Capítulo VIII

- Por favor Vossa Majestade, reconsidere! - implorou Hector pela décima vez aquele dia.

- Não - retrucou o Imperador.

O homem de olhos vermelhos estava sentado na mesa envernizada, lendo documentos com rapidez e precisão. Assinando-os, carimbando-os e escrevendo seus próprios documentos.

Hector tinha os cabelos presos rigidamente no topo de sua cabeça e olhos mórbidos que começavam a cair para os lados de forma cômica. Sua insistência, além de vã, também parou em algum momento de deixar Sua Majestade irritado, agora ele voltava a ser a criatura fria, cruel e indiferente que sempre fora.

- Mas você precisa se casar - urgiu o primeiro-ministro.

- Preciso? Você acredita mesmo nisso?

Hector gemeu e então massageou as têmporas. Ele era o Imperador Vermelho, é claro que não precisava.

- O império precisa - corrigiu com sua voz esganada.

- Me dê bons motivos e eu talvez reconsidere.

Era aquele pedido que o homem de cabelos castanho avermelhados vinha esperando por um bom bocado.

- Precisamos fazer alianças com outros reinos e precisamos melhorar a força de nosso próprio Império - expressou com uma nesga de satisfação. Pensou ter feito um bom trabalho com as palavras.

Pena que Sua Majestade era um homem de pensamentos ágeis e lábios eloquentes.

- Licrya é um dos impérios mais poderosos do mundo, se não o mais poderoso, e vai ficar ainda mais forte com o tempo. Nos aliarmos com qualquer outro reino não trará qualquer benefício, no entanto talvez arranjemos belos sanguessugas gordos e arrogantes se prosseguirmos com as parvoíces do Conselho.

O primeiro ministro engoliu em seco. Aquele era um ponto para o Imperador Vermelho.

- Sim, você está certo, porém o povo exige uma Imperatriz...

- Eles não estão exigindo nada, estão apenas curiosos para saber quando irei me casar.

E julgando pela expressão de Hector, aquilo era mais um ponto para Sua Majestade.

Então, o homem de olhos vermelhos largou seus papéis, suspirando com profundidade, e cruzou os braços ao interim que fitava o primeiro ministro, indicando que a conversa tomaria um rumo mais sério.

- Se apresse e me diga a verdadeira razão por trás de tudo isso, eu conheço aquelas raposas por tempo o suficiente para saber que o Conselho jamais se daria a todo esse trabalho por um mero casamento.

A expressão de Hector endureceu, ele sentia um caroço amargo indo e voltando em sua nuca, e seu nariz franziu-se pelo azedume que lhe subiu de supetão em direção a boca do estomago.

- Vossa Majestade, vosmecê precisa de um herdeiro. Não há mais ninguém para assumir o trono. - Suas palavras eram como pequenas agulhas tentado penetrar na máscara de aço do homem a sua frente.

- Bem, eu sempre posso adotar uma criança. - O Imperador já não soava mais tão confiante.

- Você deveria saber melhor do que ninguém que sua linhagem deve continuar.

- Eu entendo, ainda assim não posso me casar - replicou.

A janela entreaberta do escritório trouxe um vento cheio de frescor, conduziu folhas vividas para o aconchego do aposento e soprou o cabelo de Sua Majestade antes de partir como gatunos saltitantes por cima das árvores frondosos.

De alguma forma, as coisas deram um passo à frente, e o primeiro ministro percebeu a mudança de clima, por isso decidiu usar o plano B que o Conselho vinha planejando a semanas.

- Vossa Majestade, devo dizer que eu, o General Goliak, o Arquimago Abedel e os Quatro Conselheiros tomamos uma decisão. - O Imperador inclinou-se para frente num interesse irônico.

- E sem me consultar, que ótimo.

Hector o ignorou e prosseguiu - todos nós concordamos que seu casamento é de suma importância, por isso já não nos importamos com quem você decide ficar. Seja nobre, plebeia ou estrangeira, nós te imploramos, apenas se case.

O homem de cabelos negros não disse nada, continuou encarando Hector enquanto suas feições refletiam pena e decepção. Seus olhos carmesim praticamente diziam eu pensei que algo incrível sairia de seu discurso. Erro meu.

- Eu não me casarei.

Hector estalou a língua e cerrou os punhos.

- Apenas me diga o porquê de sua decisão, Vossa Majestade, eu não consigo entendê-lo!

- Isso é simples, eu não posso me casar com alguém que tenha medo de mim. Como uma Imperatriz pode ter medo do Imperador? E como supostamente deveremos trabalhar juntos servindo a Licrya se ela tremer toda vez que me ver? E como será nosso conjugo? Pelos deuses, Hector, como teremos um filho juntos? - e disse por fim - eu não me unirei a alguém que tenha medo de mim - e apesar de suas palavras parecerem carregas de emoção, sua expressão continuava tão fria como a de um iceberg e ele já voltava a mexer nos papéis como se não houvesse mais ninguém ali e mais nada a ser dito.

- Se Vossa Majestade encontrasse alguém que não tivesse medo de você... - começou o homem de cabelos longos com uma nesga de esperança refulgindo em seus olhos.

- Eu me casaria com essa pessoa imediatamente só para que vocês parassem de encher a minha paciência. Infelizmente, primeiro-ministro, eu nunca conheci alguém que não tivesse temor de mim, e duvido que alguém tenha conhecido também.

Mesmo com o pessimismo realista de Sua Majestade, Hector não perecia pronto para ceder. Ele relataria tudo ao Conselho tão logo tivesse a chance, então eles finalmente armariam o plano infalível.

- Eu definitivamente encontrarei uma pessoa que não tenha medo de você.

- Ache-a e eu me casarei com ela - concordou avidamente.

Neste momento algo de subitâneo aconteceu, uma deliciosa coincidência que levou a uma série de eventos pouco ou muito esperados. Um pássaro negro irrompeu no escritório do Imperador, voando em círculos e tomando um cuidado instintivo e inteligente de não esbarrar em nada. Hector prendeu a respiração na mesma hora em choque exasperado, enquanto o Imperador Vermelho tirava uma longa espada negra do ar e franzia os sobrolhos.

E malgrado de reações tão distintas, ambos tinham o mesmo pensamento em suas cabeças "Uma ave no palácio? Isso nunca ocorreu."

Claro que suas reações não eram exageradas e tinham base para serem assim. Nenhum animal havia entrado nos terrenos do castelo desde muitos anos atrás pois possuíam um terror intrínseco daquilo que habitava atrás das portas de ferro no canto mais extremo da ala sul, aquilo só poderia significar que aquele pássaro não só era suspeito como representava um perigo real.

O Imperador logo pulou no ar balançando elegantemente sua espada, visando o corte de uma das asas da ave, sem sucesso. Tão de repente quanto aquele bicho entrou, ele também saiu do aposento. O homem de olhos vermelhos estalou a língua e franziu as sobrancelhas. Se ele quisesse aquele animal morto, ele já estaria rígido no chão há muito tempo, todavia Sua Majestade precisava daquele pássaro vivo para investigá-lo, dissecá-lo e o que quer que fosse necessário.

Em movimentos mais velozes do que olhos humanos podiam acompanhar, o Imperador Vermelho pulou na árvore sob sua janela e aterrissou no jardim, perseguindo o espécime com velocidade impressiva, saltando de árvore em árvore, e saltando no ar no intento de ferir a criatura, não alcançado seu objetivo pela distância de um grão de mostarda.

Aquele homem apenas parou quando avistou uma jovem de cabelos dourados brilhantes como raios de sol e ouro, usando um vestido azul puído, sob a sombra de uma larga árvore.

Isabella deu um sorriso largo, mostrando duas fileiras de dentes fulgidos e esticou o braço esquerdo. Por consequência, o pássaro negro piou e pousou em seu membro estendido como se fosse um galho de árvore. A jovem de olhos azuis produziu um som de deleite e teve seu brilhante sorriso alargado.

Por uma lasca de tempo, o Imperador observou a cena sem mostrar qualquer reação, conquanto sem demora aproximou-se da garota como um gatuno até que sua imagem lhe chamou atenção.

- Que a graça esteja com a Vossa Majestade - cumprimentou curvando-se.

Ele apenas acenou com sua mão. Isabella subiu seu olhar azul piscando rapidamente.

Então o clima tornou-se excêntrico. Ali estava um Imperador famigerado e uma empregada estrangeira com um pássaro no braço. Não, talvez a singularidade daquela soma tivesse muito mais a ver com Isabella estar naquela equação.

- O pássaro lhe pertence? - indagou o Imperador sendo magno no momento de ocultar sua suspeita.

- Oh não! O pássaro não é de ninguém, alguns mercadores encontraram-no ferido e um colega meu decidiu cuidar dele. Depois que o soltamos, ele sempre vem me visitar aqui no palácio ou visitar meu amigo na cidade, eu mesma não entendo muito bem por quê. - Isabella esfregou levemente abaixo da mandíbula do animal com seu dedo indicador, fazendo com que o bicho voasse assustado.

- Não acha que ter um pássaro no palácio seja estranho? - questionou.

- Hum? Por que Vossa Majestade?

Ele soltou um suspiro discreto e arqueou os sobrolhos. - Nunca percebeu que nenhum animal entra aqui?

Isabella cruzou os braços, olhou para suas botas e tamborilou os dedos pensativa; era verdade, em um espaço tão cheio de plantas e árvores, ela nunca vira sequer um bicho, nem ouvira o cantar de um pássaro ou o farfalhar de um arbusto que não fosse causado pelo vento. Até os cachorros e gatos vadios da capital mantinham-se longe dos muros do castelo.

- Agora que Vossa Majestade diz, eu... - Assim, a garota comtemplou o homem de olhos carmim com seu rosto em chamas e pupilas dilatadas pela abelhudice. - Se não for muito inconveniente perguntar, por que isso acontece?

O Imperador desviou o olhar. Ele tinha um ótimo instinto, um que nunca falhara e que salvara sua vida em diversos momentos, Sua Majestade podia dizer apenas com um vislumbrar que a garota a sua frente era inofensiva, entretanto o pássaro no firmamento fazia os pelos de sua nuca se eriçarem, ele tinha certeza de que havia algo de obscuro naquela criatura.

Não houve resposta da parte do homem de olhos encarnados, e nem iria ter pelo que Isabella podia ver, ele apenas abancou-se embaixo da árvore e disse com languidez enquanto apontava para grama ao seu lado:

- Sente-se.

- Eu não sei se isso é adequado Vossa Majestade, afinal e sou só uma empregada....

- Hoje você está de folga portanto não há inconveniente - redarguiu com indiferença.

- Como sabe que estou de folga? - perguntou surpresa.

- Se você está aqui, a essa hora do dia e com essas roupas, você está de folga. Ou então está cabulando serviço. - Era claro. - Você está cabulando serviço?

- Não. - respondeu envergonhada.

- Então você está de folga. Agora sente-se.

Isabella corou e abaixou-se ao mesmo instante que abraçava os próprios joelhos.

"Não acho que seja assim que funcione, mas tudo bem" refletiu sentindo o tecido duro de seu vestido incomodar sua face.

A jovem apreciou deliciosamente a beleza etérea de Sua Majestade, olhando seu pescoço leitoso, imaginando quão sublime seria se pudesse repousar seus lábios ali. Assim enrubescendo violentamente e tentando afastar tais pensamentos tão lascivos.

Não obstante, o Imperador Vermelho tentava encontrar um padrão nos movimentos do pássaro para que pudesse capturá-lo na ocasião oportuna, após algumas piruetas ele já tinha inteiramente compreendido a ave e toda a sua previsibilidade.

Naquele instante, Alexandre virou-se para ver a estranha garota que sempre acabava em alguma situação esquisita apenas para perceber que tinha dois olhinhos anis e brilhantes fitando-o de um jeito um tanto quanto invulgar. Ele não se importou com isso, alguma coisa em Isabella o deixou completamente distraído e sem sensibilidade, algo que lhe deu um formigamento na ponta dos dedos e uma sensação estranha no estomago.

A jovem olhou para Imperador sob seus longos cílios rútilos e dourados, piscando várias vezes, deixando suas pálpebras róseo e escarlate a mostra um bocado de ensejos. Suas orelhas tornaram-se cálidas e ruborizaram, e Isabella se voltou ao céu comtemplando o 'querido'.

Embora a jovem de olhos índigo tenha se sentido deveras embaraçada, o homem de olhos encarnados continuou olhando-a sem descrição, sobretudo aquele cabelo loiro dourado que era tão irrealista, principalmente para si que cresceu em um meio onde todos tinham cabelos escuros. Cada fio de sua crina parecia um fiapo de ouro brilhando intensamente, ondulando como as águas do mar e descendo religiosamente até o fim de suas costas.

O Imperador Vermelho vivenciou um ímpeto, uma vontade repentina de tocar naquele monte amarelado, esticou o braço sem reserva e segurou um grande chumaço macio de cabelo que deslizou em sua mão como seda. Por isso ele soube que aquilo era real, a crina e a ebriedade.

Foi naquele fatídico instante que Isabella virou-se atordoada, encarou tal cena deleitante estupefata e seu rosto tornou-se da mesma cor que os olhos de Sua Majestade.

- O que... está... fazendo...? - perguntou tentando se lembrar de como se falava, piscava, respirava e a maioria de suas funções musculares.

Isso fê-lo acordar de seu tormento onírico.

No entanto, o Imperador não respondeu à pergunta de Isabella, nem ele própria sabia com certeza o que estava fazendo. Obviamente, aquele homem jamais admitiria que aquilo fora um ato de impulso abstrato.

Isabella continuou encarando-o durante algum tempo até perceber que o Imperador não a responderia. Depois de duas perguntas sem respostas e sem desculpas esfarrapadas ela chegou à conclusão de que Sua Majestade era tipo de pessoa que não mentia, mas omitia.

O homem de olhos Carmim continuou encarando a jovem loira pelo canto do olho então algo súbito o atingiu, uma coisa tão forte que fez até mesmo suas expressões tornarem-se mais humanas.

- Isabella - chamou com sua voz veludosa.

- Sim, Vossa Majestade.

- Você não está assustada comigo?

Ela encarou-o com uma expressão divertida - Não, por quê? Acha que eu deveria temê-lo?

- Talvez - replicou entredentes.

- Creio que não sou uma pessoa muito sensata então - respondeu rindo baixinho.

Mas que jogada interessante fez o destino, o Imperador estava em xeque, entalado entre suas próprias palavras e aquele pássaro negro. A promessa que ele fez a Hector era reproduzida em sua cabeça como um eco.

- Não é muito sensata mesmo, e isso talvez te custe caro - foi falando enquanto se levantava condignamente.

"E você é uma pessoa bem normal, não é mesmo?" ruminou Isabella com ironia, encarando aquele homem em pé no gramado com uma expressão meio esquisita.

- Eu preciso ir - Sua Majestade despediu-se, mirando a garota pela última vez aquela tarde. - É urgente.

A jovem de olhos azuis levantou-se, lamentou-se internamente e curvou-se enquanto o Imperador desaparecia no jardim.

Ele correu de volta para seu escritório pensativo. As coisas saíram de uma maneira um tanto quanto diferentes do que o esperado. O Imperador Vermelho tinha certeza que Hector seria capaz de encontrar alguém que não tivesse medo dele (ou que soubesse atuar muito bem) para casar consigo, mas ele estimava que isso demoraria pelo menos alguns anos, Sua Majestade jamais imaginou que ele encontraria uma pessoa que não estava nem um pouco assustada com sua presença exatamente no mesmo dia em que fez sua declaração.

Pela primeira vez em muitos anos, o homem de olhos vermelhos sentiu vontade de gargalhar.

Quanto ao pássaro, aquele não era o momento mais oportuno para capturá-lo, entretanto Alexandre estava calmo quanto a isso, aquele animal voltaria ao palácio, e quando o fizesse não haveria misericórdia.

Seguindo este ritmo, o Imperador logo estava de cócoras no umbral da janela de seu escritório, olhando para Hector que antes se sentava preguiçosamente em um dos sofás do aposento, mas levantou-se com um pulo quanto viu a sombra de Sua Majestade.

- Aqueles projetos de animais pré-históricos venceram, prepare os documentos, eu estou me casando! - rosnou.

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