Capítulo VII
Conforme os dias passavam, Isabella criava certo gosto por perscrutar a cidade. Adentrava em ruelas estreitas, escrutinava lojas quase desertas, visitava espaços bastantes singulares. Apenas coisas seguras.
Em uma de suas idas à capital, Isabella adentrou uma travessa feita de tijolinhos cor de areia, com o símbolo da bandeira de Licrya, uma begônia negra em fundo vermelho, desenhado em suas paredes. Depois de se aventurar por alguns poucos minutos, a jovem chegou a uma praça antiga, onde algumas pessoas bebiam álcool e usavam como assento uma fonte caindo aos pedaços posta no centro do rossio.
Dali em diante não havia mais saídas, apenas um punhado de casas de pedras e um pequeno mercadinho de lamparinas.
- Está perdida senhorita? - questionou um rapaz charmoso sentado na fonte, com um sorriso brilhante e uma pequena garrafa de bebida na mão.
- Não, eu estou bem, obrigado - replicou Isabella de imediato.
Ela ouviu o som de algumas risadas e alguém dizendo 'ela te deu um fora, cara!', mas não prestou muito atenção, seus olhos estavam completamente concentrados em um enorme pássaro de penugem negra posto em uma gaiola dourada do lado de fora de um mercadinho. Isabella se aproximou com lentidão, praticamente forçando suas botas a fazerem silêncio. Qualquer movimento brusco podia afastar o belíssimo animal. Ele tinha um grandioso bico adunco e suas íris eram negras e inteligentes.
- Essa gaiola não é pequena demais para você? - indagou ao pássaro que parecia ser um pouco menor do que um gavião. - Não poder sequer esticar suas asas, deve ser uma tortura...
- Peço que não me julgue senhorita, eu não tive escolha a não ser colocá-lo aí - disse uma voz rouca vinda do nada.
Isabella deu um salto e olhou assustada para o pássaro, pensando que a voz poderia ter provido dele contudo após forçar a vista, ela pode ver a perfeita imagem de um senhor de idade sentado em uma cadeira corroída pelo tempo, com cabelos longos, brancos e desgrenhados, e um tapa-olho verde escuro em seu globo ocular direito. Aquele homem já fazia parte da imagem da loja.
- Disse que não teve escolha? - inquiriu a jovem de olhos azuis retomando sua sobriedade.
O velho fitou-a com seu único olho e inclinou-se para frente como se fosse contar uma história.
- Alguns mercadores vieram fazer negócio comigo há um tempo atrás, velhos companheiros meus. Comprei deles uma dúzia de coisas, inclusive uma boa colcha do Reino de Integria. Então eu vi este pássaro, ninguém sabia de que espécie ele era, apenas que o tinham encontrado ferido na estrada. Sabe moça, quando um animal se fere na natureza, cabe a natureza fazer algo a respeito disso, quando um animal se fere na civilização, cabe aos humanos decidirem o que farão sobre isso. Quando meus colegas mercadores o encontraram, decidiram cuidar do pobre bicho, todavia viajar com esse rapaz não estava ajudando em sua recuperação, pois bem, eu decidi acolher o pássaro até que estivesse melhor. Infelizmente eu não tinha e nem pude achar uma gaiola maior.
- Isso foi muito legal da sua parte - elogiou, procurando cuidadosamente a contusão do pássaro. - Mas ele aparenta estar bem melhor, não?
- Sim, sim! Desde ontem ele parecia pronto para voar, entretanto eu queria observá-lo por mais um tempo. Estava planejando manter a companhia deste rapaz até hoje à noite.
- E o que há hoje a noite?
- Nada demais, apenas vou fechar a loja por uns dias para visitar minha filha no oeste de Licrya. Sou só um velho solitário, queria só um pouco de companhia, sabe?
- Eu entendo - assentiu enquanto pensava no quão solitária vinha estado desde que viera para este mundo.
- Bom, eu já tive uma boa conversa como você, senhorita, acho que não preciso mais da companhia desse rapaz. Você pode soltá-lo se desejar.
- Posso mesmo? - inquiriu com um sorriso tímido.
- Vá em frente.
Isabella olhou para o idoso desgrenhado, abriu lentamente a portinhola com seus dedos trêmulos e esperou pacientemente que o pássaro saísse. A ave olhou-a fixamente, mas não se moveu por sequer um centímetro.
- Vamos, você deve sair - aconselhou tentando dar mais espaço para ele, porém o pássaro apenas inclinou sua cabeça com curiosidade. - Oh, você me faz lembrar o Imperador, por algum motivo.
Então o pássaro pulou no umbral da portinhola, abriu suas longas e macias asas negras e com um último olhar de esguelha voou pelo belíssimo céu azul, dando voltas graciosas ao redor da praça.
Os bebuns da fonte puseram suas mãos nos sobrolhos, também observando o voo solene da ave e aplaudiram como os cariocas aplaudem o pôr do sol.
- Conhece o Imperador, senhorita? - indagou o senhor com interesse.
Isabella fitou o longevo sem reserva; suas rugas, seu nariz triangular que revelava sua etnia, seu queixo pontiagudo por baixo da barba negligente. Pousou os olhos principalmente em suas mãos flácidas repletas de manchas de idade que lembravam a jovem de seus próprios avós.
- Eu trabalho no palácio como empregada, vejo-o algumas vezes - respondeu por fim, tamborilando os dedos sem cessar. - Por que pergunta?
- Bem, eu lutei com ele em uma guerra contra monstros oito anos atrás, mas nunca cheguei a falar com Sua Majestade, ou vê-lo como um pássaro numa gaiola.
- Acho que todos veem o Imperador de maneira distinta, apesar de que o princípio por trás de suas visões seja o mesmo. Alguns o veem como um monstro terrível, um assassino, um demônio, um fantasma, até mesmo um Deus. Eu acho que tenho o direito de dizer que a mim ele me parece um pássaro.
O ancião se pôs rir ao mesmo tempo que concordava com suas cabeça murcha.
- Mas você realmente participou da guerra? - inquiriu Isabella, seus olhos repletos de um fulgor ensandecido de quem procurava qualquer coisa que tivesse haver com o homem de olhos vermelhos.
- Ora, de várias guerras! Eu não ganhei isto numa briga de bar! - exclamou apontando para seu olho tampado, arrancando algumas risadas anasaladas da garota de olhos azuis.
- Eu adoraria ouvir sua história, posso sentar-me contigo?
- Vá em frente, pegue um banco.
Isabella ajeitou sua saia verde, gasta ao ponto de parecer cinzenta, e sentou-se num banco arcaico e anil, apoiando seus cotovelos nos joelhos, e sua cabeça nas mãos.
- Sua Majestade devia ter quase doze anos na época. Tinha a idade do meu neto, mas estava no mesmo batalhão que eu. Todos pensaram que ele fosse morrer no primeiro dia, tivemos pena dele, entretanto fomos completamente humilhados. Aquele garoto lutava tão bem, era tão talentoso e um estrategista de se fazer tremer. Foi um soco na cara para todos nós, muitos de nós tinham passado uma vida servindo Licrya, e um pirralho nobre como ele era melhor do que guerreiros experientes. Nós o odiávamos, admirávamos, invejávamos e acima de tudo, temíamos. Claro que não tanto quanto o tememos hoje, naquela época Sua Majestade não tinha uma aura tão assustadora, ele ganhou isso com as inúmeras guerras e com o sangue em suas mãos. No entanto eu nunca... guarde minhas palavras jovenzinha, eu nunca vou me esquecer daquele rapazinho que eu vi no campo de batalha, ele ainda me faz ter pesadelos durante a noite. Faltava algo naqueles olhos vermelho sangue e a falta daquilo me aterroriza mais que uma faca na jugular.
- E faltava o quê? - murmurou Isabella sentindo um vento quente arrastar seu cabelo dourado.
- Humanidade - respondeu o velho em um sussurro. - Não sei que tipo de infância aquele garoto teve, mas olhos dele eram como os olhos de um animal, não eram olhos de um humano.
"Jura?" pensou Isabella recordando-se do primeiro encontro dos dois, quando ele a olhou em cima daquela árvore com seu jeito sedutor e peculiar "acho eu ele é um pouco distante, um pouco selvagem, mas não acho que seja desumano."
Depois daquela conversa, o senhor de idade se apresentou como Vutra, um guerreiro aposentado que cuidava de uma loja de lamparinas como hobby. Ele contou diversas histórias para a garota de olhos azuis, desde como sua filha havia se casado até histórias excitantes sobre lutas contra monstros terríveis e viagens a países distantes como Forklang. E desde então, sempre que Isabella visitava a cidade ela iria se enveredar pelas ruelas estreitas, cumprimentaria os bêbados sentados na fonte fissurada e se sentaria num puído banco anil para ouvir as histórias, muitas vezes repetidas, do velho Vutra.
Em uma de suas muitas aventuras pela capital, a jovem encontrou algo que viera procurando desde que pusera seus pés naquele mundo - a livraria.
Era um estabelecimento amarelo de dois andares, sem muitas janelas, mas com muitas luzes áureas dando ao ambiente um toque místico. O balconista era um jovem rapaz extremamente alto e magro, tinha uma aparência taciturna e quebradiça, com seus óculos redondos apoiados na ponta do nariz e um bigode ralo de puberdade.
Isabella passou pelas estantes bem cuidadas, estudando as capas que lhe chamavam mais atenção e lendo vagarosamente suas sinopses, decidindo por um livro rosa de capa dura na sessão dos romances, e a bibliografia de um mercenário na sessão de variedades. Então a jovem seguiu em direção ao balcão ao interim que observava uma grande foto colorida atrás do balconista cadavérico.
- Como funciona as fotografias neste mun... em Licrya? - inquiriu de supetão ao rapaz de óculos.
A pergunta da jovem pode parecer um pouco ou muito repentina, todavia era algo que vinha tirando as noites de sono de Isabella desde que ela percebeu que apesar de existirem fotos coloridas naquele mundo, não havia quaisquer sinas de câmeras fotográficas.
O balconista encarou-a enquanto piscava sem entender muito então virou para trás, na direção em que os olhos da jovem apontavam, soltando um 'ah' de compreensão por seus lábios.
- Quer dizer as imagens cristalizadas? - inquiriu dando de ombros e embrulhando os livros com um papel alaranjado. - Funcionam como em qualquer outro país, com cristais mágicos.
Isabella desviou seus olhos, elaborando uma boa desculpa para não saber disso e ter aquele garoto magricela para explicar-lhe.
- É que no meu reino não usamos esse tipo de coisa, então é a primeira vez que eu sequer ouço essa palavra, cristais mágicos.... sabe?
- Não é nada muito difícil, você injeta um pouco de magia em um cristal e ele é capaz de guardar imagens e passá-lo para superfícies sem vida, ou alguma coisa do gênero. Eu também não tenho certeza, nunca toquei em um desses em toda a minha vida já que é bem caro.
Dessa forma, o jovem terminou de embrulhar os livros e entregou-os para Isabella com um sorriso gentil no rosto. - Se é só isso, são 52,20 lenn, moça.
***
Uma das muitas surpresas que Isabella recebeu da cidade foi a visita de um certo pássaro ao palácio.
A primeira vez que isso ocorreu foi quando ela estendia as fronhas alvas das empregadas no varal, na parte mais extrema das acomodações das empregadas.
Isabella admitia com certa frequência que aquele era um dos trabalhos mais satisfatórias que tinha, ela adorava ver os lençóis, panos e roupas voarem asseadas ao vento trazendo cheiro de sabão, lavanda e mel.
Naquela tarde, o sol era quente e o vento era fresco, as nuvens voavam e se dissipavam apressadamente e os sons a sua volta eram quase nenhum. A jovem ajeitou sua saia e se sentou na grama fulgida de orvalho para observar seu trabalho com seus dedos enrugadas de tanto mexer na água, também observou todos os amores-perfeitos, jasmins, azaleias, camélias e begônias, todas as bocas-de-leão, botões-de-ouro, crisântemos, cíclames e cravos, e mais muitas outras flores perfeitamente dentro e fora de suas estações.
Foi neste momento que um pontinho negro apareceu no céu com um farfalhar de asas, e foi aumentando enquanto descia, até pousar seus pezinhos no varal, observando Isabella com aqueles olhinhos pretos e espertos.
- Ora, querido! Veio me fazer uma visita? - inquiriu enquanto ouvia o piar do pássaro. - Bem, eu adorei você ter vindo me visitar, mas tenho muito serviço para fazer, não posso te dar a atenção que merece. Volte no final de semana.
E como se a ave pudesse entendê-la, virou levemente a cabeça e voou novamente para o céu índigo com uma envergadura de um pouco mais de um metro.
Depois daquele dia aquele rapaz veio visitá-la inúmera outras vezes, bicando sua janela durante as manhãs ou planando perto das vidraças dos aposentos onde ela estava trabalhando. De qualquer forma, Isabella amava receber suas visitas, ela aplaudia-o todas as vezes em que aparecia e chamava-o de querido, quando a ave cansava de brincar e ia embora, a jovem de olhos azuis quase sempre dizia em tom de brincadeira.
- Mande um 'olá' para o velho Vutra no meu lugar, diga para preparar meu banquinho que logo irei visitá-lo.
E acenaria para a ave desaparecendo no horizonte.
Em um dado domingo, Isabella sentou-se no umbral da porta dos fundos, comendo algo que se parecia com uma laranja, mas rosa, e viu o 'querido' voando em sua direção e girando no ar.
A jovem levantou-se com um pulo e seguiu o pássaro entre tropeços grogues, colocando sua mão na testa para evitar o brilho solar em suas retinas.
- Onde está indo, querido? - sondou sentindo suas botas afundarem na terra úmida.
Logo, a garota de olhos azuis cansou de seguir o pássaro e apoiou-se numa árvore, sentindo o frescor da sombra espalhar-se por seu corpo magro. Isabella enxugou o suor que que escorria por sua testa e se arrependeu por ter deixado seu cabelo encaracolado solto naquele dia.
- Sabe querido, me chame de louca para seus amigos pássaros se quiser, mas eu adoraria ver o Imperador Vermelho! - exclamou, sua voz tornou-se abafada devido ao vento forte que irrompeu do Sul, ou o que a jovem pensava ser o sul.
Então o pássaro sumiu entre as nuvens.
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