentivaram a ser impulsivo. A senhora pode esperar eu colocar um pouco daquele chá numa garrafa térmica?

Com um toque enigmático que Lysandre começava a se acostumar, a dra. Martin divagou sabiamente.

― Já diziam os mais antigos que a pressa é inimiga das coisas bem-feitas.

É claro que Lysandre não poderia concordar mais.


Com certa nostalgia, Lysandre acompanhou o caminho do interior até a cidade em absoluto silêncio. Além do barulho do aquecedor e do rádio ligado em qualquer estação de música de elevador, nenhum dos dois abriu a boca para sequer um suspiro. Abrigando a garrafa térmica entre as pernas, Lysandre sentia as pontas dos dedos trêmulas de ansiedade.

Onde estava com a cabeça? Pedir carona para a terapeuta? E voltaria como para casa, se Emma não quisesse o atender? Voltaria para o apartamento de Leigh até o próximo mês?

Dá mais trabalho ser impulsivo do que cogitei...

Ao estacionarem em frente ao endereço requisitado por Lysandre, a dra. Martin destravou as portas e sorriu.

― Espero que tenha uma noite adorável. Nos vemos semana que vem?

― Eu... não tenho certeza ― ele riu baixo, sinalizando para o ambiente ao seu redor.

Ela gargalhou, entendendo sem que precisasse ser dito muito. Então, buscou na bolsa um cartão de visitas e entregou-o a Lysandre. Analisando o telefone e o certificado de registro, ele assentiu e guardou-o no próprio bolso.

― Vamos deixar em aberto. Quando for chegando próximo do dia, você me informa do seu paradeiro.

― Está bem... ― sorrindo, ele segurou a maçaneta da porta. ― Obrigado novamente.

― Não me custou nada a mais, querido. Use seu tempo com sabedoria.

Lysandre concordou com a cabeça, saltando para a rua e acenando para a dra. Martin. É incrível como tudo que ela diz parece ter sido dito por uma anciã... rindo dos próprios pensamentos, ele ajeitou a própria bolsa a tiracolo com a garrafa térmica e engoliu em seco, respirando fundo os ares da cidade.

Diferente do silêncio do carro, Lysandre foi abraçado pelo pandemônio do McKenna's. A boate, apesar de ainda estar anoitecendo, já operava a todo vapor ⎼ ele contou três bêbados e uma dançarina, isso somente do lado de fora. Que dirá do lado de dentro...

Procurando por algo que anunciasse que estava ali, Lysandre apertou todos os botões do interfone. Então, aguardou.

De início, pensou em dar meia volta e correr para a loja de Leigh. De lá, poderia tentar no dia seguinte, quando tudo estivesse mais tranquilo. Mas o que garante que ela não estará trabalhando amanhã?

Ah, céus...

Joe, eu já te falei que os fundos é o interfone de baixo ― a voz de Emma fez-se ouvir, tão característica mesmo em meio à barulheira da boate. Lysandre sorriu, encostando-se na parede. Podia escutá-la falando por horas. ― Quer uma aspirina ou uma caipirinha? Eu tenho os dois!

― Eu tenho chá comigo, interessa?

Silêncio. Lysandre se abrigou no próprio sobretudo, lançando um olhar para as mulheres na boate. Como conseguem ficar assim? Está congelando aqui fora! Checando o horário no relógio de pulso e o cabelo platinado no reflexo da porta do prédio, Lysandre mordeu os lábios inferiores tentando conter os batimentos cardíacos acelerados. Se não prestasse atenção na própria respiração, começaria a hiper ventilar, e isso não era bom para um reencontro.

Ao escutar a trava automática, prendeu a respiração. Emma abriu a porta com cuidado, apenas uma fresta, mas suficiente para que Lysandre pudesse ver seu estado. Acostumado a vê-la tão arrumada, o suéter e a calça de moletom e pantufas foi a mais adorável das versões que conhecera dela.

― Lys? ― sussurrou ela. ― O que faz aqui?

Ah, não. Ela não está contente em me ver. Olhe só para essa pose defensiva, no que estava pensando em vir aqui e...

― Está frio aí fora, entra! Imagino que não queira conversar aqui, quer?

Ele negou com a cabeça, rindo fraco. Por sua vez, Emma puxou-o pelo braço com delicadeza ao longo de toda escadaria até o apartamento. Quanto mais se distanciavam da boate, mais abafado o som se tornava; consequentemente, mais alto Lysandre escutava o sangue correr. Não obstante, o calor do apartamento pequeno mostrou-se aconchegante e bem-vindo, acalmando-o quase que automaticamente.

Fechando a porta atrás de si, Emma ainda hesitou por alguns segundos antes de voltar-se para o ex-paciente ⎼ é este o termo? ⎼ e respirar fundo, pronunciando cada palavra com cuidado:

― Peço desculpas por não ter ido até sua casa hoje... não tive tempo de avisá-lo e... para ser sincera, eu não quis avisar.

― Eu entendo... ― eu entendo mesmo? ― Na verdade, foi até bom que tomou essa atitude.

Emma o olhou de escanteio, recostando-se no balcão da pia. Como não tinha intimidade com o apartamento, Lysandre a acompanhou; todavia, o fazendo de uma distância segura.

― Acha isso mesmo?

― É claro! Eu... aliás, a dra. Martin... me falou uma coisa que me fez ficar um tanto pensativo. Então, eu pedi uma carona para ela.

― Ela é tão inteligente... ― Emma comentou, em meio a devaneios. ― Que coisa?

Tomando a coragem necessária para não cometer erros de interpretação, Lysandre limpou a garganta e baixou a cabeça. O calor da bolsa na cintura começava a tornar-se inquietante, porém ele não abriu mão de sua posição.

― Sim. Foi muito profissional de sua parte ter passado o caso para ela. Pelo menos, foi o que entendi. Ela... usou uma comparação com se estender a mão para alguém se levantar. Às vezes é mais eficiente se... deixar o outro se levantar sozinho. Assim, a pessoa pode se apoiar no chão e demorar o tempo que precisar para se recuperar.

Emma olhou-o nos olhos desta vez, interessada na conclusão. Por isso, Lysandre sorriu.

― Do contrário, se a pessoa não estiver pronta para se levantar, pode acabar sendo trazida para baixo.

― Como uma âncora? ― Emma indagou em voz baixa.

― É... e eu não facilitei quando... quando disse como me sentia. Então... entendo sua intimidação.

A última parte fora particularmente dolorosa de se admitir, porém uma vez feito e Lysandre já poderia dizer que o peso de seus ombros estava oficialmente descartado. Ao contrário do que esperava, Emma permanecia quieta ao seu lado. Desde quando invertemos os papéis? Eu deveria dizer mais algo...?

― Então trouxe o chá como pedido de desculpas e como divisor de águas para que não se sinta culpada de me deixar para trás. Para que as coisas não fiquem nubladas, entende...?

Ela riu fraco, esfregando o próprio braço com cuidado.

― Veio de tão longe para vir aqui me oferecer chá?

― Você dizendo desse jeito parece um tanto ridículo, mas é isso mesmo ― ele riu, mais descontraído. ― E para me despedir, se... se for isso que desejar.

Foi a vez de Lysandre olhá-la com atenção, na tentativa de captar qualquer sinal que fosse. O fez até que Emma baixasse a guarda, optando por suspirar em frustração. Desvencilhando-se da pia e girando nos calcanhares até que ficasse de frente para ele ⎼ perto o suficiente para fazê-lo arquejar ⎼, Emma sussurrou:

― E o que você quer, Lysandre?

― E-eu... adoraria que soubesse que tenho muitas coisas a dizer e... gostaria de dizê-las sem ter de me preocupar com o tempo ou com o que vai achar ou deixar de pensar.

Ela ergueu uma sobrancelha, curiosa. Afastando-se um passo, negou com a cabeça. Já Lysandre resistiu ao impulso de trazê-la para perto, para aproveitar o calor do corpo um pouco mais antes de partir.

― Já que estamos colocando as cartas na mesa... ou na pia... ― Emma brincou, arrancando um riso baixo dele. ― Também há muito para falar, do meu lado. E preciso que escute antes de ir... se for isso que desejar.

Ela é cruel em devolver minha fala contra mim, porém é uma estratégia astuta... Apesar da desconfiança, Lysandre pousou uma mão em seu braço com cuidado, indicando ser um terreno seguro para discussões.

― Estou ouvindo.

Após assentir com a cabeça, Emma entrelaçou o braço ao dele, conduzindo-o até a cama. Diferentemente da fazenda que possuía espaço de sobra apenas para uma pessoa morar (tirando as galinhas, é claro), o apartamento de Emma era pequeno o suficiente para esbarrar nos móveis se não tomasse cuidado. A cozinha era separada do "quarto" por apenas uma cortina, cuja qual não possuía mais que um cooktop, um balcão e um armário. Um minúsculo banheiro fazia companhia para a segunda e última porta, então era o fim. Então, era justo que o quarto fosse improvisado como sala também.

― Desculpa, eu sei que é um cubículo ― ela riu para dentro, como se decifrasse justamente o que ele estava pensando.

― Está falando com a pessoa que apareceu sem aviso e com uma meia-referência, não estou em posição de reclamar de nada...

― É mesmo. Que falta de educação, a sua... nem para me deixar usar mais que um moletom e um suéter.

― Ou prender o cabelo... sei que não gosta dele solto.

Ela abriu um sorriso triste, passando a mão pelo cabelo citado. Dando de ombros, segredou:

― Eu amo o volume. Mas como ele não tem os cachos definidos e nem é liso, só fica no meio-termo, não parece agradável na maioria dos dias, sabe?

Lysandre fez uma cara pensativa, tirando a bolsa do ombro para deixá-la no chão ao lado da cômoda.

― Na minha opinião, é adorável.

Emma sorriu, colocando algumas mechas rebeldes para trás das orelhas. Houve certo orgulho da parte dele em ver que suas bochechas adquiriram um tom rubro com o comentário, bem como certa preocupação se a vermelhidão era de timidez ou falta de paciência.

― Então ― engolindo em seco, Emma respirou fundo antes de iniciar a fala. ― Como foi sincero comigo, mesmo tratando de um assunto delicado, eu não vejo por que não agir do mesmo modo. Há outro motivo o qual eu encaminhei você... porque acho que caso uma palavra terrível para se encaixar... para a dra. Martin.

E agora, o que foi que eu fiz de tão horrível?

― Contudo, não é culpa sua. Quer dizer, é culpa sua, mas não foi você quem provocou essa culpa. Foi uma culpa involuntária. Faz sentido?

― Eu... imagino que vai fazer mais sentido depois que complementar a explicação.

― É isso aí ― ela riu de nervoso, soltando o ar. ― Me desliguei da ONG que faz esse trabalho voluntário depois do final de semana, porque me senti uma péssima profissional. Agora estou desempregada. Mas já estou correndo atrás disso.

― O que quer dizer com péssima profissional? ― Lysandre sussurrou, preocupado. ― Pediu demissão do serviço...?

― Sim. Não fazia sentido continuar trabalhando com essa área sendo que desrespeitei uma regra instituída por mim mesma, quando comecei a atender as pessoas. Me senti desonesta. Não podia cobrar sinceridade de quem atendia quando eu mesma não fazia isso.

Emma desviou o olhar do dele, antecipando que Lysandre iria questioná-la. Ele o fazia através de seu silêncio.

― O dever de um assistente social é não ser parcial. E estava fazendo isso em suas consultas.

― Sendo parcial...?

― Mais do que isso. Me importando a ponto de desenvolver sentimentos por você. Sentimentos fortes, persistentes e comprometedores.

Lysandre agradeceu por ela não estar o olhando, porquanto que abriu um sorriso impossível de se conter. Mesmo tendo a ciência inquietante de que poderia ser um aspecto negativo para Emma no momento, seu coração deu um salto ao imaginar que, ainda que apenas em teoria, seus sentimentos eram recíprocos. Não tinha sido rejeitado por inteiro, apenas...

Repelido.

― Por isso ― continuou ela, em tom baixo. ― Mesmo antes de me contar sobre... bem, você sabe... eu já tinha tomado a decisão de não continuar vindo. Por isso compareci ao almoço com Leigh e Rosa.

― Era uma despedida ― Lysandre refletiu, incrédulo. Por sua vez, Emma assentiu, voltando a olhá-lo com cuidado. ― E pensa ter sido a melhor decisão? Digo... para os dois lados?

Emma mordeu os lábios, pensativa. Suas pupilas, que costumavam estar dilatadas, diminuíram consideravelmente ⎼ lembraram a Lysandre um gato apavorado. Temendo ter andado além da linha do aceitável, Lysandre permaneceu observando-a com insistência.

― A longo prazo, sim. A curto prazo... doeu muito a perspectiva de não te ver mais com frequência. Era uma coisa que alegrava minha semana. E não pude deixar de pensar que não se afeiçoaria a mim se não fossem as circunstâncias que nos uniram. Porquê... eu não sou uma pessoa de todo preferível, normalmente...

― Mas é claro que é ― Lysandre contestou, de prontidão. Baixando o tom da voz para não mais que um sussurro, ele repetiu: ― É claro que é, Emma... vim até aqui só para te ver, como pode dizer que não é preferível?

Lysandre alcançou sua mão arrastando a dele pelo cobertor. Emma tinha as pontas dos dedos geladas, mas não recuou com seu toque. Pelo contrário, envolveu-os com delicadeza e acariciou seu dedo indicador. Prendendo a respiração, Lysandre arquejou:

― Você é minha companheira para o chá e para conversas sobre tudo, sobre... livros e sobre ofensas sutis a terapeutas, conselhos e... sobre a vida, Emma. Vim aqui para que não vá, porque sei que não poderia voltar por si mesma. Estou pronto para me levantar sozinho e... talvez seja a hora de eu estender a mão para você.

Emma abriu um largo sorriso, segurando sua mão com mais firmeza. Como se tivesse recebido uma descarga elétrica através do gesto, o rosto de Lysandre se iluminou. A boate no andar de baixo parecia ainda mais abafada, visto que sua atenção estava presa na dona dos brilhantes olhos castanhos que perambulava por entre seus pensamentos seguros.

― E o que precisava me dizer de importante?

― Quer saber? Acho que me esqueci...

Ela franziu a testa, cogitando se falava sério ou se seria uma piada ruim uma vez mais. Rindo para denotar o sentido, Lysandre negou com a cabeça. Já Emma empurrou-o de leve, revirando os olhos.

― Por que ainda te levo a sério, hein? Seu salafrário.

― Está dizendo que não me levava a sério anteriormente?

― Opa, opa, opa. Não coloque palavras na minha boca, mocinho.

Ele riu baixo, afrouxando a força que aplicava para segurar a mão de Emma. Notando o gesto, a respiração de Emma saiu entrecortada. Ela não está recuando... deveria interpretar como um sinal para eu mesmo fazer isso ou...?

― Palavras não sei, mas... ― Emma sussurrou, tirando-o de seus devaneios. ― Pode escolher outras opções...

Agora, sim. Não precisa dizer duas vezes.

Umedecendo os lábios automaticamente, ele engoliu em seco de apreensão. Como incentivo, Emma sorriu timidamente. Respirando fundo, Lysandre reuniu coragem suficiente para inclinar-se para frente e erguer uma mão até sua bochecha, a acariciando com amabilidade. Sentindo-a estremecer sob seu toque, procurou diminuir o sofrimento de ambos ao encerrar a distância que os apartava.

De início, Lysandre temeu errar nos movimentos após tanto tempo de "abstinência", portanto foi com surpresa que tenha sido Emma a se ajeitar na cama para beijá-lo mais livre. Arrancando dela um suspiro exasperado, Lysandre afundou a mão nos cabelos volumosos na intenção de correr os dedos pela nuca sem se enroscar em meio ao processo. Ambos riram de nervoso com a confusão momentânea após certo tempo, o que serviu de quebra-gelo para que pudessem olhar nos olhos um do outro.

― Minha nossa... ― Emma sussurrou, rindo baixo ao encostar a testa em seu queixo.

― 'Tá tudo bem? ― será que exagerei na dose? Deveria ter optado por algo menos complexo?

― Assim que recobrar o fôlego eu te respondo. Por enquanto só... uau.

Lysandre sorriu, beijando sua testa com cuidado.

― Uau é bom ou ruim?

― Uau é maravilhoso. Divino.

― Mais uma dose de uau cairia bem, não concorda?

Emma gargalhou, assentindo com a cabeça e um sorriso ladino. Lysandre deu de ombros, se deixando ser puxado pelo sobretudo. Com mais segurança do que da primeira tentativa, ele a abraçou pela cintura e optou por deixar o chá de lado... ao menos por um pouco de tempo.

───── ⋆⋅☆⋅⋆ ─────

Eram 15h45. Como todas as quartas-feiras, Lysandre passou um chá de erva-doce, serviu-se de uma generosa xícara, bem como a garota que o acompanhava no balcão da cozinha. Seus cabelos soltos e volumosos caíam sobre as páginas de um livro ⎼ apesar de ele já ter desistido de tentar acompanhá-la na cronologia. Ao ser servida, ela ergueu a cabeça e sorriu amavelmente, fazendo-o ainda mais quando Lysandre presenteou-a com um beijo rápido.

― Nossa, já 'tá na hora?

Lysandre assentiu com a cabeça, ao passo que ela fechou o livro e se levantou, aproveitando para retribuir o beijo. Foi a vez de Lysandre sorrir em deleite, abraçando-a pela cintura. A campainha recém-instalada fez-se ouvir ao longo de todo o casarão, provocando um suspiro entre os dois. Apartaram-se, se espreguiçando com preguiça.

― Vou lá para cima para não te atrapalhar, ok? Dê um oi a ela por mim, por favor.

― Nenhuma possibilidade de você ir alimentar as galinhas enquanto isso...?

― Depois que eu terminar esse capítulo.

Lysandre ergueu uma sobrancelha.

― Você sempre diz isso, e nunca é um capítulo só.

― É que eu amo alimentar as galinhas junto com você, querido.

― Eu não sei, o jeito que ela mente é diferente... ― devaneou ele para o vazio, provocando um revirar de olhos de brincadeira na garota. ― Vou deixar essa passar. Boa leitura.

― Boa conversa, Lys.

Sorrindo, ela recolheu o livro e a xícara de chá, partindo para o andar de cima. Quanto a Lysandre, não pode deixar de observá-la enquanto partia. Um sorriso escapou de seus lábios vendo a concentração de Emma para não derrubar o líquido na escada, porém recordou-se de que a dra. Martin esperava na porta. Portanto, apressou o passo e abriu a porta um tanto quanto abruptamente.

― Ah, mas eu gostei dessa campainha! ― dra. Martin elogiou, endireitando a postura. ― Sugestão de alguém em particular?

Abrindo a porta para que ela entrasse, Lysandre comentou:

― Sou uma anêmona em questão de ideias criativas, dra. Martin. Me recuso a levar os créditos pela campainha.

― Emma é uma mulher esperta.

― E preguiçosa ― riu ele, buscando o bule de chá na cozinha. Apesar de saber que a dra. Martin não o consumia, sentia-se melhor em companhia de um acréscimo natural. Era uma rotina da qual o agradava, agora. ― Ela lhe mandou um oi.

Dra. Martin sorriu, concordando com a cabeça. Ambos se sentaram no sofá, ajeitando-se com a xícara e o bloco de notas, respectivamente.

― Como vamos essa semana? E como se sente hoje?

― Foi uma boa semana... e me sinto muito bem, obrigado.

― Mesmo? E como está lidando com a retomada de suas memórias?

Após um longo suspiro, Lysandre sorriu para a terapeuta, recostando-se no sofá com tranquilidade surpreendente.

― Ainda preenchendo algumas lacunas. Mas descobri que é mais fácil dividir a carga nesse sentido do que tentar levá-la sozinho.

Ela assentiu, anotando as novas informações.

Lysandre poderia dizer que tudo estava mudado desde que o pai falecera, porém ao contrário do que imaginava, tudo parecia encaixar em novos eixos que jamais imaginaria ter algum dia.

Viver um dia de cada vez, e é suficiente por ora.  

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