Capítulo XXXVII

- Vou morrer daqui a um ano? – repetiu em forma de pergunta.

- Foi o que eu acabei de dizer.

Um frio se espalhou por sua barriga. – Mas isso é só uma possibilidade, certo?

O sorriso de Joan estava congelado em sua face, parecia uma boneca. – É... mas tem chances muito altas de acontecer.

Isabella sentia como se tivesse levado um soco no estomago, não conseguia respirar.

- Por que vir me contar isso? Não, por que o universo lhe mandou te contar isso? Muitas pessoas morrem todos os dias.

A gatara riu. Como ela conseguia revelar sua morte enquanto ria?

- Porque sua morte pode impactar e muito no destino desse mundo.

Sua morte impactaria do destino do mundo? Ela sentia vontade de bufar e em seguida rir. Não se considerava tão importante.

- E de que forma minha morte poderia afetar o mundo? – inquiriu com uma voz repleta de desdém. Uma coisa que ela nem sabia que possuía.

Joan não pareceu se incomodar nem um pouco com o tom da questão, ou então não demonstrou.

- Isso o universo já te contou...

Isabella arqueou uma das sobrancelhas. Não se recordava de nenhum universo vir lhe contar qualquer coisa.

- Ah, você não se lembra... – constatou como quem achava toda a situação cômica. A jovem quis arrancar aquele sorriso de Joan. – Deixe eu te refrescar a memória..

"Talvez em outros mundos, mas nesse não existe desequilíbrio. Se é tirado, precisa ser reposto. Se é colocado, precisa ser devolvido. Se não for devolvido, precisa desaparecer. A ordem e o caos são dois lados de uma mesma moeda, e o ódio e o amor são desnecessários. A paz não é uma opção. Todavia sacrifícios podem ser feitos. Eles desequilibrarão o equilíbrio, contudo de forma estável, e seu poder será garantido. A única coisa que esse mundo exige em troca é o caos, então ele perdoará a desestabilidade e fingirá que as leis nunca existiram..."

A jovem se lembrou de ter lido algo assim na biblioteca em meio a uma situação completamente anômala, mas não conseguiu entender o que significava. Parecia mais uma charada. Quem diria que aquilo seria uma mensagem do universo.

- O que isso significa? – perguntou entredentes.

- Você precisa descobrir sozinha ou isso não estaria em equilíbrio.

A cabeça de Isabella começou a latejar, ela pressionou suas têmporas e tentou não atirar na criatura a sua frente. Entendia que Joan não tinha culpa, mas entender não a ajudava a extinguir sua raiva. A única coisa que podia fazer nesse momento era realizar o máximo de questionamentos possíveis.

- Qual será o motivo da minha morte? – Se soubesse a causa de seu óbito talvez pudesse evitá-lo.

- A causa muda o tempo todo. Os mais prováveis são assassinato ou enfermidade.

- Assassinato eu até entendo, mas eu não estou doente.

- Ah, está! Você só não percebe, mas está. É uma doença que te consome sem que você perceba e só se revela quando tem total controle sobre seu corpo. Agora mesmo, ela está devorando cada milímetro de seu ser. De fora para dentro e de dentro para fora. Quando ela se manifestar. já vai ser tarde demais.

O mal-estar se apoderou de Isabella, ninguém estava pronto para receber a notícia de sua própria morte, ainda mais sobre aquelas circunstâncias.

- Como eu posso evitar tudo isso? – Sua voz perdera completamente aquela raiva. A única coisa que conseguia ouvir de seu tom era palidez e desespero.

- Isso você precisa descobrir sozinha, ou esperar para ver. Quando dia de suas mortes chegar, eu estarei lá para te dar uma última chance. Vai depender de você agarrá-la. Siga seus instintos. – Cada palavra proferida pela gatara soava como uma chibatada ardente, estalando em sua pele e deixando filetes de sangue fluírem de sua carne flagelada.

Sua visão tornou-se turva e o único som em seus ouvidos era seus próprios arquejos desesperados, procurando incessantemente o ar. Sua caixa torácica não estava mais desempenhando a função para qual fora projetada. O sangue parou de fluir para o seu corpo. O chão começou a se aproximar de maneira vertiginosa, mas perpendicular. Estava desmaiando? Não, tinha apenas se abaixado e posto a cabeça entre os joelhos em uma resposta automática.

Antes de partir, Joan disse. – A única dica que posso dar para você é 'você não sabe como veio parar nesse mundo e é isso que vai lhe custar a vida. – Então, um plasma brilhante e róseo envolveu a criatura e ela desapareceu.

Isabella ainda ficou ali por longos minutos, talvez horas, tentando se recuperar do golpe que recebera. Sabia que a lua já brilhava no céu e que a floresta era mais perigosa durante a noite, todavia não era capaz de encontroar a resolução para se mover. Ela parou de se importar quase que completamente, Morreria daqui a cerca de um ano de qualquer forma, então não importava se arriscasse ou não a própria vida. Sua existência tinha prazo de validade.

...Quando o dia de suas mortes chegar, eu estarei lá para te dar uma última chance..., a voz de Joan ecoou em sua mente. Por que ela havia dito suas mortes no plural? Seria um erro de gramática? Ou teria algum significado escondido por detrás daquelas palavras? Por que o maldito universo tinha que ser tão misterioso?

Preciso ir embora, disse para si mesma, preciso ir embora,, preciso voltar para tenda, e repetiu essas palavras sem nunca ser capaz de se mover.

Um barulho soou na floresta silenciosa, arbustos se mexendo folhas secas sendo partidas, passos de uma única pessoa. Uma presença se aproximou de Isabella, parando a sua frente, impedindo a passagem de luz da lua e criando uma sombra na escuridão. Ela ergueu a cabeça e contemplou Alexandre que a fitava com olhos repletos de alívio.

- O que está fazendo? – indagou ficando de cócoras a sua frente. Ela não respondeu. – Você se perdeu?

- Não – Sua voz saiu com um suspiro.

- Então o que aconteceu?

- Posso contar depois que voltarmos para tenda? – Ele fez que sim. – Como me encontrou?

- Foi bem difícil, você não tem presença. Tive que seguir as marcas que você deixou nas árvores. – O Imperador apontou para último talhe que ela havia feito a alguns metros de distância. Quase não dava para vê-lo na escuridão. – Pensei que estivesse em perigo.

- Se eu estivesse em perigo, teria usado o sinalizador.

- Bem, nunca se sabe.

Os dois ainda permaneceram agachados na escuridão, sentindo-a acariciar sua pele e sussurrar seus desejos e ameaças enquanto engolia-os. O rumor do córrego soava em seus ouvidos como uma espécie de canção, escorregando nas pedras sinuosas e batendo em superfícies lisas em e em si mesmo. Os pássaros noturnos afinavam seus instrumentos e preparavam sua orquestra, convidando os insetos, que acordaram após o inverno, para se juntar ao seu embalo a luz do luar. O mundo era desdenhoso e não se incomodava se sua morte estava próxima ou não.

Isabella ergueu a cabeça e contemplou a via láctea cortando o céu feito um rio brilhante e colorido. Nem todas as estrelas eram brancas, algumas eram azuis, amarelas, roxas ou rosas. Eram lindas, mas já haviam partido daquele universo a muito tempo. A única coisa remanescente dessas massas gasosas de calor era sua luz, que após milhões de anos de trajeto, finalmente chegaram a Terra, como se para provar que sua existência jamais seria apagada e viajaria por todo o infinito eternamente até que fosse engolida por um buraco negro qualquer que outrora fora sua irmã e desaparecesse.

A jovem ficava imaginando se após sua morte, sua presença seria como as das fenecidas estrelas, emanando sua luz por toda a eternidade. Seria uma estrela tal qual a do sistema solar que explodiria varrendo tudo a sua volta e se dissiparia, ou então viraria um buraco de minhoca e sugaria tudo em seu caminho? Ela voltou sua cabeça para Alexandre prestes a perguntar-lhe o que ele achava, mas não foi capaz. Enquanto Isabella contemplava o espaço sideral, o Imperador a contemplava, como se a forma etérea de um mar de estrelas não pudesse ser comparada a garota refletida em seus olhos. Ela sentiu o peito afundar. O que aconteceria com Sua Majestade quando ela partisse? O pensamento foi angustiante o suficiente para que ela quisesse vomitar.

- Vamos voltar para tenda – pediu levantando-se do chão.

Perdera a vontade de cutucar suas próprias feridas.

Alexandre pegou a sua mão e guiou-a por entre as árvores. Seu toque era, e sempre seria, reconfortante. O caminho que eles seguiram para volta era diferente do que Isabella havia feito para ida. Mais certo, mais simples de caminhar. Era apenas natural que Alexandre conhecesse a floresta melhor.

Não demorou muito para que ambos chegassem aos confins do acampamento, ninguém prestou muita atenção nós dois já que apareceram por entre arbustos em um ponto cego.

A música rústica de um violino soava ao longe em conjunto com as risadas e os sussurros dos nobres.

Era suposto que aquilo fosse como uma acampamento, no entanto não se parecia ao todo com um; havia uma fogueira crepitando e lambendo o breu no centro do espaço, mas ninguém a utilizava ou se aproximava demais. Não possuía fim algum senão o estético, nem mesmo para iluminação desde que foram colocados cristais de luminescência alaranjada pelo gramado vivo. Ninguém se sentava em troncos caídos ou no chão, como Isabella imaginava que seria um acampamento, ao invés disso diversas mesas envernizadas foram dispostas pela clareira e era ali onde os nobres se sentavam enquanto apreciavam suas caçadas preparadas por um chefe profissional e taças de vinho tinto. Vejam só, taças de vinho tinto. A jovem quase quis perguntar se eles haviam caçado aquelas garrafas.

- Eu preciso participar dessa festa? – inquiriu se sentindo miserável.

- Só se você quiser.

- Eu não quero.

- Então vamos entrar.

Alexandre puxou-a em direção a uma barraca vermelha, tão grande quanto uma casa, em um dos extremos da clareira. Ele abriu a porta da tenda e indicou para que Isabella fosse na frente. Ela o fez, e o Imperador seguiu-a deixando o tecido cair atrás de si.

Mais do que uma barraca, aquilo era como uma casa de pano. Sua armação era toda feita de metal e dezenas de cortinas, que serviam como cômodos, se espalhavam ao longo do espaço. O chão fora todo coberto por dezenas de tapetes e almofadas coloridas, dando um ar levemente árabe ao ambiente. Havia tudo que haveria em uma casa naquela cabana; compartimentos, cômodas, camas, enfeites, banheiras, espelhos e etc.

Nem Alexandre, nem Isabella, montaram aquela tenda. Já estava tudo preparado quando chegaram.

- E aí? Vai me contar o que aconteceu? – perguntou o homem de olhos vermelhos jogando-se em uma espécie de puff.

A jovem juntou algumas almofadas com estampas tribais e deitou-se em cima delas. Ainda estava processando tudo o que havia acontecido.

- Tente não ficar muito chocado – desafiou comtemplando as ligações do ferro no teto.

- Certo.

Isabella abriu seus lábios e despejou todas as informações relevantes nele. Como havia se encontrado com um gatara, sobre sua profecia e sobre sua aparente importância para com o universo.

Quando a jovem voltou seu olhar de volta para Alexandre se deparou com um semblante que nunca vira antes em suas faces. Dor, pungência, desespero, angústia, tudo isso em uma mistura caótica e pouco convencional.

- Eu vou buscar Arlinda e os curandeiros – avisou Alexandre, saltando de seu assento e saindo da tenda como um tornado.

Ela nem teve chance de pedir para ele esperar.

Logo um mutirão de médicos se mobilizou em suas acomodações. Eles faziam fila para examiná-la enquanto o Imperador andava de um lado para outro desalentado. Infelizmente, o diagnóstico deles era sempre o mesmo, não parece haver nada de errado com ela. O engraçado é que todos eles, com exceção de Arlinda pareciam exatamente a mesma pessoa. Usavam os mesmo óculos redondos, tinham os mesmos cabelos brancos e calvos e o mesmo nariz longo e anguloso. Um a um, eles iam sendo dispensados das barracas, fazendo com que os únicos que sobrassem fosse Alexandre e Isabella.

- Joan disse que a doença não iria se manifestar até ser tarde demais – relembrou, cansada de todo aquele caos de exames.

O Imperador afundou em sua cadeira e enterrou o rosto nas mãos. Estava desolado.

A jovem mordeu o lábio inferior, começou a ficar mais preocupada com ele do que consigo mesma. – Talvez Joan pudesse estar mentindo – sugeriu, mesmo sabendo a resposta que viria disso.

- Gataras não mentem. – Ou pelo menos era o que estava escrito no livro dos monstros.

Isabella se levantou do colchão de almofadas e sentou-se ao lado dele, colocando a mão em suas costas quentes como forma de consolo. Ela conseguia sentir sua coluna vertebral. Ver os tendões repuxados de seu pescoço e a veia que pulsava em sua nuca.

- Não tem por que ficarmos tão desesperados. – foi dizendo vagorosamente. – Vamos ficar tranquilos e fazer o que está sobre o nosso alcance, certo?

Ele não respondeu, permaneceu imóvel. Sua Alteza se ajeitou irrequieta e mordeu o lábio inferior. Finalmente, Alexandre ergueu sua face e fez que sim.

- Você está certa – murmurou com sua voz partida.

A jovem sorriu. - Ótimo. – E rezou para que seus olhos não entregassem sua angústia.

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